Atualidades

PRÁTICAS E DESAFIOS DA PASTORAL URBANA

16/10/2024

Por Eliseu Wisniewski*

*Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Eis o artigo:

O mundo urbano, mais do que compreendido pelas delimitações territoriais, carrega uma lógica sistêmica em que as diversas realidades e contradições se interpelam na dinâmica das “cidades líquidas”, isto é, que não se imobilizam e nem conservam a sua forma por muito tempo. A Igreja precisa encarnar-se nesses espaços assimilando criticamente uma nova gramática para uma teologia da cidade, afirmando “um Deus com rosto humano e urbano”.

Sabedores que tanto no campo da pesquisa acadêmica quanto no da práxis pastoral, o mundo complexo segue desafiador, e a pastoral urbana persiste como um dos maiores desafios das Igrejas cristãs na atualidade, o Instituto de Filosofia e Teologia da PUC-Minas, num ambiente de diálogo transdisciplinar, compreendendo que multiplicar os ângulos de aproximação sobre a temática pode favorecer uma pastoral engajada que testemunhe o evangelho de Jesus Cristo, realizou, de 05 a 07 de outubro de 2021, o I Simpósio Internacional de Teologia Prática.

As principais contribuições desse evento se encontram na obra Pastoral Urbana: práticas e desafios (Paulus, 2024, 264 p.), organizada por Carlos Alberto Motta Cunha e Solange Maria Carmo. As reflexões dos especialistas que se debruçaram sobre os desafios da pastoral urbana foram agrupadas visando dar maior unidade ao tema dos teóricos e conceituais para os mais práticos e propositivos. Os organizadores observam que, mesmo assim, esse ordenamento nem sempre supera a rigidez imaginável entre a teoria e prática; por isso, buscaram, em primeiro lugar, enfatizar os fundamentos bíblicos e teológicos da pastoral urbana para depois apresentar os caminhos possíveis para uma pastoral urbana à luz de situações e dos desafios concretos.

Abrindo as reflexões, Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães apresenta conceitos, práticas e desafios da Pastoral Urbana (p. 13-32). Para o autor, é preciso conceituar teologia pastoral, pastoral, evangelização e pastoral urbana (p. 13-19); conhecer o urbano pelo seu ethos apoiado pelos pilares da territoriaridade, midiatização, subjetividade e socialização, percebendo, por meio desses elementos, o impacto do urbano sobre a ação pastoral da Igreja (p. 19-25) para que, desse modo, a pastoral urbana obrigue-se ao conhecimento profundo da cidade e do mundo urbano, avalie a cidade como um todo, para atuar em forma de espiral e articule os três níveis  – pessoal, comunitário e socioecológico – da evangelização em espiral, em continuidade com a recepção das orientações da Conferência de Aparecida neste quesito (p. 25-31).

Se a teologia afirma a cidade como o lugar da presença de Deus, Elias Wolff, no segundo capítulo (p. 33-54), desafia-nos a identificar características ou elementos na realidade das cidades atuais que sustentam o pensamento teológico.  Sendo a cidade uma realidade complexa, cujo entendimento requer uma leitura interdisciplinar, o que exige um diálogo entre sociologia, antropologia, política, economia, teologia etc (p. 34-44), os dados concretos da realidade, onde o pensar teológico se enraíza e se produz, apresentam as condições epistemológicas para compreender a relação entre Deus e a cidade. Para Woff, não é suficiente um olhar simplesmente empírico, espiritualista, pragmático e amador sobre a cidade, pois esse ocultaria  a realidade, o que implicaria correr o risco de se enganar sobre o Deus que ali se manifesta. É somente por meio de um olhar realista sobre a cidade que identificamos nela, de forma realista, a presença e a atuação de Deus. E isso contribui para a missão da Igreja, fazendo com que o Evangelho alcance os núcleos e os fundamentos da cidade onde se enraízam os paradigmas que orientam mentalidades, estilos de vida e comportamentos (p. 45-54).

Em relação ao ambiente urbano, Jean Richard e Rosana Manzini, autores do terceiro capítulo, entendem que a Igreja é chamada a ser sal da terra e luz no mundo em urbanização (p. 57-76). Chamando a atenção para a realidade plural das grandes cidades, formada por inúmeros fatores e, ao mesmo tempo, dinâmica (p. 60-63), para os autores “é necessário vivenciar esse ambiente vital; porém, num mundo tão complexo, para não dizer complicado, isso é desafiador. De um lado, a variedade que caracteriza essa realidade nos impõe a pergunta sobre o lugar a partir do qual ela é vista. De outro lado, pergunta-se qual é o real alcance da nossa visão sobre esse ambiente vital. Os desafios se multiplicam e nos inquietam, exigindo um esforço contínuo de busca por algumas respostas que sejam pertinentes aos tempos atuais e coerentes com o Evangelho em que acreditamos” (p. 59-60). Por fim, pontuam como desafios para a pastoral urbana hoje: (re)conhecer o mundo em processo de urbanização; pensar com os pobres; assumir a conversão pastoral e a mudança de mentalidade (p. 64-73).

Dos sinais dos tempos às práticas pastorais na cidade é o assunto trabalhado por Antonio Ernesto Palafox Cruz (p. 77-99) no quarto capítulo. Para ele, “a categoria teológica dos sinais dos tempos contém um grande peso de significado. De origem bíblica, encontra no Vaticano II uma ressonância e um espaço propício ao seu desenvolvimento e aprofundamento histórico-teológico” (p. 77). Por isso, ele explora a possibilidade de essa categoria servir para pensar e situar de forma pertinente as práticas dos cristãos no ambiente urbano. Num primeiro momento, o autor apresenta os elementos para a identificação e consideração teológica dos sinais dos tempos (p. 77-85); em seguida, apresenta duas práticas – abordar as novas subjetividades e acompanhar as vítimas –, como proponentes a serem consideradas na categoria teológica dos sinais dos tempos; vezes nas cidades e, portanto, trabalhar pastoralmente a partir delas como um imperativo evangélico (p. 85-99).

No quinto capítulo, abordando as novas configurações dos sujeitos urbanos (p. 101-112), Solange Maria do Carmo e Moisés Sbardelotto refletem sobre o novo sujeito pós-moderno urbano e sua relação com a pastoral das igrejas cristãs (p. 101-103); sobre como o fenômeno das redes sociais digitais transformam o modo de ser e de se relacionar na contemporaneidade (p. 103-105); sobre como fazer pastoral num contexto complexo sem negligenciar os novos sujeitos urbanos (p. 105-107); sobre a possibilidade de fazer pastoral levando em conta o mundo ideal do sujeito midiático (p. 107-109); sobre como fazer pastoral no meio de situações urbanas tão peculiares (p. 110-111); sobre quais desejos mais profundos dos sujeitos urbanos precisam ser considerados na hora de planejar a ação pastoral nas cidades (p. 111-112).

No sexto capítulo, evangelização em contexto urbano: chaves permanentes para o desafio de uma pastoral em saída (p. 113-124), Alzirinha Souza esclarece que a discussão sobre os novos desafios para os processos de evangelização em contexto urbano não é nova, mas exige que o pensemos e repensemos continuamente. A autora entende ser necessário remarcar as chaves que devem estar sempre presentes e ser continuamente compreendidas a cada vez que pensamos os processos de evangelização em espaço urbano em perspectiva de saída, a partir da compreensão primeira de cidade – uma teologia da cidade – para posteriormente pensar a pastoral urbana. Ainda, segundo a autora, o desafio está em fazer convergir dois elementos essenciais: o que é próprio da história (p. 114-119) e o  que é próprio da compreensão de cidade e da teologia da cidade (p. 119-123).

A pastoral em saída no mundo urbano é exigente e não compactua com o pecado capital da acídia. Nesta perspectiva, a reflexão proposta por Vitor Galdino Feller no sétimo capítulo diz respeito à acídia pastoral e incômodos de uma Igreja em saída (p. 125-143). Para o autor, a acídia é um “termo pouco usual em nossas reflexões e conversações teológico-pastorais, mas que se refere a algo muito mais comum em nosso cotidiano pastoral – trata-se do desencanto, do comodismo, da paralisia, da passividade” (p. 125). Feller, após uma reflexão sobre a acídia (p. 126-129) e seus frutos – o pelagianismo e o gnosticismo (p. 129-133) –, apresenta alguns incômodos próprios da ação evangelizadora e o modo como enfrentá-los (p. 133-138). Conclui elencando algumas dicas teológico-pastorais para uma Igreja que, sendo comunhão e caminhada, só pode se realizar como Igreja em saída missionária, ou seja, em sinodalidade: comunhão na caminhada, caminhada na comunhão (p. 138-141).

O desenvolvimento de uma pastoral urbana tem como desafio repensar a significatividade da proposta moral. Nesse sentido, Ronaldo Zacharias, no oitavo capítulo (p. 145-160), destaca a importância de repensar o conteúdo e o modo como a moral cristã é proposta nos mais variados contextos (p. 146-152). Para o autor, é preciso distinguir uma proposta moral missionária (p. 152-154) – que pretende fazer com que a Boa-nova do Evangelho chegue ao coração das pessoas que vivem em situações distantes de qualquer ideal moral – de uma proposta moral pastoral – dedicada a acolher, acompanhar e integrar as pessoas que já pertencem a uma comunidade de fé. Em ambos os casos, é preciso ajudar as pessoas a descobrir e/ou discernir como concretizar os passos que podem dar rumo ao ideal evangélico da santidade na própria condição de vida e nos diversos contextos em que são chamadas a dar testemunho da fé que professam (p. 154-159).

No nono capítulo, Amarildo José de Melo, tendo em conta a variedade de configurações familiares no contexto de mudança epocal, entende ser este também um grande desafio pastoral (p. 161-186). Para ele, “essas novas famílias constituem uma parcela muito numerosa de nossas comunidades. Não é possível assumir esse desafio pastoral se apoiando simplesmente no passado, na Tradição […], mas é preciso, na fidelidade ao Evangelho, um novo enfoque pastoral” (p. 174). O autor, depois de apresentar a compreensão de família que vai do Concílio de Trento ao Concílio Vaticano II (p. 162-168), refletir sobre a família como fenômeno humano e social (p. 168-174), aborda as diversas configurações de famílias no Brasil e os novos desafios que se apresentam para a Igreja católica e outras Igrejas cristãs (p. 174-185).

Alzirinha Souza e Junior Vasconcelos, no décimo capítulo (p. 187-205), refletem acerca da evangelização popular. Os autores focam nos elementos bíblicos-teológicos que constituem o processo de formação que implementa a evangelização popular, apresentando a compreensão e o processo de formação para a evangelização a partir da leitura do Evangelho de Marcos, como gênese para o léxico do Evangelho e a fórmula do ato evangelizador como possibilidade para pensar o processo de evangelização hoje, na conversão de todos os batizados em profetas e profetisas  (p. 189-194). Apresentam, num segundo momento, os elementos teórico-práticos que consideram essenciais no processo de formação de cristãos profetas, a partir das perspectivas de José Comblin e Paul Ricouer (p. 194-203).

Elisa Cristina de Mello, por sua vez, salienta que “uma pastoral urbana em perspectiva ecoteológica tem grande potencial de contribuição na missão de tronar o Reino de Deus presente no mundo” (p. 216) e, por assim ser, a reflexão do décimo  primeiro capítulo, nomeado Olhar a realidade urbana a partir da ecologia integral: caminhos para uma pastoral ecoteológica (p. 207-217), por meio de levantamento bibliográfico, evidencia propostas concretas para uma ação pastoral urbana que parte do paradigma ecoteológico: recuperar o olhar contemplativo, partir das periferias, promover uma ética do cuidado, propor uma leitura bíblica em perspectiva ecoteológica, recuperar a dimensão comunitária da liturgia, renovar a opção preferencial pelos pobres e a solidariedade, propor uma ação missionária que conduza  à salvação integral.

Em As Igrejas como antítese da lógica capitalista (p. 219-228), assunto do décimo segundo capítulo, Raquel Pacheco Mourão, tecendo considerações sobre o papel do sistema econômico na urbanização e na construção dos sujeitos, bem como indicando possibilidades de ações das Igrejas a fim de que sejam relevantes na cidade, diz ser fundamental indagar-se sobre os rumos da sociedade sob o domínio do sistema de exploração que, em nome do lucro e da ganância, sacrifica a dignidade humana. Na contramão da lógica capitalista, as Igrejas cristãs podem “iluminar a sociedade, promovendo a humanização dos sujeitos e a consciência social, engajando-se na luta contra estruturas de opressão e espalhando, por meio do exemplo, valores do Evangelho, tais como a solidariedade, justiça, amor e paz” (p. 226).

No décimo terceiro capítulo, Flávio Lages Rodrigues mostra como a comunidade Caverna de Adulão desenvolveu um trabalho pastoral voltado para os jovens que estavam nas tribos headbangers de Belo Horizonte (p. 229-237). Mais especificamente detalha o trabalho de pastores da comunidade, em especial do pastor Fábio de Carvalho, que se apropriou de elementos da cultura, nesse caso o rock pesado, com o hevy metal e seus subgêneros, aliados à religião, para comunicar o Evangelho por meio da Palavra cantada aos jovens que estavam nas tribos urbanas hedbangers.

Por fim, no Posfácio (p. 239-256), Edward Guimarães e Junior Vasconcelos do Amaral recolhem as principais contribuições do I Simpósio de Teologia Prática: Pastoral Urbana e apresentam, em sete pontos, o que julgam ser o legado desse evento: 1) mundo complexo e sociedades plurais, 2) caminhos para a Pastoral Urbana, 3) descentralização institucional, 4) Igreja em saída, com pastores e fiéis em saída, 5) formação continuada adequada e teologia urbana, 6) ação evangelizadora urbana global, 7) pastoral de fronteiras e intercâmbios.

Cultura urbana… um desafio à missão evangelizadora… Dado que mais de 70% da população do continente vive em ambientes urbanos e que o Brasil e a América Latina estão se tornando cada vez mais urbanos é imprescindível acolher a questão urbana dentro da nossa ação evangelizadora. O tema da pastoral urbana interpela a ação evangelizadora, uma vez que não se trata simplesmente de fazer pastoral na cidade, mas, antes de tudo, de encarnar-se pastoralmente no mundo urbano, marcado por desafios, estilos de vida, linguagens, símbolos e imaginários próprios. As atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023, ao abordar essa temática, esclarecem que “quando a Igreja fala em evangelização da cultura urbana, tem clareza de que não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação” (n. 31).

Nesse horizonte, a obra em pauta coloca o leitor diante de reflexões que iluminam e ajudam a “pensar e compreender os desafios e as urgências do tempo presente e ação evangelizadora dos cristãos e das Igrejas, de forma que ela seja coerente e significativa” (p. 240), e, por isso, levanta questões sobre a pastoral urbana, a atuação prática das Igrejas cristãs nos grandes centros urbanos, o modo de fazer pastoral e de estar presente na vida das pessoas de hoje. Tudo isso é mais do que oportuno para quem busca pensar, entender, planejar organizar e realizar ações evangelizadoras que levem a uma encarnação da Boa-Nova no mundo urbano.