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Revolução comunicativa: o Inter Mirifica

04/09/2024

Anualmente, na solenidade da Ascensão do Senhor, celebramos o Dia Mundial da Comunicação, com uma mensagem específica escrita pelo papa, ocasião privilegiada para aprofundar uma dimensão atual da comunicação, como a Inteligência Artificial, tema deste ano 2024. Ao mesmo tempo que meditamos a mensagem do papa, vale a pena também retomar o documento conciliar que revolucionou o modo da Igreja ver e fazer comunicação. Estamos falando do decreto Inter mirifica, que agora analisaremos.

Por Darlei Zanon, jornalista e assessor editorial da PAULUS Editora

Eis o artigo:

A comunicação é uma necessidade básica da humanidade. Desde sua origem, o ser humano procurou trocar informações e manifestar seus pensamentos, sentimentos, desejos, anseios. Com a evolução e o surgimento de novas técnicas, a comunicação tornou-se mais sofisticada, aprimorando métodos e dando origem a novas linguagens. Hoje vivemos um contexto histórico particularmente marcado pela influência dos meios de comunicação e das redes digitais. Eles criam comportamentos, mentalidades, desejos, necessidades. Diante dessa situação, a Igreja tem por dever se manifestar, encontrando no Concílio precioso apoio e inspiração.

Não por acaso o Vaticano II tratou os meios de comunicação como “algo maravilhoso”, apontando desde o primeiro parágrafo da Inter mirifica sua importância e beleza: “Entre as maravilhosas invenções da técnica que, principalmente nos nossos dias, o engenho humano extraiu, com a ajuda de Deus, das coisas criadas, a santa Igreja acolhe e fomenta aquelas que dizem respeito, antes de mais, ao espírito humano e abriram novos caminhos para comunicar facilmente notícias, ideias e ordens. Entre estes meios, salientam-se aqueles que, por sua natureza, podem atingir e mover não só cada uma das pessoas, mas também as multidões e toda a sociedade humana, como a imprensa, o cinema, a rádio, a televisão e outros que, por isso mesmo, podem chamar-se, com toda a razão, meios de comunicação social.” (Inter Mirifica, n. 1)

Antes de analisarmos o decreto conciliar, porém, é importante entendermos a evolução da comunicação social. Apesar de a história da comunicação se confundir com a história humana, a comunicação de massa é um fenômeno recente. Muitos atribuem seu início a Gutenberg, quando da invenção da imprensa. Os livros produzidos em série a partir do século XV e os primeiros jornais no século XVII foram logo recebendo novos companheiros: o cinema no fim do século XIX, a rádio e depois a televisão no início do século XX. A Igreja inicialmente acompanhou essas invenções com desconfiança e prudência, propondo a censura e o controle. Aos poucos foi aceitando os benefícios que tais meios proporcionam, mas com cautela e prudência, sempre com neutralidade. No meu livro “Comunicar o evangelho: panorama histórico do magistério da Igreja sobre a comunicação” aprofundo passo a passo este caminho da Igreja na sua relação com a comunicação, que teve no Vaticano II um momento de verdadeira revolução.

O surgimento do decreto Inter mirifica (IM) foi como que uma necessidade para orientar os cristãos e convocá-los ao bom uso dos meios de comunicação. Foi uma maneira de reconhecer a importância da comunicação instrumental como meio capaz de movimentar indivíduos e sociedades e seu valioso auxílio para o desenvolvimento do ser humano e para a evangelização (cf. IM 1-3). Os bispos sentiam como que seu dever tratar de tais temas, por isso foi o segundo documento aprovado pelo Concílio, com 1960 votos a favor e 164 contra. Do projeto inicial de 114 parágrafos e 40 páginas restaram apenas 24 parágrafos e dois capítulos.

O primeiro (A doutrina da Igreja) aborda temas variados e mais genéricos. Logo no início, os bispos reconhecem que utilizar tais meios para a evangelização é dever da Igreja, mas sempre respeitando o seu código moral e reto uso, quanto a conteúdos, finalidade, público e assim por diante (IM 3-4). Deve também contribuir para formar uma virtuosa opinião pública, pois todos têm direito à informação e à verdade (IM 8 e 5). Especial atenção deve ser dada aos jovens, mas traça linhas orientativas para todos os receptores e autores, aos quais cabem as principais obrigações morais, pois são os responsáveis pela produção de conteúdo (IM 9-11). Por fim, alerta as autoridades civis para seus deveres de controlar abusos, garantir a liberdade de expressão, favorecer boas iniciativas e defender o receptor.

“A ação pastoral da Igreja” é o tema central da segunda parte do documento. Outros dez parágrafos, que incentivam e orientam seu uso para o apostolado, para promover a boa imprensa, uma comunicação com valores e dignidade. A Igreja deve se preocupar com a formação dos autores para poderem dirigir as produções e emissoras. Deve ter meios de comunicação próprios, o que incentivou a criação de jornais e emissoras, além de incontáveis programas radiofônicos e televisivos, livros, peças teatrais, filmes etc. Deve se preocupar também com a educação dos interlocutores, para que sejam sempre mais críticos e seletivos (IM 15-16).

O Inter mirifica tem um valor profundo por ser o primeiro documento pontifício a tratar da comunicação social no seu conjunto e de modo positivo, além de sugerir várias iniciativas que ao longo dos anos foram se concretizando: criação do secretariado pontifício e secretariados nacionais, dia mundial da comunicação social, instruções pastorais, associações internacionais.

Todos os anos, desde 1967 com Paulo VI, o papa publica uma mensagem para o Dia mundial da comunicação, celebrado no domingo da Ascensão. É uma forma de atualizar o conteúdo do Vaticano II e adaptá-lo às novas descobertas e comportamentos humanos. Outra forma de atualizar a mensagem do Vaticano II são as instruções pastorais, exigidas pelo Inter Mirifica n. 23. A primeira instrução elaborada pelo então Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais (hoje Dicastério para a comunicação) foi a Communio et progressio, em 1971. Depois vieram a Aetatis novae, em 1992, e O rápido desenvolvimento, de João Paulo II, em 2005. O objetivo é sempre o de renovar o compromisso da Igreja com a evangelização através dos meios de comunicação, pois, como afirmou Karol Wojtyla na sua carta de 2005: “Nos meios de comunicação, a Igreja encontra um precioso auxílio para difundir o Evangelho e os valores religiosos, promover o diálogo e a cooperação ecumênica e inter-religiosa, bem como para defender os princípios sólidos e indispensáveis para a construção de uma sociedade respeitadora da dignidade da pessoa humana e promotora do bem comum. Emprega-os, de bom grado, para informar a seu próprio respeito e alargar os meios de evangelização, de catequese e de formação, considerando a sua utilização uma resposta ao mandamento do Senhor ‘Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura’ (Mc 16,15).”

É sempre oportuno e cada vez mais necessário refletir sobre os desafios que a comunicação constitui para os cristãos. A Igreja é chamada não simplesmente a utilizar tais meios, mas a oferecer seu apoio para que eles se desenvolvam de forma sadia e frutífera, colaborando para o progresso das almas, “para recrear e cultivar o espírito, para propagar e firmar o reino de Deus” (IM 2). Deve contribuir para que cada cristão viva ou habite cristãmente a cultura da comunicação e o ambiente digital.

É um campo em constante atualização, ou aggiornamento, para usar a expressão do Concílio. É preciso “fazer a todos a caridade da verdade”, como afirmava o bem-aventurado Tiago Alberione, fundador da família paulina e um dos pioneiros da evangelização com os meios de comunicação. Pe. Alberione tinha muito clara a importância da comunicação para a difusão do Evangelho, inspirado pelo apóstolo Paulo e sua forma inovadora de evangelizar: cartas, viagens, formação de lideranças etc. Repetia que as pessoas têm sede de verdade, estão carentes da verdade, por isso é dever da Igreja realizar tal obra de caridade. Fundou, em 1914, os paulinos, com o objetivo de serem verdadeiros apóstolos da comunicação, pois tinha a consciência de que “o apostolado das edições é uma verdadeira missão”, como definiu no seu livro Apostolado das edições, de 1944, vinte anos antes do Inter mirifica. Ali o bem-aventurado Alberione afirma que “a edição tem por objeto de apostolado o mesmo da pregação oral: a sagrada escritura, a tradição e a doutrina católica (fé, moral e culto)” e por isso “é apóstolo também aquele que escreve, imprime e difunde a Palavra de Deus”.

Pregar a Palavra de Deus por meio das edições e de todas as novas linguagens que o mundo da comunicação oferece é um desafio e uma necessidade cada vez mais atual, e talvez a forma mais eficaz de dialogar com a geração digital. Que muitas novas iniciativas sejam tomadas neste campo, sempre em sintonia com o que nos afirma o Concílio: “A Igreja católica considera seu dever pregar a mensagem de salvação servindo-se dos meios de comunicação social e ensinar homens e mulheres a usar retamente estes meios” (IM 3).