A palavra obediência, no nosso falar comum, parece significar a fidelidade ao cumprimento de ordens ou leis emanadas dos superiores; uma observância cuidadosa, se não escrupulosa, de tudo o que é mandado.
De fato, o Dicionário Houaiss registra obediência como: 1. ato ou efeito de obedecer; 2. condição ou qualidade do obediente; 3. submissão completa. Registra obedecer como: 1. submeter-se à vontade de outrem; 2. estar sob o comando de; 3. agir ou estar de acordo com. E obediente como: 1. o que obedece; 2. o que é excessivamente dócil, submisso.
No Novo Testamento, e especialmente em Paulo, não é esse o significado; ao contrário, obediência, para Paulo, parece opor-se à observância, cumprimento ou prática das obras da lei. Assim nos perguntamos: qual o significado da expressão “obediência da fé”? Que tipo de genitivo (subjetivo, objetivo, hebraico, epexegético) é esse “da fé”? Quais as consequências disso?
1. A palavra obediência em Paulo
Nas cartas incontestavelmente paulinas nós encontramos dez vezes a palavra obediência, em grego hypakoé, e cinco vezes o verbo obedecer. A palavra é formada de akoé, que significa audição, escuta, atenção, como, em latim, obedire, obedecer, vem de audire, ouvir. Isso poderá nos ajudar a entender o significado que Paulo dá aos vocábulos obediência e obedecer.
Começando pela palavra akoé, nós a encontramos em 1Cor 12,7 com o significado físico de audição, capacidade de ouvir. “Se o corpo fosse todo olho, onde ficaria a audição?”
Na primeira carta aos Tessalonicenses, o primeiro escrito do Novo Testamento, encontramos, em 2,13, a palavra que traduzimos por escuta. Assim, literalmente: “Por isso, também nós damos graças a Deus sem cessar porque, tendo recebido a palavra da escuta de nossa parte de Deus, vós a acolhestes não como palavra humana, mas, o que verdadeiramente é como Palavra de Deus que age em vós que tendes fé”.
Como será possível entender isto: “tendo recebido a palavra da escuta da parte de nós de Deus…”? A maioria das traduções modernas entende o termo escuta com o significado de pregação — no caso, de Paulo. Só fica um pouco obscuro, porque Paulo teria inserido as expressões “da escuta (ou pregação) da parte de nós” entre palavras que normalmente andam juntas “Palavra de Deus”.
Esse “da parte de nós” está ligado ao substantivo “escuta”, então com o significado de pregação, como o interpretam as traduções modernas, ou “da parte de nós” se liga ao verbo “recebestes”? A vulgata (antiga e nova) entende que está ligado ao verbo “recebestes, tanto que traduz, mudando a ordem do termo grego, “accepistis a nobis verbum auditus Dei” (recebestes da parte de nós a Palavra da escuta de Deus).
Fica a impressão de que Paulo já havia ditado os termos “palavra da escuta”, quando decidiu lembrar de que a havia recebido dele e de seus companheiros e inseriu o “da parte de nós”. Assim parece interpretar a antiga tradução latina, pois situa o “da parte de nós” ligado diretamente ao verbo “recebestes”.
Aí o mistério começa a se desvendar: a Palavra de Deus que os tessalonicenses receberam de Paulo e seus companheiros é palavra que merece escuta, atenção, audiência. É palavra que provoca a fé, a que ele faz referência no fim do período. A escuta tem que ver com a fé e a fé tem que ver com a firmeza no compromisso, mesmo no meio das perseguições, como diz em seguida, e já pela terceira vez, nessa carta.
No capítulo 3 de Gálatas, em que Paulo põe em pauta a oposição entre lei e fé, a palavra escuta ocorre duas vezes, nos versículos 2 e 5. Em ambos ele põe a escuta da fé em contraste com as obras ou práticas da lei. Nessa carta, indignado com os judaizantes, Paulo manifesta suas convicções mais profundas. Aí, com veemência, põe em oposição a ideologia da lei, mentalidade segundo a qual a salvação depende da observância escrupulosa dos preceitos da lei, e a fé ou compromisso com o Messias Jesus.
A lei é o trilho do qual não se pode sair; na lei está tudo previsto, não há criatividade, não há procura. A fé é compromisso único com o Messias crucificado, é encontrar a vitória no fracassado, a bênção no excluído da cidadania e amaldiçoado pela lei religiosa (cf. Dt 21,22-23). A fé é procura, é criatividade, é deixar-se surpreender pelos fatos, perceber os sinais dos tempos, acolher as novas revelações de Deus, é nada previsto, é ouvido atento (“antena ligada”), é deixar-se conduzir por Deus a cada momento, em cada acontecimento. O espírito da fé é de escuta, a ideologia da lei é de observância.
No capítulo 10 (vv. 16 e 17) de Romanos, escuta ocorre três vezes com o sentido mais aparente de mensagem. Literalmente, mantendo a palavra escuta mesmo onde, em princípio, ela significa mensagem: “Mas nem todos obedecem à boa-nova, pois Isaías diz: ‘Senhor, quem acreditará na nossa escuta?’. Portanto a fé vem da escuta e a escuta vem pela palavra do Messias”. Notar apenas que “obedecer à boa-nova” é o mesmo que “acreditar na escuta” e que obedecer, fé e escuta são termos que estão juntos no mesmo contexto.
Passemos agora à palavra obediência (hypakoé), que ocorre dez vezes nas cartas incontestavelmente paulinas.
Comecemos pela carta a Filêmon. Onésimo, escravo de Filêmon, teria dado um prejuízo ao patrão, motivo pelo qual fugiu e foi procurar Paulo, que estava na prisão. Paulo o manda de volta com a carta, na qual fala insistentemente da fé e do amor de Filêmon, diz que Onésimo fora batizado por ele na prisão e agora era, portanto, seu filho; afirma que gostaria que Onésimo ficasse prestando-lhe algum serviço, mas não o solicitaria sem o consentimento de Filêmon, para que a possível ajuda não fosse forçada, mas espontânea, e pede que o receba como irmão ou como a si próprio, Paulo. Não diz que atitude Filêmon deve tomar quanto ao escravo fugido — pelas leis do seu tempo, poderia castigá-lo severamente e até matá-lo —, mas no versículo 21 diz que conta com a obediência de Filêmon. Que obediência é essa que não tem um objeto definido, uma ordem explícita?
Em 2Cor 7,15 Paulo diz que Tito lembrava com carinho a obediência dos coríntios.Tito havia levado a Corinto a carta que Paulo diz ter escrito (ou ditado) entre lágrimas, uma carta dura em defesa da autenticidade do seu ministério e da sua mensagem, o seu Evangelho. Não havia qualquer determinação concreta. Essa obediência também parece um tanto vaga ou seria mais uma atitude geral, e não o cumprimento de alguma ordem ou mandamento?
Outra ocorrência da palavra obediência verifica-se nos versículos 5 e 6 do capítulo 10 da mesma segunda carta aos Coríntios. É um provável trecho da carta escrita “entre lágrimas”. Paulo, acusado de fraqueza pelos seus inimigos em Corinto, diz-se capaz de subjugar todo pensamento “para a obediência do Cristo (ou Messias)”. Jesus foi um Messias obediente? Que genitivo é este, “obediência do Cristo”? É a obediência que o Cristo tem (genitivo subjetivo) ou é a obediência a Cristo (genitivo objetivo)? Ou serão as duas coisas ao mesmo tempo?
Na sequência (v. 6) Paulo diz literalmente: “estando nós preparados para castigar toda desobediência assim que a vossa obediência for completa”. Mais uma vez uma obediência genérica sem objeto determinado, significando uma atitude genérica.
Em Romanos, a última carta incontestavelmente autêntica de Paulo, na qual, pelas circunstâncias mesmas do momento, ele fez uma síntese completa e serena do seu pensamento, temos seis ocorrências da palavra obediência — além de mais quatro vezes o verbo obedecer.
No início e no fim da carta (1,5 e 16,26), temos a expressão obediência da fé. O objetivo da missão de Paulo é levar as pessoas à obediência da fé. O que significa isso: obediência que a fé possui (genitivo subjetivo)? Obediência à fé (genitivo objetivo)? Ou poderia ser o genitivo epexegético ou explicativo (como “o cachorro do vizinho”, “a jararaca daquela mulher”), a obediência que é a fé? A obediência seria, então, a atitude da fé. Quais seriam as características da fé para Paulo?
Confirmando o que foi dito no parágrafo anterior, no versículo 9 do capítulo 1, Paulo diz que a fé dos romanos é noticiada por todo o mundo e, no fim da carta, em 16,19, afirma que a obediência dos romanos se tornou conhecida de todos. Simplesmente troca a palavra fé pela palavra obediência. A fé é uma obediência — obediência é a atitude de fé.
No capítulo 5, quando põe em paralelo Jesus e Adão, Paulo fala (v. 19) da desobediência de um e da obediência do outro. Referindo-se a Adão, lembra que ainda não havia a lei e que esta (v. 20) se intrometeu para multiplicar as transgressões. Significa que, antes da lei mosaica, não se podia falar em transgressões, mas podia-se falar em obediência. Uma coisa são as transgressões (atos), outra a desobediência (atitude); assim como uma é a atitude de obediência, outra a observância de todos os preceitos — e só dos preceitos.
Rm 6,16 e 17, após dizer que o cristão, embora não esteja mais submisso ao regime da lei, não deve pecar, fala da obediência como atitude do servo ou escravo perante o senhor: “A quem te apresentas como escravo a esse deves obediência. Mas a obediência ao Evangelho deve ser de coração, e não por coação, deve ser de filho, não mais de escravo, deve ser fundada no amor, não no medo (cf. Rm 8,15).
Em 15,18 temos uma afirmação paralela às encontradas em 1,5 e 16,26, onde se diz que a missão do apóstolo é levar aos gentios a obediência da fé, literalmente: “Falar do que Cristo realizou através de mim para a obediência dos gentios”. A palavra obediência, para Paulo, portanto, é sinônimo de fé ou inclui a ideia de atitude de fé.
2. Fé em Paulo
O que significa a palavra fé em Paulo? Será a crença em milagres? A crença genérica em tudo o que pareça extraordinário, de fora deste mundo, ou crença em que Deus poderá fazer de tudo em meu favor? Ou será a aceitação intelectual da doutrina correta?
A palavra pistis, fé em grego, não é derivada do verbo pisteuo, crer, acreditar, dar crédito, mas do verbo peitho, que significa persuadir, convencer, tranquilizar e, como verbo intransitivo ou na voz média ou passiva, chega a significar obedecer (cf. C. Rusconi. Dicionário do grego do Novo Testamento. Paulus). Mas qual o objeto dessa fé, dessa convicção? Sem dúvida, a boa-notícia, o Evangelho. No capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, Paulo fala explicitamente do Evangelho que transmitiu: “O Cristo morreu pelos nossos pecados conforme as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia também segundo as Escrituras”.
O objeto da fé pode resumir-se em duas palavras: Jesus Cristo. Jesus, o pobre galileu crucificado, excluído e amaldiçoado, é o Cristo, o Messias aprovado por Deus na ressurreição. Sempre que Paulo se refere ao objeto da fé em Gl e Rm (Gl 2,16.20; 3.22.26; Rm 3,22.26), esse objeto é Jesus como Messias. Em Fl 1,27 ele fala em fé no Evangelho ou boa-notícia (evidentemente, de que Jesus é o Messias). Já em Fl 3,9, fé em Cristo ou no Messias. Em Fm 5 o objeto é o Senhor Jesus, o último (Jesus) como o primeiro (Senhor). Essa convicção faz a pessoa agir em consequência e, assim, torna-se obediência.
Na carta aos Gálatas, em luta contra os judaizantes, e depois em Romanos, reafirmando seus conceitos, Paulo opõe insistentemente a fé às obras. Obras significam as observâncias ou práticas da lei e especialmente a confiança nessas observâncias como caminho de salvação. A tendência da observância das obras da lei é negar novas revelações, novas descobertas, novos caminhos. Para a ideologia da lei, o caminho já está traçado e nada muda, Deus está de boca fechada, não fala mais. O importante agora é manter-se nos trilhos das obras da lei, praticar, guardar, cumprir, observar tudo o que ali está, o que nem os circuncidados fazem (cf. Gl 6,13).
A fé, por oposição, é a descoberta de novas revelações, novos caminhos. Messias crucificado é um absurdo para a lei, pois “maldito o que morre pendurado”, mas foi assim que Jesus nos livrou da maldição da lei (cf. Gl 3,13). Essa foi a grande descoberta do fariseu Saulo, perseguidor dos seguidores do Messias crucificado. Se Deus salva por meio de um crucificado, todo o sistema da lei desmorona.
3. Observância e obediência, um paralelo
A lei, as obras da lei, a observância dos preceitos, tudo isso é, para Paulo, uma escravidão. A fé, a escuta, a obediência significam liberdade. A observância satisfaz a carne, a vaidade humana, é coisa da carne, da inércia. A obediência ou escuta é coisa do espírito, do dinamismo interior voltado para Deus. A observância é mantida pela força do pecado, da condenação, da maldição, da morte. A fé, obediência ou escuta se liga à graça, à misericórdia, à gratuidade da justificação e da bênção. A observância dos preceitos da lei é velha, caduca, significa conformismo, falta de criatividade. A obediência é escuta, é novidade, busca, atenção aos acontecimentos. A observância exige submissão aos mestres. A fé é obediência a Deus. A lei, com seus preceitos, prevê tudo, determina tudo, não deixa lugar para a surpresa nem para a criatividade, exige que se observe. A obediência que é a fé deixa-se surpreender a cada momento, tem de ser criativa para responder aos apelos dos acontecimentos, aos sinais dos tempos, em que Deus fala. A observância é água parada. A obediência é rio que corre. A lei, a observância, é o trilho do qual não se pode sair. A obediência é escuta, é ouvido atento, “antena ligada”. Jesus posiciona-se claramente perante a observância: nos Evangelhos, diz que o sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado; ele, segundo Paulo (cf. Gl 3,13), para nos libertar da maldição da lei, tornou-se um amaldiçoado pela lei, obediente até a morte, a morte maldita de cruz. A observância quer cumprir o que Deus já falou, a obediência procura descobrir o que Deus fala a cada momento.
4. Consequências práticas
Há muitos anos uma pessoa de nossas comunidades disse: “como rezar pai-nosso e ave-maria nós estamos cansados de saber, o que nós precisamos aprender é a descobrir o que Deus está falando nos acontecimentos de cada dia”. Aprender a ler o Livro da Vida, como diz Santo Agostinho. Obediência vem de escuta. Então, estar atentos aos fatos, aos sinais dos tempos, como ecoa lá longe o Concílio Vaticano II.
A obediência elimina a observância, a sujeição à lei e aos mandamentos? A lei deve ser eliminada para que prevaleça a escuta e a obediência? Basta dizer: “Eu tenho o espírito”; para não precisar cumprir mais nada? Toda regulamentação deve ser abolida? O mesmo Paulo nos dá um critério: “Onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade!” (2Cor 3,17). Onde uma regulamentação detalhada se faz necessária, onde não se pode dar espaço para a liberdade, aí não está presente o Espírito do Senhor.
Joseph Cardjin, o fundador da JOC, criou o método Ver-Julgar-Agir, também chamado método de revisão de vida, que consubstanciava a formação na ação. VER significa partir da realidade, do fato concreto, por mais insignificante que pareça, conhecer seus detalhes e principalmente suas causas e consequências; o JULGAR, descobrir no fato, nos detalhes, nas causas e consequências o que há de pecado e graça, o que se pode ver de positivo ou negativo. Lido o livro da vida, chega-se facilmente ao outro livro da Palavra de Deus, a Bíblia; neste ponto a Bíblia ilumina a vida e a vida ilumina a Bíblia. O AGIR, combinar o que o grupo todo ou os membros individualmente vão fazer para responder aos desafios identificados, será objeto da revisão de vida na próxima reunião. Esse método formou uma geração de militantes obedientes a Deus, obedientes aos fatos, no mundo todo.
José Luiz Gonzaga do Prado