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NOSSO DESAFIO DEMOCRÁTICO: Para que 64 não se repita

02/04/2024

A Ditadura Militar foi um capítulo terrível da História do Brasil. Em 2024 completam-se 60 anos deste tempo que atrasou o relógio do país em 21 anos. É o que argumenta o diplomata, Milton Randó Filho, em artigo exclusivo para Vida Pastoral. “É impressionante na história do Brasil o número de vezes que intervieram e rasgaram, literalmente, a Constituição”.

Milto Randó Filho

 Diplomata aposentado e membro do Observatório da Comunicação Religiosa (OCR)

 

Eis o artigo:

“A união do rebanho obriga o leão a ir dormir com fome.” Provérbio africano.

Atualmente, sabemos que era mentira que o Presidente João Goulart não mais contava com apoio popular quando as Forças Armadas o derrubaram, em 1º de abril de 1964.

Pesquisa do IBOPE, engavetada por décadas, registra que ele contava com 49,8% de intenção de voto da população, um percentual em 8% superior ao dos que o desaprovavam.

Com efeito, tudo na quartelada de primeiro de abril é falso, do suposto clamor popular pela ruptura democrática; aos falaciosos pendores comunistas de Jango; até a alcunha dada ao “líder do movimento”, um certo general Mourão (essa cepa na caserna não é boa…), o qual se autodenominava “uma vaca fardada” (com o perdão daqueles dóceis animais que jamais cometeram qualquer crime, ao contrário do dito general), o que dispensa qualquer outro juízo de valor.

Entretanto, mais uma vez, os militares, a serviço da oligarquia, atrasaram o relógio do país em mais de 21 anos.

De fato, é impressionante na história do Brasil o número de vezes que intervieram e rasgaram, literalmente, a Constituição.

As mais recentes são 1954, 1964 e 2016, mas ao longo de todo o século XX abusaram do privilégio de deterem as armas (da República), para imporem as próprias ideias (retrógradas) a todo um país, transformando-nos em autêntica república bananeira.

As consequências do golpe de 64, porém, ainda são gravemente sentidas: uma brutal desigualdade de riqueza e renda que faz do Brasil um dos países mais desiguais do mundo; milhões de pessoas morando em favelas ao redor de todas as grandes cidades do país; um sistema de informação nas mãos de apenas oito famílias…

Pior, não nos preparamos, como sociedade, para enfrentar essa tara militar.

A prova é que em 2016, mais uma vez, 200 milhões de pessoas ficaram reféns de meia dúzia de generais semicaducos e, mais uma vez, um golpe se fez, mantendo na prisão o candidato presidencial que liderava as intenções de voto.

Por trás dos vende-pátria, corajosos apenas no empunhar as armas contra seu próprio povo, estiveram sempre os governos dos Estados Unidos da América (EUA), como é sobejamente conhecido.

No entanto, após financiarem – com recursos, armas e pessoal – golpes de estado em todo o Sul Global, em 6 de janeiro de 2021 o feiticeiro provou do próprio feitiço: naquele dia, hordas de fascistas invadiram o Capitólio, o congresso estadunidense, tentando impedir a posse do governo eleito.

Esse choque de realidade, mais dia menos dia ocorreria, pois quem cria corvos e monstros não costuma terminar ileso. A intentona teve o condão de alertar os democratas dos EUA de que, parafraseando John Fitzgerald Kennedy, não se pode esperar subsistir, fomentando um inferno ao redor.

Finalmente, a conta chegara à Casa Branca, antes que Jair Bolsonaro e seus aprendizes de feiticeiro, amestrados, tentassem o enésimo golpe de estado no Brasil.

Ao buscarem os apoios externos imprescindíveis, colheram apenas reticências e negativas, fazendo gorar a conspiração da extrema direita que, caso exitosa, traria um banho de sangue e o retrocesso da nação às trevas mais profundas que jamais conhecera.

Portanto, como em 1964, nossa sorte recentíssima, não foi decidida apenas aqui, mas em Washington; afortunadamente, com os sinais contrários, desta vez, em apoio à escolha democrática que o povo brasileiro fizera nas urnas.

Isso nos coloca a mesma questão que outrora se colocara aquele cidadão russo: o que fazer? Como gerar resiliência para que não haja novas rupturas democráticas? Como alertar o povo brasileiro para reagir em caso de nova tentativa?

Para muitos juristas, o parágrafo segundo do Artigo Quinto da Constituição conteria autorização para que se exerça o dever de resistência, o que, de fato, parece implícito naquele dispositivo constitucional.

No entanto, há margem para outro tipo de interpretação, sendo desejável que se busque inserir na Constituição artigo claro e expresso, em que o direito à resistência esteja claramente contemplado, como a Alemanha, por motivos óbvios, inseriu em sua Carta Magna.

(Imagem: Arquivo Nacional)

Demais, seria necessário treinar, desde o ensino fundamental, alunos e alunas no exercício dessa peça cidadã de resistência, sem a qual todo o edifício democrático resta fragilizado.

Devemos nos inspirar nos irmãos e irmãs argentinos que fizeram tábula rasa da intenção dos militares argentinos de argumentar o dever de obediência, para justificar os crimes cometidos contra os opositores da ditadura militar.

Vale recordar que, após os julgamentos de Nuremberg, em que se condenaram os nazistas pelas atrocidades cometidas, o dever de obediência ficou claramente delimitado pela não-incursão em crime de qualquer natureza, inclusive contra a ordem democrática.

Vale lembrar, também, que Hannah Arendt, na obra “Eichmann em Jerusalém” desqualifica, por antítese, qualquer tentativa da invocação do direito de obedecer para a justificação de crimes de qualquer natureza, genocídio inclusive.

Permanecendo no campo da defesa, real, não ilusória, podemos ainda nos valer do empréstimo à defesa civil do conceito de geração de resiliência, que consiste em analisar as causas e fragilidades que levaram a um determinado desastre e, com base naquela identificação, fazer a reconstrução, de sorte que as causas e fragilidades que concorreram para o desastre sejam objetivamente superadas e não possam voltar a se repetir.

Pois, como Einstein bem pontuara, processos iguais inevitavelmente levam a resultados iguais.

O desafio da democracia é nosso, hoje e no futuro, pois assim nos ensinou o passado.