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Ir. Dorothy Stang, 20 anos após seu assassinato

06/02/2025

Por Darlei Zanon*

*Jornalista, teólogo e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo Instituto Universitário de Lisboa-ISCTE. Assessor editorial e autor da Paulus Editora, tem ampla experiência no campo editorial, desenvolvendo atividades no Brasil, em Portugal e na Itália.

Eis o artigo:

Há vinte anos, no dia 12 de fevereiro de 2005, em Anapu, no Pará (Brasil), quando se dirigia para visitar algumas famílias indígenas na floresta, ir. Dorothy foi assassinada com seis tiros por uma série de criminosos. Tinha 73 anos de idade. Já havia recebido diversas ameaças de morte, mas sua missão estava sempre em primeiro lugar. Respondia a tais ameaças dizendo que jamais iria fugir, nem abandonar a luta dos agricultores, que vivem sem proteção, no meio da floresta.

Ir Dorothy Stang foi uma religiosa norte-americana da congregação das irmãs de Notre Dame de Namur, que viveu cerca de 40 anos no Brasil, defendendo os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Chegou em 1966, iniciando sua atividade missionária no estado do Maranhão, mas logo foi para a Amazônia, afrontando poderosos madeireiros e fazendeiros. Naquele período, a região amazônica vivia um boom de migração e exploração causada pela abertura de estradas durante a ditadura militar e o projeto de desenvolvimento (não sustentável) de plantio e criação de gado, o que provocava conflitos na região. Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu e amigo desde 1982 da religiosa, recorda que “irmã Dorothy viu de perto o frenesi das derrubadas em grande escala e, desde que chegou, falou e não mediu esforços, querendo convencer a quem ouvia sua vozinha mansa – mansa era apenas sua voz! – de que, num futuro bem próximo, frequentes calamidades em cada vez maiores proporções seriam consequência das violentas agressões à natureza.”

Nos quase quarenta anos em que desenvolveu sua missão no Brasil, Ir. Dorothy foi convivendo com as pessoas, sobretudo indígenas e os mais pobres, e descobriu que o futuro da Amazônia e de seus povos passava por um novo caminho: o desenvolvimento sustentável e a ecologia integral, que na época não recebia estes nomes, mas que hoje são bem claros para todos nós, com a publicação da Laudato si’, e sobretudo após o Sínodo sobre a Amazônia e sua exortação apostólica Querida Amazônia.

Esse foi o maior legado da ir. Dorothy, como recorda muito bem Felício Pontes Júnior, procurador da República junto do Ministério Público Federal do Pará e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio: “Eu penso que o maior legado é exatamente que ir. Dorothy via a possibilidade de fazer preservação ambiental na Amazônia e desenvolvimento econômico, que não eram incompatíveis. Há 20 anos parecia impossível ter qualquer tipo de desenvolvimento que não fosse predatório, que não fosse derrubar a floresta, e esse era um obstáculo que Dorothy tinha para transpor. Ela precisava mostrar a todos que era possível fazer esse desenvolvimento sem devastação, ela conseguiu nos mostrar que isso era possível, e num lugar onde qualquer prática de desenvolvimento significava devastação”.

Apesar de todos os esforços e todos os estudos, como o Sínodo para a Amazônia, que mostram a viabilidade econômica num modelo de desenvolvimento sustentável, Felício Pontes reconhece que a Amazônia continua sofrendo: “A problemática na Amazônia permanece a mesma porque a elite econômica da região não quer ouvir, não quer se deparar com essa verdade tão evidente que está colocada através da crise climática e continua insistindo no modelo que eu chamaria modelo predatório de desenvolvimento, contra o qual Dorothy pregava. Esse modelo predatório hoje possui as mesmas cinco grandes atividades daquela época, ou seja, exploração de madeira, pecuária, mineração, monocultura e energia. Então sempre tem alguém ligado a uma dessas atividades que vai se contrapor ao modelo proposto por Dorothy”.

Foi exatamente por sua luta incessante contra o modelo predatório de exploração da floresta que ir. Dorothy foi assassinada. Sem nunca esquecer os valores evangélicos e enfrentando os poderes deste mundo, aqueles que participam da economia que mata e que promovem a cultura do descarte de coisas e pessoas, pelo que poderia ser considerada mártir, ir. Dorothy dedicou-se sobretudo ao combate do desmatamento e da exploração predatória, à defesa dos direitos dos povos da Amazônia, à formação das mulheres e crianças pobres. Defendia a regularização da terra para famílias de trabalhadores rurais e combatia a violência das invasões feitas por grileiros, madeireiros e fazendeiros. Segundo testemunhas do seu assassinato, quando os atiradores se aproximaram e perguntaram se ela estava armada, a religiosa pegou a Bíblia e disse: “Esta é a minha arma”, e começou a ler as bem-aventuranças.

Dom Erwin Kräutler, recordando esse ato, afirma: “Este seu gesto derradeiro é o último recado que Dorothy nos deixou. É sempre a Palavra de Deus que nos inspira e orienta em nosso caminho”. Dom Erwin recorda ainda que “ir. Dorothy doou sua vida para que todos tenham vida, e isso impressiona. Ela é uma mártir pela causa do Evangelho, uma mártir pela causa que ela defendeu até a morte cruel de que foi vítima. Com a sua morte, sacudiu o mundo, descerrando a face ensanguentada da Amazônia, fazendo ecoar os gritos e revelando as dores que golpeiam os povos que aqui vivem. A vida da irmã Dorothy só pode ser entendida a partir desta mística profunda de missionária devotada aos anawim na Amazônia que a acompanhou até sua morte cruel”.

Também para Felício Pontes, ir. Dorothy é mártir: “Dorothy vai ser sempre lembrada com uma mártir da Amazônia, uma mártir da ecologia integral, aquela que conseguiu, com a sua vida, mostrar que poderia haver e que deveria haver um novo caminho, um caminho que fizesse a reconexão do homem com a natureza, que visse a natureza (ou a criação para os teólogos) não como um obstáculo a ser derrubado, mas o ser humano como parte dessa natureza, e a morte da natureza como a morte do próprio ser humano.”

O maior legado de ir. Dorothy, portanto, é antecipar a urgência da reconexão entre o ser humano com a natureza, e mostrar que isso é possível. “Essa reconexão é a única saída que nós temos diante da crise climática e a crise climática vem na verdade nos mostrar que о caminho que Dorothy apontava (o projeto de desenvolvimento sustentável) não é um segundo caminho, um caminho alternativo, mas é o único caminho a ser trilhado”.

Para Dom Erwin, “irmã Dorothy foi uma “voz que clama do deserto” (Mc 1,3). O deserto não é uma imensidão de areia a perder-se nos horizontes, mas as selvas da Amazônia agredidas propositadamente. A maior desgraça na Amazônia é os homens continuarem a derrubar e queimar a floresta. (…) Mesmo morta, Irmã Dorothy continua insistindo numa maior sensibilidade pela Amazônia e reclamando mais juízo e respeito pela vida dos povos que habitam essa região e a natureza, a “Casa Comum” que geme e implora compaixão porque é sempre de novo agredida e violentada. E é exatamente neste sentido que o povo grita nas celebrações de aniversário do assassinato da Irmã: ‘Dorothy vive, vive, vive!’.”

Ir. Dorothy normalmente vestia uma camiseta branca que trazia escrito: “A morte da floresta é o fim da nossa vida”. Também costumava dizer: “nós passamos poucas décadas aqui na terra. Use cada dia para levar alegria, não ganância, à nossa terra exaurida, tão cheia de angústia”. Deixou um legado de ação pastoral transformadora. Diante de todas as catástrofes climáticas que estamos vivendo nos últimos meses, em todo o planeta, sua voz profética serve de inspiração para todos que continuam lutando em defesa da Amazônia, da nossa Casa Comum e da vida.

Religioso austríaco, bispo do Xingu entre os anos 1981 e 2015, Erwin Kräutler atuou com a irmã Dorothy Stang e prossegue na mesma luta pelos direitos das comunidades camponesas e indígenas e pela preservação ambiental na região amazônica. Assim dom Erwin testemunha seu primeiro encontro com ir. Dorothy: “O que me surpreendeu foi seu pedido de trabalhar ‘com os pobres mais pobres’. Por um momento imaginei que fosse mais uma daquelas aventureiras que fazem incursões no meio dos pobres para depois escrever um livro sobre sua experiência. Disse à Irmã que seu desejo, mesmo que seja muito nobre, não era tão fácil de se concretizar. Pensei na Transamazônica-Leste. Lá, naquele tempo, a pobreza era verdadeira ‘miséria’. Mas ela respondeu simplesmente: ‘Por favor, me deixe experimentar!’. E ela ‘experimentou’ essa vida vivida com os pobres até o fatídico dia 12 de fevereiro de 2005, quando às sete e meia da manhã foi brutalmente assassinada.”

O sínodo sobre a Amazônia (2019) recordou ir. Dorothy entre os testemunhos-mártires, pessoas que deram sua vida em defesa da floresta e de seus povos. (cf. http://secretariat.synod.va/content/sinodoamazonico/pt/testemunhos-da-amazonia.html) Além da biografia no site do Sínodo, sua imagem esteve presente em um dos momentos mais emocionantes da assembleia sinodal, a procissão que levou os participantes da Basílica de São Pedro à sala sinodal, acompanhada por símbolos e cartazes mostrando mártires da Amazônia, dentre eles, Alejandro Labaka e Inés Arango, Ezequiel Ramin, Chico Mendes, Josimo Tavares, Vicente Cañas, Cleusa Rody Coelho, Alcides Jiménez, Rodolfo Lunkenbein e Simón Bororo. Ir. Dorothy e todos estes mártires comprometidos com a querida Amazônia são verdadeiros profetas, antecipando o sínodo, e verdadeiros precursores da conversão para a qual o sínodo nos convocou. Na decoração da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, Cláudio Pastro incluiu irmã Dorothy no painel de azulejos As Mulheres Santas.