“A Palavra de Deus é viva e eficaz, mais cortante que qualquer espada de dois gumes; […] ela sonda os sentimentos e pensamentos mais íntimos.” (Hb 4,12) Com essas belas palavras da Carta aos Hebreus iniciamos o percurso de releitura de outro documento fundamental do Vaticano II, que trata exatamente da Revelação Divina: a constituição dogmática Dei Verbum.
Por Darlei Zanon, jornalista e assessor editorial da PAULUS Editora
Eis o artigo:
A constituição Dei Verbum é fruto de um caminho de amadurecimento que levou anos, sofrendo particular influência das encíclicas Providentissimus Deus (de Leão XIII), Spiritus Paraclitus (Bento XV) e Divino Afflate Spiritus (Pio XII). Desenvolvimento lento, mas que refletiu uma necessidade da Igreja: resgatar o valor e centralidade da Sagrada Escritura. Por ocasião do Concílio, chegaram a Roma 102 proposições que foram selecionadas, agrupadas e aprofundadas pela comissão preparatória. Devido a sua complexidade, e após 104 intervenções, os padres conciliares pediram que se parassem as discussões e que o esquema fosse reelaborado. O texto atual foi promulgado a 18 de novembro de 1965, após receber 2.344 votos a favor e seis contra.
Com tal constituição, o objetivo do Concílio era difundir a Palavra de Deus, em cumprimento ao desejo de Cristo que anunciou “Vão pelo mundo todo e proclamem o evangelho a toda criatura.” (Mc 16,15) Logo no seu proêmio, a Dei Verbum (DV) destaca o objetivo de “propor a genuína doutrina sobre a Revelação Divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação; acreditando, espere; e esperando, ame.” (DV 1)
A estrutura do documento é bastante simples, mas concentra um ensinamento muito belo e profundo. O primeiro capítulo é sobre a Revelação. Descreve o processo contínuo de comunicação entre Deus e o ser humano. Revelar é uma palavra que deriva do latim revelare e significa tirar o véu, divulgar, mostrar, dar-se a conhecer. São muitos os sinônimos, mas a ideia central é exatamente esta: manifestar. Deus se revelou, se deu a conhecer aos nossos antepassados, manifestou sua vontade e sua verdade diversas vezes ao longo da história com o objetivo de conduzir todos à comunhão. Na plenitude dos tempos, revelou-se de modo pleno e definitivo através do seu Filho, Jesus Cristo, o Verbo Encarnado. Em poucas linhas, a Dei Verbum apresenta os fundamentos de toda a Teologia da Revelação.
O capítulo II ocupa-se da transmissão da Revelação Divina. Confirma que o nosso acesso à Revelação acontece através da pregação dos Apóstolos e dos seus sucessores. É a chamada Tradição, que se origina nos Apóstolos e progride na Igreja sob a inspiração do Espírito Santo (DV 8). A Tradição ajuda a compreender a Escritura, pois as duas estão intimamente relacionadas, são dois pilares da fé cristã, provêm de Deus e tendem ao mesmo fim: conduzir o ser humano a Deus.
A seguir o documento confirma que a Sagrada Escritura foi escrita por mãos humanas, mas sob inspiração do Espírito Santo. Para a interpretação da Bíblia é preciso ter em conta sua inspiração divina, os gêneros literários, os estudos exegéticos e hermenêuticos e tudo que possa contribuir para um aprofundamento e melhor compreensão do texto sagrado. Incentiva-se assim as pesquisas e estudos bíblicos, primeiramente por parte dos pastores e pregadores, mas também por todos os cristãos, pois não é possível amar o que não se conhece, não é possível viver o Cristianismo sem conhecer o Livro no qual está escrito o que significa ser cristão. A Bíblia fará parte na vida dos cristãos e da Igreja somente se a conhecermos e amarmos. No Brasil, desde 1971, temos um sinal concreto certamente fruto desta mentalidade conciliar: o “mês da Bíblia”, que propõe de modo especial o estudo e aprofundamento de um livro da Sagrada Escritura.
Os capítulos IV e V tratam respectivamente do Antigo e do Novo Testamento. O Antigo (ou Primeiro) Testamento contém um panorama da história da salvação e serviu para preparar o advento de Cristo, que veio instaurar o Reino, como é descrito no Novo Testamento. Por fim, é descrito como a Sagrada Escritura age na vida da Igreja. É o capítulo VI. Ali vemos explícito o convite ao aprofundamento da Palavra de Deus através da tradução da Bíblia para todas as línguas, além do seu estudo e investigação. Como fruto deste esforço e incentivo temos hoje a Bíblia traduzida em 1785 idiomas.
A Escritura deve ser a alma da Teologia (DV 24). De fato, a partir do Concílio a linguagem bíblica generalizou-se no campo teológico e pastoral ao ponto de hoje falarmos de Animação bíblica de toda a pastoral. Foi uma das revoluções provocadas pelo Concílio na Teologia e na vida da Igreja. A constituição Dei Verbum deu origem a muitos outros bons frutos, tais como a renovação bíblica a nível litúrgico, teológico e catequético; a leitura e aprofundamento da Bíblia através do apostolado bíblico, com o aparecimento de diversos grupos, movimentos e iniciativas, as diversas versões e traduções das Escrituras, etc. Há, porém, ainda muito por fazer. Muitos cristãos estão distantes da Bíblia, ignorando seus ensinamentos e verdades. Outros tantos ainda fazem uma leitura fundamentalista ou superficial que induz ao uso deturpado do seu ensinamento. Enfim, muitos ainda não foram iluminados pela Palavra de Deus, que é “lâmpada para os nossos pés e luz para o nosso caminho” (Sl 119,105).
O grande apelo do Concílio é proporcionar o conhecimento sempre maior da Palavra de Deus para que “o tesouro da revelação confiado à Igreja encha cada vez mais os corações dos homens e mulheres” (DV 26). Esse apelo é tão atual que foi tema do Sínodo dos Bispos de 2008 – “a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja” – que posteriormente deu origem à exortação apostólica Verbum Domini, do papa Bento XVI. No documento preparatório do Sínodo se justificava a escolha do tema, pois continua atual “a necessidade de conhecer integralmente a fé da Igreja sobre a Palavra de Deus, de alargar com métodos adequados o encontro com a Sagrada Escritura por parte de todos os cristãos e, ao mesmo tempo, acolher os novos caminhos que o Espírito hoje sugere, para que a Palavra de Deus, nas suas várias manifestações, seja conhecida, ouvida, amada, aprofundada e vivida na Igreja e assim se torne Palavra de verdade e de amor para todas as pessoas.”
O Sínodo trabalhou a relação entre Revelação, Palavra de Deus e Igreja, numa clara referência e atualização da Dei Verbum. Juntando a releitura do documento conciliar com as fervilhantes ideias do Sínodo e da exortação apostólica, temos um grande incentivo para pegarmos a Bíblia e aprofundarmos sua leitura através do estudo individual, da participação em cursos de formação e escolas bíblicas, da catequese, da busca de material de apoio e, claro, da oração diária, especialmente a lectio divina. Oxalá ouvíssemos na nossa comunidade as palavras dirigidas por Paulo aos tessalonicenses: “irmãos, rezai por nós, a fim de que a Palavra do Senhor se espalhe rapidamente e seja bem recebida, como acontece entre vós” (2Ts 3,1).