Atualidades

Como gostaria de uma igreja mais próxima das pessoas

06/03/2024

A relação com a Palavra de Deus, a oração, os jovens, as mulheres, os homossexuais: Papa Francisco expõe a sua história aos leitores da revista Credere (PAULUS Editora, Itália) e revela que até o papa aprende quando escuta o sofrimento do povo. Tradução de Darlei Zanon.

por Vincenzo Vitale

Eis o artigo:

Atravessar a porta de Sant’Ana e subir as escadas do Palácio Apostólico para encontrar com o Papa Francisco, que inesperadamente me ligou dois dias antes para conceder entrevista à revista Credere, é uma emoção muito grande, não vou esconder. Encontrar-se pessoalmente com o Santo Padre não é algo corriqueiro. Chego um pouco emocionado, pensando em como cumprimentá-lo e como começar, mas é suficiente o seu cumprimento, ao mesmo tempo afável e simples, para aliviar a tensão e imediatamente me deixar à vontade. Uma frase de santo Agostinho me vem à mente quando ele reflete sobre sua relação com os fiéis: “Para vocês eu sou bispo, com vocês sou cristão”. Tenho a sensação de que as duas dimensões coexistem serenamente no bispo de Roma, que “se apresenta” de forma tão fraterna. Um pastor consciente da sua pertença e proximidade ao povo de Deus, cujo contato tanto sente falta, como nos confidenciará no intenso colóquio que dedicou à revista Credere.

Santidade, qual é seu personagem favorito, “do coração”, entre aqueles do Evangelho, aquele com o qual você mais se identifica e o qual retoma com frequência?

Não há um só, são vários os que gosto muito. Um deles é Lázaro, porque ele estava morto e foi ressuscitado. Ele me faz pensar na minha vida de conversão, em como o Senhor me tirou do túmulo. Outra personagem é a viúva de Naim, que chora pelo filho morto: sua capacidade de chorar pelas pessoas que se perdem. Gosto também da mulher que toca secretamente no manto de Jesus (Marcos 5,25-34). Às vezes, na oração, fazemos essas coisas um pouco ousadas, para que o Senhor nos escute. Estou citando várias mulheres, curioso, não é? Gosto também de Marta: Maria é contemplativa, mas quem trabalha e leva adiante as coisas é Marta. Isso me lembra muitos homens e mulheres que trabalham duro e levam adiante o trabalho da fé na Igreja. E finalmente os apóstolos: Pedro, com sua “sabedoria audaz”, e a contemplatividade de João. Eu disse “gosto deles”: melhor seria, sinto-os próximos. E depois, entre os santos modernos, são Francisco.

Santidade, no passado a Igreja sempre foi capaz de falar às pessoas simples e de propor uma fé “popular”. Hoje, porém, as palavras do cristianismo parecem não chegar aos nossos contemporâneos. Especialmente aos jovens. Como alcançar hoje o coração das pessoas?

Não existe aqui uma resposta universal. Há países, do Terceiro Mundo ou da América Latina, onde existem experiências pastorais que falam às pessoas simples : falam aos jovens com a linguagem dos jovens… Por outro lado, há realidades “sofisticadas” que não conseguem, movimentos que são um pouco “refinados” e que tendem a formar uma “ecclesiola” (uma igreja separada) de pessoas que se sentem superiores. Este não é o povo santo e fiel de Deus. O povo de Deus é constituído por crentes que reconhecem que são pecadores e seguem em frente. Não tenho nada contra os movimentos, que fazem tanto bem. O movimento é bom quando insere você na Igreja concreta, mas se é seletivo, se separa da Igreja, se leva você a pensar que é um cristão especial, isso não é cristão.

Santidade, aproximamo-nos do Jubileu de 2025. O senhor quis um ano de preparação centrado na oração. Por quê?

Pedi que se intensificasse a oração a fim de que pudéssemos nos preparar para viver bem o Jubileu, que é um evento de graça. Precisamos redescobrir o valor e a necessidade da oração, a nível pessoal, na vida da Igreja e do mundo. Foi o Senhor quem nos disse para rezar! “Rezem, rezem, peçam e lhes será dado.” Não podemos esquecer isso! Não esqueçamos de bater na porta!

Santidade, nos últimos tempos vimos o senhor cansado, andando com uma bengala ou em uma cadeira de rodas. A “cultura do descarte” penaliza quem não a acompanha. Como o senhor lida com suas fragilidades e limitações?

A Igreja é governada com a cabeça, não com as pernas. Evidente, apesar das limitações podemos continuar adiante. Quanto a este tema, na pastoral devemos ajudar as pessoas que tem limitações: evitar escondê-las e “arquivá-las”. E poderíamos pensar em alguma atividade na Igreja para essas pessoas, para que possam desenvolver o sentido de pertença. Um cristão nunca é “arquivado”. A “cultura do arquivo” não é algo cristão.

Santidade, o senhor sempre teve uma predileção particular pelo povo e pela fé das pessoas simples. Há alguma situação, algum encontro entre os tantos que teve durante o Pontificado, que conserva de modo especial no coração?

Recordo de dois episódios, um aqui em Roma, um na Argentina. Numa audiência, há dois anos, uma senhora fazia sinal para eu me aproximar, me chamava, e eu fui. Agricultora idosa, ela tinha 87 anos, mas não parecia. Perguntei o que ela comia para ficar assim: ravióli, ela respondeu, ravióli feito por ela mesma… e ela me deu a receita do ravióli. Pedi que rezasse por mim. Ela me garantiu que rezaria, mas me disse para ter cuidado. Então perguntei se ela estava rezando por mim ou contra mim. E ela disse: “Não, Santidade, você não erra, ali dentro alguns rezam contra você”. A sabedoria, a coragem dos idosos! O outro episódio aconteceu numa favela de Buenos Aires, onde fui celebrar a missa quando era arcebispo. Durante a viagem, soube-se que João Paulo II havia morrido. Estávamos conversando sobre a eleição do novo papa com o povo simples da favela. Uma senhora idosa me perguntou se eu poderia ser papa. Sim, eu disse a ela. Aí ela me deu um conselho: comprar um cachorrinho. Eu perguntei o porquê. “Antes de comer, dê comida ao cachorro e espere um pouco…”.

Nenhum papa antes de sua santidade deu tanto espaço e papéis tão importantes às mulheres na Cúria Romana. O senhor repete várias vezes que a questão do “rosto feminino” da Igreja não é apenas um reequilíbrio de poder. O que ainda precisa ser feito para que as mulheres participem verdadeiramente na vida da Igreja?

Aqui é importante ter presente o princípio petrino e o princípio mariano. O princípio petrino diz respeito ao ministério: Pedro, os bispos e os presbíteros. O princípio mariano é eclesial, é a pertença à Igreja: porque a Igreja é mulher, é esposa. Pedro não é mulher, não é esposa. É mais importante a Igreja-esposa do que Pedro-ministro! Abrir às mulheres o trabalho na Cúria é importante. Inclusive mulheres que ajudem no ministério: por exemplo, há uma congregação de irmãs peruanas que vão às pequenas cidades onde não há padre, dirigem as paróquias, batizam (até um leigo pode fazê-lo), dão a Comunhão, realizam o funeral… até que seja designado um pároco. Mas o mais importante não é a ministerialidade da mulher, fundamental é a presença da mulher. Na Cúria Romana encontramos hoje várias mulheres e haverá mais, porque elas realizam certas funções melhor do que nós, homens. A governadora (secretária geral do Governatorato da Cidade do Vaticano), por exemplo, irmã Raffaella Petrini, está fazendo coisas maravilhosas. Também as mulheres que estão no Dicastério para nomear bispos… todos estes lugares precisam de mulheres. Há um processo em andamento nesse sentido. São várias secretarias, pense na irmã Alessandra Smerilli no Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, outras mulheres no Dicastério para a Evangelização, dos Religiosos…

Sente que iniciou uma mudança de época?

Na verdade, não! Algumas pessoas assim o dizem, sim… eu sigo em frente como posso.

CREDERE. Per vivere l’avventura della fede (“Crer: Para viver a aventura da fé”) é o nome da nossa revista. Queremos ajudar as pessoas no seu caminho de fé e a viver o Evangelho com alegria. A sua santidade, o que traz alegria neste momento?

O povo me dá alegria! Quando estou com as pessoas, sou feliz. Quando estou com a administração (do Vaticano), faço o que tenho que fazer, é verdade, mas quando estou com o povo é outra coisa… eu gostaria de poder andar livremente na rua, mas não é possível. Fiz isso algumas vezes, para ir ao oftalmologista ou para comprar alguns discos, mas em segredo. Eu aprendo com as pessoas! Quando você encontra um pai de família que ganha o salário mínimo, que vem se confessar e diz que quando chega em casa está cansado e não pode ficar com os filhos porque eles já estão dormindo e de manhã ele levanta antes mesmo deles acordarem; e aí ele confessa que o prazer dele aos domingos é brincar com os filhos… ali você aprende! O povo sofre muito… nós, clérigos, às vezes vivemos no conforto… precisamos conhecer o trabalho e o sofrimento do povo…

Santo Padre, após a publicação da declaração Fiducia supplicans houve muitas reações. Além das questões em si, qual é a essência do que está escrito? Qual é o coração do documento?

Os pecados mais graves são aqueles que se disfarçam com uma aparência “angelical” (cf. 2Coríntios 11,14). Ninguém se escandaliza se eu dou a bênção a um empresário que talvez explore as pessoas: e isso é um pecado gravíssimo (aqui a voz do papa se torna muito forte). Enquanto ficam escandalizados se eu der a bênção a um homossexual… Isto é hipocrisia! Devemos respeitar a todos. Todos! O coração do documento é o acolhimento.

Alguns questionam: como podemos abençoar um casal homossexual que nos procura?

Mas eu não abençoo um “casamento homossexual”, abençoo duas pessoas que se amam e também peço a eles que rezem por mim. Nas confissões, por exemplo, quando surgem essas situações – homossexuais, pessoas recasadas –, eu rezo e abençoo sempre. A bênção não deve ser negada a ninguém. Todos, todos, todos. Atenção, estou falando de pessoas: daquelas que são capazes de receber o sacramento do batismo.

Santidade, gostaria de deixar uma saudação aos leitores da revista Credere?

Sou contente que vocês sejam leitores desta revista que faz tanto bem. A beleza desta revista é que ela abre horizontes. Ter horizontes é futuro!