Escrevi, no ano passado, um artigo que, segundo comentários recebidos em conversas com amigos e por correspondência, deixou espaço para aprofundamento. Refiro-me ao artigo Providência Divina e o lucro do sofrimento, publicado nesta mesma Revista (nº 116, maio-junho de 1984, pp. 29-34). Voltamos aqui ao assunto, aproveitando sugestões que vieram dos leitores. Num primeiro momento darei lugar à opinião dos leitores que se expressaram sobre a questão do sofrimento, depois de terem lido meu artigo referido. Não se trata de comentar a opinião deles, mas simplesmente de deixá-los falar, como se fossem coautores deste artigo. Em seguida, tentarei explicitar meu pensamento a partir da concepção da fraqueza de Deus.
I. A OPINIÃO DOS LEITORES
1. O sofrimento: fruto da liberdade e do desamor
A leitora Rosa Maria pensa que os sofrimentos não são encomendados por Deus nem mesmo queridos por ele. Na sua opinião, os sofrimentos são frutos do mau uso da liberdade humana. Eis um extrato de sua carta: “E isso que acontece de bom ou de mau é só por causa das ações dos homens porque eles usam bem ou mal a sua liberdade. […] Eu não acredito nisso (referindo-se ao sofrimento como punição de Deus), o Paizinho é puro amor e não castiga ninguém, apenas deixa gravado em nossos corações e mentes as leis naturais e somos nós mesmos que nos castigamos […]. Será que Deus que é Pai coloca um revólver na mão dessas pessoas e manda que elas se matem? Será que o avião quando cai, foi porque Deus não regulou bem essa máquina? Não se pode colocar a culpa em Deus pelos nossos erros cometidos. […] Se o mundo não vai bem, se as coisas não mudam é porque nós mesmos não nos propusemos amar verdadeiramente e vivemos ‘a nos punir’ com o chicote do nosso egoísmo, da nossa intolerância, do nosso coração cheio de indiferença e ódio. Também não aceito o ‘sofrimento como prova pedagógica’. É difícil para mim acreditar que todos nós devamos ter a mesma resistência de força moral e física que ‘alguns têm’. Sou enfermeira e já vi muito sofrimento. Já vi muita gente ‘aguentar firme’ um estágio final de câncer ou de uma gangrena e já vi também muitos doentes, mesmo sob efeito de entorpecente, ‘até subir nas paredes’ blasfemando e se maldizendo de tanta dor”.
2. O sofrimento: fruto da irresponsabilidade
A leitora Eclair também não aceita que o sofrimento seja querido por Deus. Ela acredita que os sofrimentos surgem e se propagam devido às falhas humanas. Ela diz: “Li recentemente teu artigo “Providência Divina e o lucro do sofrimento” […]. A interrogação: tudo o que acontece de mal à sociedade […] é porque Deus assim o quis? Isso deixou-me um pouco confusa, sabe, aceitar Deus como tirano é difícil. Acredito que é o homem que falha e não Deus que castiga. Por exemplo: a tragédia de Cubatão, para mim é impossível aceitar a ideia de castigo, punição ou meio de educação. Acredito na falha humana […]. A falha foi do homem e não de Deus, e isso aconteceu e acontece em todos os sofrimentos da humanidade; a injustiça por exemplo, o poder (riqueza) nas mãos de poucos e mais uma centena de coisas que se descrevêssemos precisaríamos de papel e mais papel. Vejo o sofrimento não como punição de um Deus malvado […]. Fazer do sofrimento o caminho para a eternidade, assim como Cristo: foi preciso ele sofrer para nos salvar. Porém sofrer para chegar a Deus não implica que Deus queira o nosso sofrimento. Quem ama não quer ver o outro sofrer e […] Deus é Amor”.
Esse comentário me recorda uma passagem do livro A nova reforma do bispo anglicano J. A. T. Robinson onde ele falava do entrelaçamento da ação de Deus e da ação do homem, no mundo. Quando ele tenta explicar a função da oração de petição, diz que a oração que chegou à maturidade não é aquela que pede e espera uma intervenção divina quando as coisas humanas falham. Exemplificando, ele imagina alguém rezando para que uma viagem de avião se realize do melhor modo possível. Ele diz: “Uma prece verdadeira é uma prece para o piloto e pelo piloto, para que sua responsabilidade seja aguçada, não diminuída, colocando sua confiança no amor ao serviço do qual sua vida está consagrada, e do qual nada poderia separá-lo, nem mesmo o pior que possa acontecer”[1].
Por sua vez, a leitora Regina julga que se Deus é Pai de misericórdia, ele não pode castigar ninguém e que não está correto a gente se preocupar em lucrar com os sofrimentos. Eis um extrato de suas opiniões: “Mas é também muito difícil fazer com que pessoas que foram acostumadas com a ideia de que ‘o que na terra se faz, aqui mesmo se paga’ (e dentro desse pensamento subentende-se que é Deus mesmo quem providencia o castigo para determinada pessoa) entendam que Deus não castiga, e que ele é Pai de misericórdia. […] Quanto ao lucro, […] só acho que existem pessoas que levam esse lucro a sério demais, pois se mortificam ao máximo para receber a recompensa depois”.
3. As soluções tradicionais não bastam
Outros leitores, além de comentarem o artigo, pediram maior esclarecimento na conclusão. É o caso de Márcia e do pe. Gerbrand J. Groen. Márcia escreve: “Só tenho uma ressalva. Gostaria que você tivesse colocado sua opinião mais claramente, pois as entrelinhas nem sempre são perceptíveis a todos”. O pe. Gerbrand faz o mesmo pedido: “Gostaria de solicitar, em resposta a mim, ou para os leitores da Vida Pastoral, que modifique sua conclusão do artigo (item 7), não só amplie como também reconheça a possibilidade de ‘alternativas’! […] Nisto (referindo-se às conclusões sobre a doutrina tradicional), não ‘me parece muito clara sua posição, sobretudo na ‘conclusão’. Está pretendendo explicar, que, mesmo com a doutrina da Divina Providência, todos devem lutar ou colaborar com o Pai no combate ao mal, ou está inclinado a pensar que tudo está certo, ‘cada um tem aquilo que merece e não tem aquilo que não merece’? […] Foi esse, exatamente, o problema de Jó. E ninguém pode dizer ou provar que ‘qualquer mal ou sofrimento, afinal, é consequência ou resultado de pecado’, de si mesmo ou de outros. Portanto, a grande pergunta, parece, fica de pé”.
O pe. Gerbrand se estende mais amplamente sobre a questão do sofrimento e julga que as soluções dadas pela teologia tradicional não são suficientes: “Enfim, as teologias (frias) que não tomam por ponto de saída a situação do homem atual no meio das contingências, parecem condenadas a serem irrelevantes, pois nem sempre coincidem com a liberdade criativa de Deus, como se dá para descobrir na palavra da Bíblia […] tornando-se carne no sofrimento do mundo. Não tenho razão de desvalorizar as tentativas de solução ou de explicação que a Igreja e a fé dos cristãos procuram formular, mas dizer que com isso tudo já está dito e resolvido, parece demasiadamente simples diante da tendência da teologia hodierna de se aproximar do homem das culturas atuais. Talvez fosse esta opinião também a sua, mas na conclusão de seu trabalho não ficou bem claro”.
Partindo da leitura da Revista Concitium 9, 1983, número dedicado à questão de Jo, o pe. Gerbrand comenta: “Sabemos, hoje em dia, que o conceito de Deus interfere com o conceito da sociedade humana, e vice-versa: que, por exemplo, até justificam atitudes desumanas apelando em motivos religiosos […]. O Livro de Jó, a vida e atuação de Jesus em o Novo Testamento, mostram um Deus compassivo, que está ao lado do homem sofredor, que possui a alternativa de sua vontade livre, mas que necessita a compreensão e a colaboração de suas criaturas; ver isso, e falar disso, encoraja a todos, e passa a evitar o descompromisso de se engajar”.
II. O SOFRIMENTO DIANTE DA ONIPOTÊNCIA OU DA FRAQUEZA DE DEUS?
1. O novo desafio que vem do velho problema
A grande pergunta que permanece, apesar de todas as tentativas de resposta, pode ser formulada assim: como a Providência Divina pode governar a história e permitir, ao mesmo tempo, o exercício da liberdade humana? Como podemos crer numa história providencialmente conduzida e levar a sério a liberdade, a existência de tantos males? Haveria realmente uma Providência Divina dirigindo de fora e por cima a trama da história, constrangendo a liberdade humana, fazendo servir o mal a seus desígnios?
A crença na Providência Divina parece ter sofrido um traumatismo depois dos cruéis acontecimentos modernos e contemporâneos, especialmente com o advento das duas últimas guerras mundiais. Essa doutrina, apoiando-se nas Escrituras, principalmente no Antigo Testamento, onde se dizia que os judeus eram devidamente castigados, punidos por seus pecados, continuou depois repetindo estas mesmas expressões, aplicando-as, agora, aos cristãos. O povo judeu era vitimado por guerras, perseguições, opressões por causa de seus pecados, do abandono da prática da Lei[2].
Se isto é verdade, pergunta o teólogo judeu E. Fackenheim, como compreender e o que dizer quando os judeus são perseguidos e mortos torturados justamente por não quererem renegar sua fé? Como explicar o massacre de milhares de crianças judias, por exemplo, mortas não por causa de sua infidelidade ou de sua fidelidade, mas pelo simples fato de serem descendentes de judeus? Se seus avós tivessem renunciado a fé judaica, certamente elas teriam sido poupadas desse massacre, diz ele, referindo-se à perseguição nazista, na última Guerra Mundial.
Noutras palavras, se seus antepassados tivessem traído a fé, tivessem, portanto, pecado pela infidelidade, elas certamente não teriam sido perseguidas, torturadas e eliminadas. Não se pode aqui deixar de lembrar de um certo ditado popular que aplicado ao nosso caso soaria assim: se o judeu nega sua fé, ele será castigado por perseguições e mesmo será conduzido à morte; se ele afirma sua fé, se ele a mantém por fidelidade, será também perseguido, conduzido à morte. A doutrina tradicional da Providência justifica os dois casos, amparando-se sempre nas Escrituras. Quando o judeu é perseguido, torturado ou eliminado, só pode ser por duas razões: ou ele é um infiel, um traidor de sua fé, então é um castigo merecido que servirá também de exemplo para outros; ou ele é um fiel que Deus quer prová-lo, quer testá-lo.
Esse mesmo raciocínio simplista é aplicado no caso de perseguição aos cristãos e para explicação dos casos particulares que acontecem no dia a dia. Se um homem é rico ou tem boa saúde, mas não pratica a religião, não crê em Deus, se lhe advém uma desgraça e ele perde sua riqueza ou fica extremamente doente ou sofre um acidente e fica paralisado, isso não tem outra explicação senão a que diz: foi castigo de Deus; foi bem merecido; foi uma advertência! Suponhamos que se trate de um bom cristão, de uma pessoa admirada na comunidade, respeitada por todos por sua lealdade, por sua retidão, por sua fé e seu engajamento. Advém-lhe uma desgraça qualquer. Qual a explicação que se dá, normalmente? Deus quis prová-lo. Deus queria saber até onde ele o amava realmente!
A doutrina da Providência só se articula dentro deste pequeno espaço. Ela não conhece outras causas que provocam o mal. No fundo de toda argumentação e de toda explicação, só há realmente uma causa para explicar o sofrimento: o pecado. Por uma ou por outra destas razões, podemos perguntar em que consiste o amor de Deus. Onde ficam amor e misericórdia? Qual é o pai que querendo provar seu amor paternal ao filho surra-lhe quando este faz o mal e surra-lhe do mesmo modo quando faz o bem? De outro modo, podemos raciocinar assim: Deus diz ao homem: “Você é um ser livre, responsável pela história; livre para me amar, servir, obedecer; mas ai de você se você não me amar, não me servir e não me obedecer! Tome muito cuidado! Castigos, penas, sofrimentos estão reservados não só nesta vida, mas especialmente na vida eterna! E lá, os sofrimentos serão milhões de vezes mais dolorosos, mais aflitivos. Eles lhe perseguirão eternamente. Você nunca mais conseguirá se libertar deles! Portanto, cuide-se! Mas você é livre! Eu lhe trato com amor infinito e com infinita misericórdia! Mas, ai se você me desobedecer!”.
2. A presença engajada de Deus na história
Vimos como o mal e os sofrimentos não podem ser explicados simplesmente como o faz a doutrina tradicional da Providência Divina, pelo pecado. O sentido da história não é determinado simplesmente pelo pecado. Há outras forças e outros componentes. Seu sentido reside na sua marcha para frente, lá onde a liberdade se eleva sempre mais alta, para a divindade e onde o mal se aproxima sempre mais de sua derrota. Ou a história é portadora de tal sentido ou então ela é absolutamente sem sentido. Este sentido lhe é dado pela presença de Deus nela. Presença engajada. Contudo, a afirmação e a fé nesta presença divina na história levantam algumas contradições dialéticas.
A primeira contradição é aquela que se estabelece entre a transcendência divina e o engajamento divino, na história. A onipotência não se limita quando Deus se engaja? Noutras palavras, Deus não se limitou quando se encarnou?
A segunda contradição se põe entre o poder divino e a liberdade humana. Não haveria contradição se a presença divina, embora concebida como todo-poderosa, estivesse ausente, deixando ao homem o controle da terra da história?
A terceira contradição se enuncia assim: se o Deus presente num momento da história é o Deus de toda a história, ele está em conflito com o mal que aí se encontra. Todo mal da história é fruto da desobediência do homem?
Em entrevista à revista francesa, Le Point, o filósofo judeu Elie Wiesel, se expressa assim, sobre esta questão da presença divina na história: “Fui invadido pelo silêncio ou pela ausência de Deus. Noites após noites, eu me fazia as mesmas perguntas: ou Deus faz parte da História e é culpado, tanto quanto eu e você, ou então ele reside fora de todo campo histórico; neste caso, para que serve ele?”. E prossegue: “Não tenho resposta para todas essas questões. Eu as carrego comigo como se fossem feridas. No fundo, não cesso de me interrogar sobre um ponto central: o que quer Deus? Se ele não existe, essa história de sangue e de furor é de uma imensa banalidade. Mas se ele existe, tenho o direito de interrogá-lo, até o limite, de protestar contra ele”. (Como não ver aí o grito de Jó?)
Sem querer eliminar as contradições apontadas acima, podemos responder a Elie Wiesel que tanto no judaísmo como no cristianismo, se afirma uma presença ativa de Deus na história. O que cria problema seja, talvez, porque esta presença foi concebida em termos de onipotência. Uma presença toda-poderosa, não deixa espaço para a liberdade humana. Ela submerge a história num fatalismo sem saída e o problema do mal, do sofrimento que invade a história, não se concilia com ela. A afirmação de uma presença onipotente, na história, não pode deixar de conduzir a esse raciocínio: ou Deus é onipotente, pode resolver todos os problemas, aliviar todos os sofrimentos, mas não quer, e neste caso, ele não deixa de ser um tirano; ou então ele quer, mas não pode, neste caso, ele não é Deus. Se ele pode e quer, mas não o faz, então é um carrasco, alguém que se diverte com os sofrimentos humanos e não merece nenhum crédito! É um cínico que está se divertindo com os humanos!
Assim, é de se perguntar onde está, o que estaria fazendo agora, com que estaria preocupado o Deus todo-poderoso da “história sagrada”, fazedor de tantos e tão grandes prodígios, milagres em favor de seu povo? Estas afirmações não estariam em contradição com a história presente? Mas, não há, mesmo aí onde o milagre é abundante, onde a intervenção divina está por tudo, um limite na ação do Deus todo-poderoso? Vejamos! Deus não pode, no caso fundamental para o povo judeu, libertar Israel do Egito sem matar os egípcios. A alegria de uns é feita em cima da desgraça de outros. Nem mesmo o próprio Deus se liberta desse esquema, se aceitarmos os fatos como estão narrados nas Escrituras. Nem mesmo Iahweh todo-poderoso tem poder para agir de outra maneira, para fugir a essa ambiguidade!
Na sequência lógica desse esquema de pensamento, Deus não pôde salvar a humanidade sem que essa cometesse o maior de todos os crimes, o mais imperdoável dos pecados: o deicídio. O raciocínio funcionaria desta maneira: a humanidade é infeliz, padece, sofre, corre à perdição porque está no pecado. O pecado é uma dívida que nenhum homem, por mais perfeito e santo que seja, será capaz de pagá-la. Para que Deus perdoe todos os pecados e o homem seja salvo, ele exige a morte do próprio Filho. Mas a morte do Filho não se dá de uma maneira natural. Ele é morto. Os homens o conduzem à morte. Ele é torturado, crucificado. Sendo que o Filho é Deus igual ao Pai, os homens cometem um deicídio. Assim, o poder de Deus, poder infinito, não Encontrou outro meio para salvar a humanidade senão através de um gesto criminoso. Que poder infinito é esse que não encontra outro caminho para perdoar os pecados da humanidade senão por outro pecado, o maior de todos?
3. A concepção dolorista da vida
Aqueles que aceitam que Deus se apaziguou com a morte do Filho, são os que dizem que “sem sangue não há remissão dos pecados”. Estes alimentaram uma concepção dolorista da vida e da história. Essa mentalidade dolorista penetrou todas as camadas da população e se tornou lugar comum na piedade e nas pregações populares. O pe. J. Comblin, depois de constatar a existência dessa mentalidade dolorista no catolicismo popular, diz que: “O Cristo não quis idealizar o sofrimento, nem ensinar a passividade diante dele. O sacrifício de Cristo não consistiu na materialidade do sofrimento, e sim na obediência e no amor manifestados até os extremos do martírio, apesar do sofrimento e não por causa do sofrimento. O sofrimento não tem valor em si. A paixão e a cruz ensinam a fidelidade e a paciência na obediência e no amor. A verdadeira participação na paixão de Cristo é a ação de obediência e de amor até a perseguição se for preciso, mas não é o sofrimento”[3].
De uma maneira ou de outra, a dor, em suas múltiplas faces, nos faz perguntar: qual a esperança de uma Presença de Deus num mundo tão dilacerado, pelo sofrimento, pelas catástrofes sociais? Ao contrário daquilo que afirma a doutrina da Providência Divina, hoje Deus parece se ocultar totalmente. Não se vê onde opera a onipotência divina. Em vez de mantermos uma teologia da onipotência, não seria preferível e mais coerente com a realidade desenvolver uma teologia da fraqueza de Deus, como o fazem J. Moltmann e outros?
4. O sofrimento como componente necessário da evolução
Refugiar-se na teologia da impotência divina seria uma solução melhor que aquela proposta por aquele que foi o mais otimista dos cristãos, na atualidade? Referimo-nos a Pierre Teilhard de Chardin. Para ele, o sofrimento se inscreve na lei da evolução como necessidade desta, não como obstrução da vida. A finalidade e a razão do sofrimento é a produção da unidade, conforme ele se expressa no livro Le Milieu Divin (p. 105): “Um mundo em vias de concentração consciente deveria unicamente exultar, opinais vós. Bem ao contrário, direi eu. Um tal mundo é justamente aquele que o mais naturalmente e o mais necessariamente deve sofrer. Nada mais venturoso do que a união alcançaria: mas nada mais árduo do que a conquista da união”. Nestas condições, o mal torna-se constitutivo e inevitável no mundo. É surpreendente e curiosa a proposição teilhardiana no sentido de que o mal já não constitui nenhuma especial dificuldade, ou mesmo, recebe uma “solução teórica satisfatória”.
Vejamos o teor dos seguintes tópicos: “Se verdadeiramente tudo concorre, em nós e ao redor de nós, para uma grande união pelo amor, o Mundo deveria, segundo parece, estar mergulhado na alegria. Como é possível então, ao contrário, que cresça a dor? Por que as lágrimas e o sangue? Como pode o sofrimento introduzir-se num Universo pessoal? A minha resposta a esta pergunta, extremamente angustiosa para o espírito humano, será a seguinte: não apenas no Universo que eu venho considerando, o Problema do Mal não constitui especial dificuldade; mas ainda encontra a sua mais satisfatória solução teórica, e mesmo um esboço de solução prática”[4]. Na passagem de seu Comment je vois que nos propomos ler agora, Teilhard torna-se mais explícito ainda: “Por efeito de hábitos inextirpáveis o Problema do Mal continua, automaticamente, a ser declarado insolúvel. Mas verdadeiramente pergunta-se: por quê? No Cosmo antigo, que se supunha ter saído perfeito e acabado das mãos do Criador, é bem natural que tenha parecido difícil a conciliação entre um Mundo parcialmente mau e a existência de um Deus a um tempo bom e todo-poderoso. Mas nas nossas perspectivas modernas, ao contrário, de um Universo em estado de Cosmogênese […], como é possível que tantos bons espíritos se recusem obstinadamente a ver que, intelectualmente falando, o famoso problema já não existe”.
Mesmo sabendo que, por razões de métodos, Teilhard de Chardin permaneceu ao nível da reflexão cósmica, não se adentrando ao nível existencial da interioridade humana e do problema da liberdade[5], não se pode fugir à acusação irônica de otimismo ingênuo e mirabolante. Nestas perspectivas teilhardinas, o sofrimento não é nada mais do que lenha e carvão, necessários para cozinhar a evolução.
III. CONCLUSÃO
Na maior parte de seus escritos, a Bíblia se move num esquema simplista que funciona assim: o pecado acarreta males, desgraças, sofrimentos, exílios; o arrependimento provoca a bênção de Deus, a volta do exílio. A fidelidade proporciona bens, prosperidade, numerosos filhos. A infidelidade provoca pobreza, doenças, opressão, guerras.
Dizer que a causa das catástrofes é o pecado é insuficiente para explicar o curso das catástrofes na história, das misérias que a invadem. A afirmação da onipotência divina operando na história também se esvazia diante da realidade de uma história tecida de tantas misérias, de tão numerosas e sangrentas guerras e do acúmulo de sofrimentos de inocentes. Dizer que toda essa dor, essas misérias e sofrimentos são necessários para a evolução da humanidade é uma outra versão do princípio maquiavélico de que “os fins justificam os meios”. Parece que só nos resta a atitude do salmista que se queixava, numa situação de sofrimento, que Deus escondia seu rosto. A teologia atual sente-se na obrigação de se expor ao mundo secularizado, crítico, e apelar para a “dissimulação de Deus”. Contra a metafísica teológica da onipotência divina, na história, talvez tenhamos que dizer como D. Bonhoeffer que “só um Deus que sofre pode salvar-nos”. Em vez de uma presença divina perceptível e se manifestando em tudo e por tudo, talvez tenhamos que pregar sobre a ausência de Deus em nos perguntando como Deus pode expressar seu amor num mundo de miséria e de sofrimentos. Se o Deus cristão é um Deus que se encarna, então é um Deus que assume a história com o homem, que aceita o jogo da história da liberdade humana. Então é um Deus que dissimula sua glória, sua onipotência na face do outro, do próximo, especialmente do pobre, do que sofre, do que está encarcerado, do que está abandonado, indefeso, explorado, oprimido. Um Deus que não se impõe pela onipotência, mas pela impotência da carne, na qual está dissimulado, quer chegar até ao homem e sentar-se à mesa com ele e participar de seus dramas, de suas lutas, fracassos e vitórias.
Penso que através destas linhas meu pensamento ficou mais claro, o assunto se ampliou. Seria pretensão demais querer encontrar resposta satisfatória, neste artigo, para tão vasto e antigo problema como o é a questão do sofrimento. Ele permanece aberto convidando-nos, desafiando-nos a prosseguir sempre tentando, prática e teoricamente, encontrar uma resposta.
[1] La Nouvelle Reforme. Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1967, p. 123.
[2] Quest for Past and Future; Essays in Jewish Theology. Bloomington: Indiana University Press, 1968, cap. 1; onde este tema é largamente desenvolvido.
[3] Os sinais dos tempos e a evangelização. São Paulo: Duas Cidades, 1968, p. 244.
[4] L’Energie Humaine, p. 105.
[5] C. Tresmontant. Introduction à Ia pensée de Teilhard de Chardin. Paris: Seuil, 1956, pp. 117-118.
Pe. Roque Frangiotti