Uma transformação profunda da Igreja não é viável sem uma nova compreensão da fé. Como o Evangelho é uma proposta de vida em plenitude, a fé assume uma dimensão essencialmente política. Ela é, acima de tudo, uma práxis de vida nova.
1. Uma fé essencialmente política
A teologia da libertação, enquanto produção teórica, representa uma tentativa de repensar a fé onde a realidade do político entra como parte constitutiva. Trata-se de um passo qualitativo que ultrapassa as fronteiras da teologia política europeia, onde a preocupação maior era a de explicitar as implicações políticas da fé. Tratava-se de enfatizar a responsabilidade política dos cristãos.
Estaríamos sendo injustos se não reconhecêssemos na teologia política um passo importante, sem o qual a teologia da libertação não teria sido possível. Assim mesmo, é preciso reconhecer que a teologia política não representa um repensamento em profundidade da fé porque dificilmente consegue fugir de uma postura moralista. Ao mesmo tempo em que enfatiza a responsabilidade política dos cristãos, apresenta a fé como uma instância não política que, a partir de fora, julga as instituições políticas.
O esquema básico da teologia política é o de fé e política: duas realidades distintas que precisam andar juntas. Embora represente uma sensível mudança em referência à postura tradicional alternativa em termos de fé ou política, esta compreensão não vai à raiz do problema. E a razão está em que ela se apresenta fundamentalmente como dualista, permitindo a aproximação dos termos, mas vendo-os ainda como campos distintos. A pergunta que surge inevitavelmente é: sendo duas realidades distintas, por que deveriam andar juntas, não seguindo cada qual seu próprio caminho? A coexistência pacífica ou até mesmo a íntima colaboração sobrevivem enquanto as pessoas não tomarem consciência do potencial de conflito que leva a um retorno à situação anterior.
Apesar de toda a caminhada que se fez nos últimos anos no contexto de uma Igreja que surge das bases, num modo geral não se conseguiu superar o esquema dualista. Esta compreensão envolve a grande maioria das pessoas ligadas às forças de libertação: CEBs, movimentos populares, sindicatos, partidos políticos. O passo qualitativo fundamental só será possível quando se chegar a uma compreensão em termos de fé política. Embora ainda em pequena escala, constata-se a existência de grupos de base que chegaram a este nível. Estes grupos têm uma missão profética principalmente porque a teologia da libertação, com todos os seus desafios e interpelações, é sempre uma tarefa e nunca uma realidade acabada. A nova compreensão é a de uma fé essencialmente política. Para que se chegasse a isso, três acontecimentos foram decisivos:
a) A irrupção do pobre na Igreja
Tradicionalmente impedido de ingressar na Igreja pela porta de frente por aqueles que dela se apossaram, transformando-a em casa própria (os mesmos que detêm o poder político e econômico), o pobre se infiltrou pela porta dos fundos. Esta irrupção causou e vem causando um sério mal-estar em determinados setores da Igreja. Isso porque o pobre veio para ficar, recuperando a casa que lhe fora roubada. É possível que algumas queixas das comunidades de centro em relação às comunidades de base provenham justamente desta agressão positiva do pobre que busca desesperadamente recuperar seu espaço.
Mas o fato mais relevante é que o pobre deixa de ser objeto de assistência para tornar-se protagonista da História. Encontrando-se na condição de vítima, ele se torna uma força realmente interessada em mudanças substanciais. A parábola do grande proprietário (Lc 12,16-21), que decide demolir seus celeiros para construir maiores e lá recolher o trigo e seus bens, mostra como o comportamento do rico é anti-histórico. Ele é muito ativo, mas tudo o que faz visa conservar. No fundo, ele se revela incapaz de fazer história porque não está aberto ao autenticamente novo. O novo céu e a nova terra irrompem na prática de Jesus em referência aos marginalizados.
b) A marginalização da Igreja
Este segundo acontecimento tem estreita ligação com o anterior e se apresenta, pelo menos em parte, como sua consequência. Rompendo a aliança com o Estado, que mediatizava sua expansão (situação de Cristandade), a Igreja tornou-se uma instituição marginal. Ao mesmo tempo em que assegurava suporte ideológico à situação existente, marcada de forma incisiva pelo privilégio, ela era uma espécie de consciência moral que exercia função de policiamento frente aos excessos nas opções políticas. Com o tempo, decresce enormemente sua força política e consequentemente sua capacidade de persuasão. Nas instituições políticas, os critérios de conveniência substituem os critérios éticos.
Fato interessante a ser observado, esta marginalização da Igreja cresce em estreita ligação com a tomada de consciência da injustiça institucionalizada e da necessidade de comprometer-se com a vida lá justamente onde ela se faz ouvir num desesperado clamor. Alijada do poder político, a Igreja assume positivamente a marginalização fazendo uma clara opção pelos marginalizados. Este passo configurou um autêntico processo de conversão cujas consequências não se tem ainda condições de prever.
O processo pode perder-se pelo caminho e não passar de uma veleidade passageira. Mas se vingar, consequências radicais deverão afetar a realidade da Igreja em sua estrutura, em sua teologia, em sua espiritualidade, em sua prática pastoral. Há quem levante a suspeita de que a opção pelos pobres seria uma forma de recuperar a hegemonia através de uma nova força emergente. Embora os indícios pareçam excluir esta intenção, é justo que a Igreja se questione seriamente para que isso de fato não venha a ocorrer.
c) A fé como práxis de vida nova
Os dois acontecimentos anteriores tiveram como consequência um repensamento em profundidade da fé, redescobrindo sua significação na prática de Jesus. Foge aos propósitos desta reflexão descrever e analisar o processo que vai da ortopraxia (correta prática da verdade) para a ortodoxia (correta formulação da verdade) como critério decisivo de fidelidade ao Evangelho. Esta passagem teve consequências enormes na compreensão e vivência da fé. Cristão já não é aquele que pratica as exigências do Reino, mas o que nelas crê. Os reflexos desta passagem, ainda se fazem sentir em nossos dias. Temos aí, sem dúvida, uma das chaves de leitura dos processos inquisitoriais. Um pecado de ortopraxia pode ser facilmente perdoado por qualquer sacerdote no exercício normal do sacramento da penitência. Já um pecado de ortodoxia (sic!) submete o infeliz pecador a um processo frente às congregações romanas.
O terrível em tudo isso é que se perdeu o sentido profundo da prática de Jesus. Inserido no contexto da Apocalíptica, Jesus fala do grande julgamento que determinará a consumação da História (cf. Mt 25,31-46). Nele os homens não serão inquiridos a respeito de suas crenças ou de sua fidelidade aos artigos do credo, mas a respeito de sua fidelidade ao irmão: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (vv. 35-36).
Se levarmos em consideração o desrespeito à pessoa humana que se manifesta em certos processos inquisitoriais, quem seria o réu e quem o juiz? As leis, bem o sabemos, são mediações dos valores. Uma vez que estes deixam de existir, cai-se fatalmente no formalismo legalista. Jesus passou os anos de seu ministério combatendo a moral farisaica, que assegurava a supremacia da lei (mediação) sobre o homem (valor). Curioso e trágico é que a moral farisaica não se deu por vencida: ela deu a volta por cima e apossou-se das instituições eclesiásticas. Sem desmerecer a importância decisiva da profissão de fé, a perspectiva de Jesus nos orienta para a prática da fé. Em consequência, a fé é essencialmente práxis de vida nova: “Eu vim para que tenham a vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10b).
2. A resistência frente à fé política
A Caminhada das Comunidades Eclesiais de Base e a teologia da libertação, enquanto sua sistematização teórica, vêm encontrando sérias resistências dentro e fora da Igreja. Ainda recentemente vimos a teologia da libertação entrar para a crônica policial. A este respeito, muito haveria a se dizer principalmente porque entra em ação o poder com suas relações de força e sua capacidade inibidora e coercitiva. Não nos parece, contudo, o caminho mais fecundo a ser seguido. Desembocaríamos em querelas eclesiásticas, com a inevitável esterilidade da abordagem. Faremos uma tentativa de ir mais a fundo, descortinando a raiz antropológica desta resistência. Nesta perspectiva, três fatores, interligados, nos parecem essenciais:
a) A não aceitação da radical ambiguidade da existência humana
A antropologia reconhece no homem um desconforto estrutural: imerso nas relações históricas, ele deposita sua esperança na utopia. Esta, representando a plenitude do humano, assegura ao homem a razão do viver. E como a história está profundamente marcada pela ambiguidade, eliminando qualquer possibilidade de uma separação inequívoca entre o bem e o mal, é normal que o homem sonhe com o fim da História e com a concreção da utopia.
A tradicional teologia do desterro, compreendendo o homem como um “degredado filho de Eva, gemendo e chorando neste vale de lágrimas”, tem sido fator decisivo no bloqueio da responsabilidade histórica. A crítica cerrada que hoje se lhe faz tem sua razão de ser sobretudo em função da ideologia subjacente, que é um espiritualismo desencarnado a serviço da desumana situação existente. Em nível de antropologia, porém, há uma profunda verdade que nem mesmo sua deformação pode fazer esquecer: é a defasagem entre a utopia humana e a realidade histórica do homem. Esta é a razão de fundo do desconforto que caracteriza a condição humana. Uma eventual negação nos situaria fora da História.
b) A fé como espaço paralelo
Não podendo arrombar as portas da utopia e não tendo condições de efetivá-la em plenitude na História, uma vez que seu aparecimento determinaria o fim da própria História, o homem procura desesperadamente espaços paralelos, sem ambiguidade. Ele tem a impressão de que, sem esses espaços, a vida ser-lhe-ia insuportável. Um deles é a fé (teológica ou antropológica), com certeza o mais enfatizado. E, pela mediação da fé, ganham destaque os personagens que, de forma eminente, a encarnam em suas vidas. Um bom exemplo é a leitura das biografias dos santos católicos e dos revolucionários marxistas.
Sob este prisma, há entre o catolicismo e o marxismo uma singular coincidência: a crença na existência histórica de heróis não ambíguos. São pessoas que, supostamente, encarnam a plenitude da utopia e que, por conseguinte, podem ser apresentados como modelos inequívocos. Na medida em que se compreende a fé como sendo essencialmente política, destrói-se o sonho da utopia histórica.
c) A existência de duas Histórias
Em nível de fé teológica, a afirmação de uma fé como espaço paralelo sem ambiguidade e a consequente exclusão de uma fé essencialmente política encontraram expressão na crença ingênua de que existem duas Histórias: a sagrada e a profana. A primeira, marcada por etérea pureza, pairaria soberana acima das paixões humanas. Nela Deus aparece como o autor da História. Em consequência, a ambiguidade ali não encontra espaço. A segunda, marcada pelo pecado, é expressão do egoísmo, do interesse, da ambição, da injustiça. Nela o homem aparece como o autor da História. Ali está a razão de sua ambiguidade. A conclusão é inevitável: em dimensão de liberdade, o homem é incapaz de fazer história. Por outro lado, teologicamente fica difícil sustentar ainda o realismo da Encarnação.
3. Necessidade de uma recuperação frontal do espaço político
Estaríamos dando provas de miopia histórica se não reconhecêssemos que nos últimos decênios a Igreja caminhou a passos largos no sentido de redescobrir suas origens, encobertas, em grande parte, pelas infidelidades que lentamente se transformaram em estruturas de poder. A este respeito, é muito difícil localizar no tempo algum acontecimento que possa ser considerado como decisivo. Os grandes desvios passam pela mediação de pequenas infidelidades que, não raro, aparentam as feições da fidelidade. Captando a dimensão essencialmente dialética da História, é preciso reconhecer que esta se faz em termos de crítica e autocrítica. Quando se abandona uma destas exigências, as consequências podem ser a inoperância histórica (falta de crítica) ou a opressão institucionalizada (falta de autocrítica).
Na caminhada da Igreja da América Latina, a crítica à situação vigente (privilégio, empobrecimento, marginalização) avançou enormemente. Redescobriu-se, em fidelidade à pratica de Jesus, que a fé é essencialmente práxis de vida nova. O compromisso em favor dos marginalizados, o fortalecimento dos movimentos populares, a criação das CEBs e sua formulação teórica em termos de teologia da libertação, comprovam à saciedade o crescimento qualitativo da Igreja com sua capacidade de desencadear forças históricas libertadoras.
Uma consequência de importância fundamental foi a releitura da prática de Jesus. Não é correto afirmar que ele propõe na História uma equivalência indiferenciada. O reconhecimento de que haverá primeiros e últimos é essencial para que se compreenda o alcance de sua mensagem. No fundo, é uma questão de realismo histórico. O que há de revolucionário na prática de Jesus é o fato de que ele altera substancialmente o critério desta divisão. Não é mais a observância da Lei, como pretendiam os fariseus, mas a experiência da Graça. Esta alteração tem um alcance político extraordinário porque a estrutura de privilégio da sociedade teocrática de Israel fundamentava-se justamente na observância da Lei. E os marginalizados eram sempre pessoas que não se enquadravam nas exigências da Lei.
Se houve avanços em termos de crítica, o mesmo não se pode dizer em termos de autocrítica. A consequente morte da dialética priva a Igreja de sua força libertadora principalmente porque se passa com excessiva frequência de um fato para outro dentro do mesmo universo significativo. Não configura traição, e menos ainda retorno a situações superadas, reconhecer, em atitude de humilde autocrítica, que, a Igreja da Libertação está em crise porque, em seu afã libertador, negligenciou dimensões irrenunciáveis. Um sério exame de consciência é condição indispensável para uma caminhada de serviço ao homem, em especial ao marginalizado. Há, por conseguinte, alguns aspectos que necessitam ser repensados. Sem pretender fazer uma exposição exaustiva, vamos nos ater a alguns deles, que nos parecem essenciais.
a) Articulação inadequada entre fé e política
A proposta de uma fé política encontrou e vem encontrando sérias resistências em vastos setores da Igreja. Significativo nestas resistências, que por vezes assumem as formas de verdadeira rejeição, é que elas se manifestam também nas pessoas que se encontram na condição de vítimas das relações políticas. Não é difícil reconhecer que houve por parte dos teóricos da nova Igreja e principalmente por parte dos agentes de pastoral um erro pedagógico: a associação entre o que há de mais positivo na concepção do povo (a fé) e algo que este mesmo povo considera como negativo (política) enquanto espaço de negociatas, acordos escusos e fraudes (politicagem). Neste caso, falar em fé política equivale a um verdadeiro atentado contra a fé.
Frente a isso, faz-se necessário um passo atrás no sentido de recuperar a política em sua acepção mais ampla, enquanto tradução objetiva essencial da fé. Toda vez que esta se traduz em obras, torna-se por isso mesmo política. Dentro desta perspectiva, dizer que uma fé sem as obras é morta e dizer que uma fé não política é morta é dizer basicamente a mesma coisa.
Aqui está a razão pela qual não se pode sustentar a existência de duas Histórias. A História é uma só: é a que está radicalmente marcada pela ambiguidade. Este é o único espaço de que a fé pode dispor. É por isso que a experiência religiosa é sempre uma experiência ambígua. Ela tanto pode ser um fator de libertação como um fator de alienação. A História, por conseguinte, torna-se o grande espaço político onde o homem vive sua fé e onde acontece a epifania de Deus. A partir desta recuperação positiva, pode-se falar em fé política em sentido mais restrito, enquanto ligação essencial com as mediações históricas: CEBs, partidos políticos, movimentos populares.
b) Feridos à beira do caminho
As grandes transformações pelas quais passou a Igreja criaram grande esperança em poucos, insegurança e insatisfação na maioria. É possível que alguns não tenham querido caminhar. O mistério insondável da pessoa humana nos proíbe o julgamento da subjetividade moral. Este é o alcance antropológico do “não julgueis” do Evangelho. É provável que muitos não tenham conseguido caminhar. O fato é que há feridos à beira do caminho. Dentre esses, numerosos talvez devam ser classificados entre os irrecuperáveis para uma nova Igreja. A pergunta que surge inevitável é: “O que fazer com eles?”.
A situação é complexa e pode dar margem a possíveis legitimações daqueles que sistematicamente recusam a caminhada por razões de riqueza ou comodismo. De todo modo, é preciso que se diga que a Igreja da Libertação não pode perder a capacidade de misericórdia. Concretamente, duas atitudes são possíveis: 1) A do sacerdote e do levita que passam adiante porque estão ocupados com coisas importantes; 2) A do bom samaritano que se debruça e acolhe. Por outro lado, há que se reconhecer também que não é viável que se atenuem as exigências do Evangelho para incluir todo mundo. A Igreja não é a arca de Noé onde devam caber todos os bichos. O Evangelho é claro e essencialmente um sinal de contradição.
c) Atrelamento eclesiástico dos movimentos populares
A Igreja deve oferecer o melhor de suas forças para que surjam e cresçam os movimentos populares. Afinal, eles são mediações importantes do Reino. Uma questão que tem preocupado e até angustiado cristãos engajados é a de saber se a Igreja deve ou não assumir como própria uma mediação política. Não poderia ela dizer, por exemplo, que tal partido político é seu, propondo-o como o que responde às exigências do Evangelho?
Aqueles que julgam isso não só possível, mas necessário, insistem em que uma eventual recusa situaria fatalmente a Igreja no muro, oscilando no jogo de forças. A verdade é que o compromisso da Igreja é com o Reino, enquanto proposta de vida em plenitude para o homem, e não com suas mediações. Estas devem ser passíveis de crítica sempre que não estejam a serviço da vida. É, por conseguinte, fundamental que se respeite a legítima autonomia dos movimentos populares. O atrelamento é, na prática, uma declaração de imaturidade. Não se vê porque deveria constituir problema que eles atinjam um nível satisfatório fora da Igreja ou até em oposição a ela. Afinal, o importante não é que a Igreja esteja bem, mas que o homem viva bem.
d) O essencial do homem deve ser o essencial da Igreja
Há um dado teológico elementar: a Igreja não é fim em si mesma. Por maior que seja sua importância, cabe-lhe uma função de diaconia em referência à libertação/salvação do homem. Jesus não veio para fundar a Igreja, mas para libertar o homem. É por isso que, teologicamente, a questão-chave não é a de saber qual a missão da Igreja, mas qual o essencial do homem. Com mais exatidão, talvez pudéssemos dizer que a pergunta eclesiológica a respeito da missão da Igreja deve ser precedida pela pergunta antropológica a respeito da realidade do homem. A Igreja deve encontrar o máximo de expressão onde se joga a profundidade do humano.
A questão que surge é: o que é essencial no homem? Uma primeira resposta poderia ser: a atividade do pensamento. Dentro desta perspectiva, o homem seria alguém que pensa e reflete interpretando a realidade. Uma segunda resposta poderia ser: a atividade transformadora. Dentro desta perspectiva, o homem seria alguém que trabalha e produz modificando a realidade. Uma terceira resposta poderia ser: a festividade, o jogo, a contemplação, a celebração. Dentro desta perspectiva, o homem seria alguém que usufrui a realidade.
A terceira resposta parece encerrar o núcleo central da verdade a respeito do homem. Mas não se pode celebrar ou contemplar no abstrato. Não faz sentido celebrar a justiça e ao mesmo tempo estar comprometido com a injustiça ou então cruzar os braços diante da marginalização. Erro fatal seria o de atribuir à celebração existência própria. A Eucaristia não é a vida, mas a celebração da vida. Uma comunidade cristã amadurecida pode dizer sem temor que a celebração é sua expressão privilegiada, sabendo que sem responsabilidade histórica não faz sentido celebrar.
e) Superar a dinâmica capitalista da eficiência e do lucro
Em sentido positivo, dogmas são as verdades fundamentais que determinam a identidade de uma instituição, de um sistema, de uma comunidade. Seu abandono acarretará uma perda de identidade. Quando pensamos em dogmas, nossa atenção se volta espontaneamente para a Igreja. Mas o capitalismo também os tem: a eficiência e o lucro. Caso pretendesse renunciar a eles, o próprio capitalismo estaria autodestruindo-se.
A dinâmica da eficiência e do lucro não é necessariamente má. Por vezes sua aplicação torna-se essencial para se chegar a uma profunda transformação histórica. Movimentos populares, sindicatos, partidos políticos, mesmo ligando-se às aspirações populares, não têm como fugir a esta dinâmica. É justo e até necessário que eles concentrem sua atenção no cerne das forças efetivas e invistam nos que mais produzem. O mesmo não se pode dizer da Igreja. A adoção da dinâmica da eficiência e do lucro teria como consequência a perda de identidade da própria Igreja.
Em sentido estrito, somente na perspectiva da Graça é possível uma autêntica opção pelos pobres. Estes, com frequência, encontram-se numa tal situação de empobrecimento que nem esperanças suscitam em termos de uma efetiva força histórica. É por eles que a Igreja deve optar preferencialmente. No fundo, trata-se de reconhecer que, para a Igreja, a opção pelos pobres é opção pelos mais carentes e não pelos mais eficientes.
Trágica é a constatação de que o triunfalismo produtivo esteja corroendo a Igreja da Libertação. As CEBs e a Pastoral Operária substituem, com frequência, a dinâmica da gratuidade pela dinâmica da eficiência e do lucro. A título de exemplo pode-se recordar a concentração de forças em sindicatos fortes, como o dos metalúrgicos, e o descaso em referência, a outras categorias tidas como insignificantes: motoristas e cobradores de ônibus. A Pastoral Operária é, não raro, Pastoral Metalúrgica. Fora de uma perspectiva de fé teológica, quem teria coragem de optar pela realidade improdutiva? Os primeiros do Reino não são os primeiros da sociedade. Abandonando a dinâmica do Reino, a Igreja perde sua razão de ser.
Pe. Hermilo E. Pretto