Por Eliseu Wisniewski*
*Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Eis o artigo:
Depois da ampla aceitação em inúmeras dioceses e ordens religiosas dos livros Formação: desafios morais 1, publicado no ano de 2018, e Formação: desafios morais 2, publicado em 2021, somos presenteados com um terceiro volume – Formação: desafios morais 3 (Paulus, 2024, 352 p.). A obra, organizada por três doutores em Teologia Moral – José Antonio Trasferetti, Maria Inês de Castro Millen e Ronaldo Zacharias –, foi pensada para auxiliar formadores e formadoras de todo o Brasil a inserir no processo formativo debates sobre temas que, devido à urgência e importância, precisam ser considerados como parte da caminhada vocacional, tanto inicial quanto permanente.
A Obra como um todo é uma contribuição significativa àqueles que se dedicam ao ministério formativo. Os quinze capítulos que a compõem foram escritos por diferentes autores e autoras, profissionais competentes, entusiastas e ricos em humanidade e sabedoria.
O tema da autonomia e obediência é assunto do primeiro capítulo (p. 11-31), escrito pelo doutor em Psicologia Clínica Ênio Brito Pinto. Em vista de uma obediência autônoma e de uma autonomia obediente, o autor aponta quatro aspectos importantes e delicados da atividade formativa: a) a formação é parte da educação; b) a formação tem metas (institucionais) e pretende criar horizontes (pessoais); c) a formação é sempre relacional e se dá em mútua influência; d) a formação se baseia em valores, os quais precisam ser conhecidos e atualizados para que o processo formativo faça sentido. Para o autor, nesse último aspecto dá-se o inevitável e perene embate entre autonomia e heteronomia. Quanto mais houver autonomia com a consequente obediência crítica, dialogal tanto mais ela poderá nutrir o senso comunitário, favorecendo uma presença-participação responsável, amorosa e solidária nos grupos de pertencimento. A autonomia crítica é um antídoto para a solidão narcísica e um sustento para a solicitude e a solidariedade.
O tema proposto pelo segundo capítulo refere-se ao magistério eclesial. Partindo do pressuposto de que, na Igreja, todos devem se escutar e escutar o Espírito (p. 33-52), o autor – o doutorando em Teologia Leonardo Lucian Dall’Osto – propõe uma adesão crítico-propositiva ao magistério. Para ele, o magistério deve estar a serviço de todos os carismas na Igreja e favorecer a comunhão e a unidade entre os fiéis. Para que seja uma voz autorizada da comunidade dos fiéis, o magistério precisa estar atento e ser fiel à Palavra de Deus e ao sensus fidei e pôr-se continuamente em diálogo com a realidade contemporânea numa perspectiva sinodal.
O terceiro capítulo trata da institucionalização e da corrupção das relações e propõe que sejam repensadas, com urgência, as estruturas seminarísticas de formação (p. 53-75). A doutora em Teologia Moral, Maria Inês de Castro Millen, pensa a Igreja como estrutura institucionalizada com o dever de oferecer formação adequada para aqueles que nela se inserem. Ela traça um percurso histórico sobre os modelos formativos dos seminários, considera as críticas feitas a eles e se questiona sobre o modelo/estrutura de Igreja que os sustenta. Indaga, ainda, se é possível falar de uma simbiose que tenta aproveitar um pouco de cada modelo e pontua que repensar as estruturas formativas é tarefa urgente, não para desestabilizar a instituição, mas para colocá-la na linha do discernimento capaz de apontar caminhos de superação dos problemas que se avolumam.
O tema das questões de gênero como desafios no processo de formação inicial e permanente é a matéria do quarto capítulo (p. 77-95). A doutora em Teologia, Ivone Gebara, nos convida tanto a superarmos a tentação de querer discernir situações atuais a partir de orientações preestabelecidas nos séculos passados quanto a tentação de resgatar uma espiritualidade que se fundamenta na dissociação entre corpo e espírito, com o consequente desprezo do primeiro. Para ela, trata-se de transcender as hierarquias preestabelecidas por poderes masculinos de dominação e o velho iceberg doutrinário fundado nas figuras masculinas, de fundo sexista, antifeminista, racista e homofóbico, se quisermos acolher o inegável pluralismo de todos os seres vivos, inclusive dos seres humanos, e, consequentemente, favorecer um efetivo diálogo sobre questões de gênero e diversidade sexual.
Autoerotismo e autotranscendência são os temas desenvolvidos no quinto capítulo (p. 97-124). Chamando a atenção para a importância da integração entre eros e ágape, o doutor em Teologia Moral, Ronaldo Zacharias, aborda possíveis deformações do eros na vida presbiteral e religiosa consagrada que dificultam a abertura ao ágape. Em seguida, aprofunda o significado da autotranscendência como expressão de maturidade pessoal e condição para a integração entre eros e ágape e propõe vários desafios a serem considerados no processo formativo, como meios concretos de superar o autoerotismo em vista da doação total de si. Para o autor, é muito importante que, durante todo o processo formativo, o eros seja projetado em direção ao ágape – que se manifesta como caridade pastoral –, para que seja possível compreender o que significa realizar-se sexualmente como padre ou religioso.
A reforma do Direito Penal Canônico, com as quais o Papa Francisco contribuiu de modo muito significativo, é o tema do sexto capítulo. Dom Denilson Geraldo, doutor em Direito Canônico, tece considerações sobre o Novo Direito Penal Canônico, salientando que este está a serviço da comunhão eclesial (p. 125-141). Chamando a atenção para as modificações introduzidas no Livro VI, o autor apresenta uma síntese dos delitos e das penas, em geral, e da tipologia dos delitos, em sua especificidade, evidenciando que os delitos agridem a comunhão e, por isso, exigem devida reparação, uma vez que todos somos chamados à santidade e à salvação, respondendo pelos próprios atos e pelas próprias opções.
O tema da correta e da justa administração dos bens (p. 143-163) é o conteúdo abordado pelo especialista em Comunicação Social Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos. Tendo em conta o pensamento do Papa Francisco sobre o assunto, o autor apresenta, num primeiro momento, casos hipotéticos e paradigmáticos de contratestemuho de práticas atuais que envolvem corrupção, enriquecimento ilícito, desvio de dinheiro, analisando, em seguida, as origens das práticas inortodoxas e seus eventuais elementos impulsionadores, tais como formação inadequada, ausência de critérios na escolha dos protagonistas e desrespeito aos princípios conciliares fundamentais. Num contexto de permanente preocupação com a implementação dos valores evangélicos – que devem permanecer como objetivo da missão evangelizadora da Igreja –, com o uso do dinheiro da Igreja e com a existência e a finalidade de seus bens, o autor propõe a justiça e a transparência como nortes a serem seguidos pelos administradores eclesiais.
A formação para a ação política é o tópico do oitavo capítulo. Dom Vicente de Paula Ferreira, doutor em Teologia, aborda a urgência da formação dos seminaristas para o compromisso e a ação política como modo concreto de atualizar o Evangelho. Partindo da grave crise socioambiental pela qual passamos – provocada por um estilo capitalista neoliberal global que coloca o lucro acima de tudo e considerando como esse sistema impõe políticas autoritárias que ameaçam a democracia –, à luz do eixo cristão fundamental, que é a fraternidade, o autor denuncia um fazer político que se expressa na antipolítica de privilégios e cumplicidades com pessoas, estruturas e poderes que vão na contramão do respeito à dignidade e aos direitos fundamentais das pessoas, buscando, no magistério da Igreja, principalmente do Papa Francisco, os elementos do anúncio profético para a construção de uma sociedade fraterna e o cuidado com a casa comum.
A formação na perspectiva pastoral sociotransformadora (p. 185-212) é a temática abordada pelo mestre em Teologia Dom José Reginaldo Andrietta. O autor salienta que a práxis libertadora é intrínseca à missão evangelizadora da Igreja e, por isso, no processo formativo é preciso dar prioridade a uma formação na perspectiva pastoral sociotransformadora. Para que, de fato, seja assumida e desenvolvida por todos os agentes pastorais, principalmente pelos ministros ordenados e pelos consagrados, essa perspectiva pastoral precisa ser bem compreendida: ela tem a pessoa de Jesus como referência imprescindível, referência a ser vivida em chave reinocêntrica, próxima da humanidade sofredora e geradora de comunhão e participação. Cabe, por isso, aos responsáveis pela formação para os ministérios ordenados e para a vida religiosa consagrada dar passos nesse sentido, reconhecendo na perspectiva pastoral sociotransformadora a possibilidade de um novo horizonte formativo, promissor para uma Igreja que deseja testemunhar mais autenticamente a amorosidade de Deus e nutrir a humanidade de esperança.
A saúde mental e os transtornos psicoafetivos dos presbíteros bem como o cuidado da saúde integral dos cuidadores (p. 213-231) são trabalhados pela médica psiquiatra Tatiana Maiochi Cunha no décimo capítulo. A autora discorre sobre a saúde mental e os transtornos psicoafetivos dos presbíteros e seminaristas em processo de formação inicial, pontuando que uma reflexão abrangente sobre a saúde mental dos padres e religiosos deve ser considerada também no seu aspecto positivo: uma pessoa bem integrada possui equilíbrio emocional suficiente para responder às demandas, tanto internas quanto externas, do dia-a-dia; é capaz de estabelecer relacionamentos positivos com todos; visa o crescimento e o amadurecimento pessoal, a realização do sentido do próprio projeto de vida, a autonomia e a capacidade de autotranscendência.
O suicídio entre padres e religiosos merece atenção no décimo primeiro capítulo (p. 233-248). A mestra em Psicologia, Silvia Cristina Maia, entende que, devido à sua complexidade, o suicídio deve ser considerado a partir de diversas perspectivas e não pode ser reduzido a uma de suas dimensões. Há realidades tanto internas quanto externas que impedem que a pessoa efetive a sua liberdade essencial. Por isso, é de fundamental importância a pergunta sobre os fatores capazes de bloquear a capacidade de o ser humano exercer a sua liberdade na escolha pela vida, mesmo num período em que o sofrimento e a dor parecem insuportáveis. Os pontos ressaltados pela autora são sinalizadores de que algo não vai bem no processo formativo – inicial e permanente – e que é preciso encontrar possíveis caminhos para a superação dos momentos difíceis, das crises existenciais e da falta de sentido para a vida, a fim de que a decisão por viver, ancorada na fé, no amor e na esperança, seja mais forte do que a decisão por não viver.
O uso das mídias digitais (p. 249-268) é a temática desenvolvida pelo doutor em Teologia Moral José Antonio Trasferetti. Chamando a atenção para a ambiguidade das redes sociais, para o fenômeno dos influenciadores digitais, para o mundanismo espiritual e para a importância da unidade na Igreja, a reflexão proposta pelo autor aponta caminhos para uma formação que dê prioridade à centralidade de Jesus Cristo, tanto em relação aos sentimentos a serem propostos quanto às ações a serem assumidas. O grau de exposição nas mídias digitais, o fanatismo religioso de cunho fundamentalista, a busca acrítica de formas de devoção, “correção” litúrgica e ortodoxia radical, a influência de um certo “magistério paralelo” são ameaças constantes no processo formativo que comprometem não apenas a unidade na Igreja, mas a interiorização e a vivência de valores que deveriam caracterizar discípulos missionários mais conformes ao próprio Cristo.
No décimo terceiro capítulo, a doutora em Teologia, Margaret Eletta Guider, aborda o tema da crise da fé e da mediocridade espiritual (p. 269-292). O objetivo da autora é refletir criticamente sobre um dos fatores que contribuem para que padres e religiosos abandoem o sacerdócio e a vida religiosa consagrada: a mediocridade espiritual. Entendida como falta de fé, ela indica a ausência ou perda de uma autêntica de profunda experiência pessoal e comunitária de Deus, de um seguimento radical a Jesus e de uma humilde abertura ao Espírito. Nessa perspectiva, a autora discorre sobre o que constitui uma crise de fé; quais são as tendências humanas que favorecem a mediocridade espiritual; como tais tendências ajudam a criar e manter ambientes tóxicos que favorecem uma crise de fé e o abandono da própria vocação e, por fim, quem é o responsável por identificar e questionar a aceitação da mediocridade espiritual como normativa e oferecer uma visão alternativa para fomentar a prática ativa da virtude como elemento-chave de formação religiosa e presbiteral ao longo da vida.
Família, discernimento vocacional e processo formativo (p. 293-316) são tratados pela doutoranda em Teologia Carolina Mureb Santos no décimo quarto capítulo. A autora problematiza a noção de família e os diversos arranjos familiares contemporâneos, nem sempre levados em conta pelas equipes formadoras, para, em seguida, considerar a importância da família no processo de discernimento vocacional e no processo formativo como um todo. Ela ainda reafirma a necessidade de se conhecer a família dos vocacionados para melhor identificar os valores que trazem consigo, e aponta para a necessidade de ressignificação da relação familiar, quando se fizer necessário, a fim de que os vocacionados possam amadurecer e viver sua vocação com maior liberdade e generosidade.
No último capítulo, o doutor em Teologia, Agenor Brighenti, trata da transição do seminário para a vida apostólica e ministerial (p. 317-351). Para o autor, nessa transição, três fatores estão implicados: o perfil do ministério presbiteral no seio do cristianismo: do sacerdote do altar ao presbítero-pastor; o seminário como lugar inadequado para a formação: do seminário que forma “sacerdote” para a casa de formação que forma o presbítero-pastor; e a centralidade da pastoral no processo formativo de futuros pastores. Todos esses “deslocamentos” trazem consequências sérias para a Igreja – como a dessacerdotização do presbítero – e para o próprio processo formativo – como a superação do clericalismo – e obrigam os responsáveis pela formação a repensar o perfil de presbítero que se está formando e o Seminário como lugar exclusivo de formação.
Eis o conteúdo desta Obra: ela nos coloca diante de temas e questões que nos desafiam moralmente e que, diariamente, batem às nossas portas. Os capítulos são provocantes, iluminadores e esclarecedores e vêm ao encontro dos inúmeros desafios morais constatados por inúmeros formadores e formadoras no seu ministério cotidiano, desafios que não podem ser ignorados.
Nas palavras de Dom Arnaldo Carvalheiro Neto, na Apresentação (p. 7-10), esta é uma Obra de arte talhada a diversas mãos, por leigos e leigas, religiosas e religiosas, padres e bispos comprometidos com uma formação repleta da criatividade e da ousadia próprias de artistas que sabem ser originais sem perder os laços com a Tradição e o magistério da Igreja. Fidelidade, singularidade e frescor típicos de pessoas apaixonadas pelo Reino, que fazem de seus escritos um cinzel tão necessário quanto urgente para a formação de novos presbíteros e religiosos no Brasil.
Os leitores e as leitoras que beberem deste manancial, que se deixarem envolver e provocar pelos temas abordados, farão uma experiência, em certos momentos, doída, mas não menos prazerosa, pois terão a oportunidade de testemunhar que, de fato, apenas a verdade pode libertar. Que esta Obra possa produzir os devidos frutos!