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Publicado em março – abril de 2019 - ano 60 - número 326 - Pág. 03-12

Políticas públicas, direitos sociais e papel do Estado

Por Luiza Erundina de Sousa

As políticas públicas são forte motivação, capaz de articular os diferentes, amplos e difusos interesses manifestados, de forma organizada, pelos movimentos sociais. Estes se relacionam com as políticas públicas, deixando transparecer a complexidade da participação da sociedade na tomada de decisões, no encaminhamento de ações governamentais e no controle e fiscalização de sua implementação.

Introdução

No sistema capitalista, a sociedade é formada por classes sociais que ocupam posições de dominação ou de subordinação na hierarquia social, conforme a condição econômica dos que compõem cada uma delas. Em consequência dessa polarização, os interesses dessas classes são contraditórios ou antagônicos e a mediação entre eles é feita pelo Estado.

Embora seja, teórica e conceitualmente, considerado como árbitro entre os interesses conflitantes das classes sociais, o Estado tende sempre a decidir e agir no sentido de favorecer os que detêm maior poder econômico, os patrões, em detrimento dos que estão em condição economicamente inferior, os trabalhadores. Entretanto a mediação dos interesses de classe feita pelo Estado não é cristalizada; depende da correlação de forças existente em determinado momento ou conjuntura e que resulta de um processo dialético.

Historicamente, o Estado brasileiro, cujo caráter é elitista, autoritário e centralizador, tem orientado sua ação pela dinâmica do processo econômico, atuando sempre a favor da reprodução do capital (lucros) e como controlador das legítimas reivindicações dos trabalhadores e dos setores populares em geral. Um dos mecanismos usados pelo Estado para exercer esse controle têm sido as políticas públicas, vistas como concessões, e não como conquistas ou direitos. Ao contrário disso, as políticas públicas, numa sociedade verdadeiramente democrática, são a resposta do Estado às demandas dos cidadãos e cidadãs, enquanto direitos sociais.

Na medida em que os setores populares da sociedade tomam consciência dos seus direitos e de sua força, têm início as lutas reivindicativas e a organização dos movimentos sociais, que passam a se relacionar com o Estado de forma autônoma e independente, transformando, dialeticamente, a própria relação entre Estado e sociedade civil.

A partir daí, o Estado é forçado a atender às demandas da população, o que não significa, necessariamente, avanço na democratização das relações entre Estado (sociedade política) e sociedade civil. Enquanto não mudar o caráter historicamente assistencialista das políticas públicas, por meio das quais o Estado responde às demandas dos setores populares, não se pode afirmar que as relações entre povo e governo sejam democráticas nem, muito menos, que haja respeito aos plenos direitos de cidadania.

Com o avanço dos movimentos sociais, surgem novas formas de organização e de exercício da cidadania; formas diretas e descentralizadas de participação, que questionam o autoritarismo do Estado e exigem democracia e respeito à vontade popular. Assim, esses movimentos se propõem o desafio de construir uma esfera pública que amplie o espaço de decisão da sociedade civil organizada e aponte na direção de uma ordem política verdadeiramente democrática. Trata-se, portanto, da construção de um espaço onde as diferentes forças sociais e políticas se confrontam e travam suas lutas em defesa do interesse público.                                                                                                           

Nesse sentido, as políticas públicas se tornam forte motivação, capaz de articular os diferentes, amplos e difusos interesses manifestados, de forma organizada, pelos movimentos sociais. Estes se relacionam com as políticas públicas, deixando transparecer a complexidade da participação da sociedade na tomada de decisões, no encaminhamento de ações governamentais e no controle e fiscalização de sua implementação. Assim, os movimentos sociais constituem espaços de organização social e política da sociedade civil, em suas diferentes formas de ação coletiva voltadas à construção da democracia, e de um sistema político que propicie a criação de dignos padrões de convivência e de sobrevivência para as classes populares.

Com a reestruturação produtiva e seus impactos sobre o mundo do trabalho, o proletariado perdeu espaço como força social. A automação, a robotização, o desemprego em massa etc. geraram incertezas e perplexidade nas classes trabalhadoras em todo o mundo. Acrescentem-se a essa conjuntura as reformas políticas do Estado e do novo ordenamento jurídico, que levaram à desregulamentação das relações entre capital e trabalho e à redução dos direitos sociais. Em razão disso, os movimentos sociais adquirem maior importância e assumem novo protagonismo como “sujeitos coletivos” na luta em defesa de políticas públicas voltadas para o atendimento das demandas da população, tendo em vista as necessidades básicas como saúde, habitação, educação, cultura, esporte e lazer, transporte, segurança e outras tais como igualdade de gênero, de raça, de etnia e de respeito às conquistas e à garantia de direitos.

Na década de 1990, ao aderir ao neoliberalismo e buscar atender às novas exigências do mercado globalizado, o Estado brasileiro se submete, de forma radical, às orientações de políticas econômicas neoliberais ditadas pelos organismos internacionais, como FMI, por exemplo, sujeitando-se à lógica do mercado. Promove amplo programa de privatizações, corte nos gastos sociais, criação de impostos e forte redução das políticas sociais, restringindo os recursos destinados a atender aos segmentos excluídos da população.

Além disso, as decisões governamentais sobre políticas públicas mantêm-se centralizadas na esfera federal, desrespeitando o princípio constitucional de descentralização. Por isso, novo pacto federativo precisa ser celebrado, de modo a fortalecer, política e institucionalmente, as outras duas esferas de poder do Estado, sobretudo os municípios, que historicamente sempre foram esvaziados de poder, exatamente por serem a instância mais próxima dos cidadãos e, como tal, passível de ser diretamente pressionada pelas demandas populares e controlada pela sociedade com maior facilidade. Não basta, entretanto, descentralizarem-se prerrogativas, funções e decisões. É necessário também a transferência de recursos públicos suficientes para que estados e municípios possam cumprir a contento as responsabilidades que lhes foram atribuídas pela Constituição Federal de 1988 com a descentralização.

Ademais, registre-se o empenho da sociedade civil brasileira na construção da esfera pública de participação, base essencial da democracia, que, por sua vez, deve expressar a complexidade da sociedade e supõe a presença ativa do sujeito político coletivo. Com efeito, a esfera pública contribui para que os cidadãos identifiquem seus interesses comuns, definam a melhor forma de coordená-los e direcioná-los para o centro das decisões políticas, nas quais adquirem legitimidade. É na esfera pública, portanto, que a sociedade civil exercita a democracia participativa na relação com o Estado.

1. A realidade brasileira na perspectiva dos direitos sociais e das políticas públicas na atual conjuntura

Para compreender a realidade brasileira na atual conjuntura, é necessário voltar no tempo para identificar fatos e situações cujos reflexos se fazem sentir no presente e projetam luz sobre o futuro, sempre em relação aos direitos sociais e às políticas públicas.

Destacaria, entre outros, os seguintes acontecimentos:

1.1. Jornadas de Junho

Em junho de 2013, no Brasil, sem que ninguém esperasse, sem líderes partidários ou sindicais e sem o apoio da mídia, explodiu de forma espontânea, pelos quatro cantos do país, um grito de indignação e revolta motivado inicialmente pelo aumento de 20 centavos no preço das tarifas de ônibus, difundindo-se pelas redes sociais e levando multidões a ocupar as ruas em mais de 350 cidades brasileiras.

“Passe livre” era a principal palavra de ordem ouvida, por entenderem os manifestantes que o transporte público é um direito social, historicamente negado pelos governos das grandes cidades brasileiras, cujo sistema de transporte está a serviço da indústria do automóvel e é subsidiado pelo governo, enquanto o usuário tem de pagar caro por um serviço de péssima qualidade. Bradavam também: “Não são só os centavos, são nossos direitos”, ampliando as exigências para educação e saúde públicas de qualidade. Reivindicavam ainda o fim da corrupção e acrescentavam: “Vocês não nos representam; queremos participar”. A respeito da Copa do Mundo de futebol no Brasil, escreveram em um cartaz: “Trocamos dez estádios por um hospital decente”. Esse foi o grito de guerra da multidão que tomou as ruas do Brasil por cerca de um mês. Segundo pesquisas, mais de 75% dos brasileiros apoiavam o movimento duas semanas após o seu início na Avenida Paulista, enquanto a maioria da classe política o rechaçou por considerá-lo “demagógico e irresponsável”. No entanto, a então presidente Dilma Rousseff declarou que “tinha a obrigação de escutar a voz das ruas”, recomendando às autoridades locais que cancelassem os aumentos das tarifas de transporte e recebendo em audiência representantes do Movimento Passe Livre. Ficou a lição, mas os desdobramentos não foram o esperado. Depois de algum tempo, ninguém falava mais no assunto.

Contudo, a partir das Jornadas de 2013, o país já não era o mesmo. Na esteira daquela inesperada explosão de massa, emergiu uma crise política sem precedentes, há tempos em gestação, que eclodiu após os resultados das eleições presidenciais de 2014. Com a reeleição da então presidente Dilma Rousseff para um segundo mandato, após ter vencido no segundo turno o candidato do PSDB, senador Aécio Neves, por uma margem de votos relativamente pequena, reproduzindo assim a histórica polarização entre PT e PSDB, o candidato derrotado declarou guerra ao governo reeleito e entrou com representação na Justiça Eleitoral, questionando os resultados proclamados.

1.2. O golpe parlamentar de 2016

Desde o início do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, desencadeou-se uma crise política que assumiu contornos de muita gravidade, gerando um ambiente de instabilidade, frustração e desalento. Somou-se ao impasse político o agravamento da crise econômica, o qual suscitou uma polêmica em torno do fato, denunciado pela oposição, de que, durante a campanha eleitoral, a presidente teria omitido à sociedade a real situação das finanças públicas do país. A partir de então, a situação foi se agravando sempre mais, pois, além das crises política e econômica, surgiram graves denúncias de corrupção dos governos petistas, o que deu origem ao chamado “Petrolão”, envolvendo lideranças do PT e de vários outros partidos políticos da base governista.

Outras gravíssimas denúncias de corrupção contribuíram para engrossar o caldo da crise política e geraram a “Operação Lava Jato”, que passou a assombrar o mundo da política brasileira até os dias de hoje, pois envolveu o governo e a quase totalidade dos partidos políticos de sua base, além de grande número de empresários em âmbito nacional e internacional. Esses fatos engendraram processos judiciais e cassações de mandatos parlamentares – entre outros, a do ex-presidente da Câmara dos Deputados, deputado Eduardo Cunha, do MDB do Rio de Janeiro, investigado, processado e condenado a muitos anos de prisão, já cumprindo pena em Curitiba-PR. Sob sua presidência é que um pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff foi aceito e aprovado em sessão da Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2016, dia que, na história do Brasil, ficará marcado como aquele em que a soberania do voto popular, um dos pilares da Constituição cidadã de 1988, foi violada e o poder popular foi usurpado por um golpe parlamentar perpetrado contra a presidente da República sem o necessário fundamento legal. A consciência democrática do Brasil e de outras nações soberanas do mundo se levantou para denunciar o golpe que cassou o mandato, conquistado democraticamente nas urnas, da primeira mulher eleita presidente da República.

1.3. Medidas de ajuste fiscal: um ataque aos direitos sociais

A expressão “ajuste fiscal” é frequentemente usada e aceita quase sem questionamento, por falta de compreensão do seu real significado e de suas implicações. Na prática, ajuste fiscal significa a implantação de políticas e medidas econômicas orientadas à disciplina, ao rigor e ao controle econômico e social, como resposta do Estado à crise do sistema financeiro, do déficit público e do modelo econômico neoliberal, só que os altos custos de tal política de austeridade recai sempre sobre o conjunto da sociedade, no caso, os cidadãos e cidadãs brasileiros. Com efeito, a política de ajuste fiscal é a que o governo Temer adotou, indiferente aos danos resultantes do aumento da desigualdade, do empobrecimento e do mal-estar social.

Medidas de ajuste fiscal implicam contenção das despesas sociais do Estado; cortes salariais, de pensões e subsídios; flexibilização do direito ao trabalho; reforma do sistema de saúde; injustiça tributária; privatizações do patrimônio público, significando tudo isso a naturalização das desigualdades. Além disso, o processo de ajuste fiscal segue uma lógica e envolve uma dinâmica política que resultam da atuação do governo, da mídia, dos burocratas e dos ideólogos ocupados em difundir a falsa ideia de que a “culpa” pela situação da crise econômica seria de todos os indivíduos, fazendo-os “pagar” e acreditar que foram suas ações e o modo de vida imprudente das famílias que contribuíram para a situação de crise.

As propostas encampadas sob o nome de ajuste fiscal seguem dupla lógica de ação. De um lado, o Estado detém o monopólio da austeridade, instrumento pelo qual assume as tarefas de combater a crise, para evitar a falência do país, e de proteger os indivíduos da incerteza em relação ao futuro. De outro lado, promove-se o desmonte dos mecanismos de proteção social, cujo foco é a seguridade social e os direitos sociais, mediante a privatização do patrimônio público, a individualização dos riscos sociais e a mercantilização da vida social. Enfim, o ajuste fiscal e a responsabilidade fiscal retomam, de modo invertido, o tema da equidade. Invocam uma “ética social” com a “justa repartição dos sacrifícios”, ignorando, de propósito, o fato de que a distribuição desigual dos sacrifícios, numa sociedade econômica e socialmente muito desigual, é vantajosa para os mais ricos, em detrimento da maioria do povo brasileiro.

1.4. Dois anos do governo (ilegítimo) de Michel Temer

O governo Michel Temer, como se sabe, foi fruto de um golpe parlamentar forjado pelo seu partido, o MDB, e por ele mesmo, quando vice-presidente da República, com a clara intenção de assumir o poder, usurpando a soberania do voto popular, e tentar encobrir os crimes de corrupção de sua responsabilidade e de seus asseclas, todos em dívida com a Justiça, como ficou comprovado pela Operação Lava Jato. O referido golpe contou com a defesa da grande mídia e do mercado financeiro, que influenciam a política econômica do governo golpista como contrapartida ao indisfarçável apoio dado por eles ao impeachment da presidente Dilma Rousseff.

A partir daí, as agendas política e econômica do governo mudaram radicalmente, no sentido de implementar, a toque de caixa, uma política de ajuste fiscal apoiada incondicionalmente pela maioria do Congresso Nacional, que sancionou o golpe parlamentar e, desde então, se mantém de costas para a sociedade, aprovando todas as medidas perversas contra os/as trabalhadores e contra o povo em geral. A propósito, é bom lembrar que foi esse mesmo Congresso que, em duas oportunidades, negou a autorização para que Temer fosse investigado em casos de comprovada corrupção, nos quais estão implicados praticamente todos os seus aliados mais próximos e membros de outros partidos que deram sustentação ao seu governo.

Além disso, essas mesmas forças políticas que atuavam no poder legislativo promoveram, junto com o governo, o desmonte dos direitos conquistados pelo povo brasileiro, senão vejamos.

Para deleite das petrolíferas estrangeiras, uma das prioridades do governo Temer foi atacar os interesses nacionais, como a presença obrigatória da Petrobrás nos serviços de exploração do pré-sal, abrindo mão de parte significativa de nossas riquezas estratégicas. Esses mesmos conglomerados estrangeiros receberam bilionária isenção fiscal em tempos em que alegadas dificuldades fiscais servem de pretexto para retirar direitos de trabalhadores e aposentados.

O governo apresentou e o Congresso aprovou a PEC do teto, que gerou a Emenda Constitucional n° 95/2017, congelando os gastos públicos nos próximos 20 anos, sem que se cogitasse nenhuma medida de justiça fiscal ou de auditoria do serviço da dívida pública, e empurrando a conta para os trabalhadores, os que mais precisam dos serviços públicos e da presença do Estado.

O governo interferiu nas relações entre o capital e o trabalho, em prejuízo do segundo, ao legalizar a terceirização nas áreas-fins; promoveu uma reforma trabalhista para flexibilizar a legislação e atender aos interesses do empresariado, enfraquecendo os sindicatos dos trabalhadores.

O governo realizou uma reforma eleitoral antidemocrática para beneficiar os partidos maiores e que estão no poder, tentando tirar da disputa partidos programáticos e com bancadas menores.

O governo regulamentou o sistema fundiário de modo a beneficiar a concentração da terra; flexibilizou obrigações ambientais e trabalhistas; abriu caminho para a regularização da grilagem; fragilizou o controle da fronteira agrícola na Amazônia; facilitou a legalização de condomínios de luxo sem contrapartidas; retirou critérios legais de defesa da segurança nacional ao permitir a privatização em massa do patrimônio da União, notadamente as áreas da marinha e de fronteira.

O governo promoveu retrocessos contra as mulheres e os direitos humanos. Uma das primeiras medidas de Temer, ainda como presidente interino, foi extinguir os Ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, transformando-os em meras secretarias, sob a aba do Ministério da Justiça e Cidadania. Tais alterações na estrutura do poder executivo demonstraram o descompromisso daquele governo com as pautas das mulheres, dos negros, da juventude e dos direitos humanos em geral.

O mais grave é que essas medidas e tantas outras constituíram o pagamento da fatura aos grupos econômicos internos e externos que conspiraram para derrubar Dilma Rousseff, eleita democraticamente, o que afrontou a Constituição Federal de 1988 e atentou contra a democracia brasileira.

1.5. Políticas públicas do governo democrático-popular da cidade de São Paulo (1989-1992)

O primeiro governo democrático-popular no município de São Paulo desenvolveu, durante os quatro anos de gestão, um plano de ação baseado em dois eixos programáticos:

– governar para a maioria, com inversão de prioridades;

– governar com participação popular.

Quanto ao primeiro eixo, nosso governo investiu prioritariamente nas políticas públicas de saúde, educação, cultura, habitação, assistência social, transporte coletivo, saneamento básico, infraestrutura urbana e preservação do meio ambiente. Para isso, destinamos, anualmente, mais da metade dos recursos orçamentários às áreas sociais.

Quanto à participação popular, segundo eixo orientador da ação do governo, criamos diversos mecanismos de participação, tais como: conselho gestor em cada equipamento da prefeitura; conselhos setoriais ligados às respectivas políticas sociais, formados por representantes dos usuários dos serviços e dos servidores de cada uma das unidades, secretarias e órgãos da administração, adotando metodologia e processos de envolvimento da participação dos segmentos sociais populares nas decisões estratégicas do governo. Destacaríamos, entre outras, as plenárias do orçamento participativo nos níveis setorial, regional e municipal, com base nas quais o governo elaborava a lei orçamentária anual, encaminhada posteriormente à Câmara Municipal para ser avaliada e votada. Dessa forma, a população interferia na definição das prioridades, participando, portanto, das decisões políticas mais importantes do governo – pois não há decisão governamental mais importante do que a que define as prioridades orçamentárias. O processo de discussão se dava por meio de plenárias populares regionais, setoriais e municipal, no momento em que se definiam prioridades, objetivos e metas.

Além desses, outros mecanismos de participação foram criados, como as Coordenadorias Especiais da Mulher, do Negro, da Juventude, das Pessoas com Deficiência, dos Idosos. Eram coletivos ligados a diversos segmentos da sociedade civil e integrados por pessoas escolhidas pelos seus respectivos movimentos para representar seus interesses quando da definição das políticas setoriais do governo.

O método democrático de gestão e a atenção voltada, prioritariamente, para os interesses da maioria da população da cidade foram as principais marcas do governo democrático-popular do município de São Paulo durante o período de 1989 a 1992. O êxito daquela rica experiência se deveu principalmente a dois fatores: o apoio e a participação imprescindíveis dos setores populares organizados da sociedade paulistana e os excelentes quadros que compuseram o primeiro escalão do governo, ou seja, o secretariado. Citaria, entre outros(as), o mestre Paulo Freire e o respeitável professor Paul Singer, secretários de Educação e de Planejamento, respectivamente. Ambos, lamentavelmente, já não estão entre nós; deixaram precioso legado às futuras gerações. Aproveitamos, pois, a oportunidade para homenageá-los e, por meio deles, a todos os admiráveis brasileiros e brasileiras que conosco governaram a cidade de São Paulo e aos quais pertencem os méritos da gestão.

Conclusão

Queremos destacar, finalmente, a oportunidade do tema central da Campanha da Fraternidade de 2019: “Fraternidade e políticas públicas”, visto que, na atual conjuntura, são registradas enormes perdas das conquistas sociais e dos direitos de cidadania do povo brasileiro, como efeitos perversos de uma crise multifacetada que penaliza, sobretudo, a população mais pobre do país.

Ao golpe parlamentar de 2016, seguiu-se o governo ilegítimo e fraudulento de Michel Temer, rearticulador das forças conservadoras de direita que tomaram de assalto o poder conquistado democraticamente nas urnas. Desde então, instalou-se no país um ambiente de instabilidade, frustração e desalento, com elevado potencial de desmobilização e paralisia das organizações sociais progressistas, o que passou a ser mais uma expressão da crise.

Esperamos que a Campanha da Fraternidade contribua para despertar a consciência dos cristãos e cristãs no sentido de reafirmarem seu compromisso de fé e retomarem, com coragem e determinação, a luta por justiça social e pela igualdade de direitos para todos e todas.

É preciso reagir ao desalento e à desesperança, sentimentos conservadores paralisantes, substituindo-os pela esperança, que, ao contrário, é revolucionária e transformadora. Voltemos, pois, a nos inspirar no saudoso pastor e profeta da esperança dom Paulo Evaristo Arns, que nos animava ao repetir sem cessar: “Coragem! De esperança em esperança, ter esperança sempre!”, e acrescentava: “A esperança subsiste e se torna força de resistência mesmo nas situações mais adversas”.

Referências bibliográficas

DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.

FERREIRA, Mary (Org.). Mulher, gênero e políticas públicas. São Luís: Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações de Gênero (Redor); Núcleo de Estudos e Pesquisa Mulher e Relações de Gênero/UFMA; Grupo de Mulheres da Ilha, 1999.

JACOB, Pedro. Movimentos sociais e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1998.

NASCIMENTO, Mariângela. A esfera pública na democracia brasileira: uma reflexão arendtiana. In: CORREIA, Adriano; NASCIMENTO, Mariângela (Org.). Hannah Arendt: entre o passado e o presente. Juiz de Fora: UFJF, 2008.

Luiza Erundina de Sousa

Luiza Erundina de Sousa é assistente social pela Universidade Federal da Paraíba, mestre em Sociologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e deputada federal (PSOL-SP). Foi vereadora, deputada estadual, prefeita do município de São Paulo pelo PT e ministra-chefe da Secretaria da Administração Federal no governo Itamar Franco.