Comecemos com um exemplo tirado do dia a dia: Pedro, um trabalhador brasileiro, com salário na faixa de um a três mínimos, fica anos na fila de espera por um imóvel da COHAB. Isso sem falar na que estivera antes para se inscrever, nos documentos que teve que arranjar para o agente financiador, que exigiu todas as garantias possíveis de que as prestações seriam realmente pagas. Então, recebeu seu imóvel num conjunto habitacional padronizado: construções iguais, sem originalidade, sem beleza, geometricamente alinhadas, frias. Qualidade de sofrível a baixa. Acaba de realizar o sonho de sua vida. Mas logo começam os pesadelos: “O BNH é um saco sem fundo!”; “um banco como qualquer outro”; “sim, mas tem uma diferença, seu capital é constituído de fundos públicos, é dinheiro dos trabalhadores”; “e tem mais: o que o patrão paga de fundo de garantia passa ao preço do produto e, na realidade, quem paga é o próprio trabalhador”.
Esses comentários esparsos situam o problema de quem, após obter financiamento, fica “atordoado” com as fórmulas complicadas de cálculo das prestações mensais.
Outros seguiram caminhos diferentes. Compraram um terreno num lugar sem nenhuma infraestrutura de serviços urbanos (lá “o lote é barato”). Pouco a pouco vão “construindo”, cômodo a cômodo, quase sempre nos fins de semana. Muitos, a seu lado, fazem o mesmo e o lugar, em tempo relativamente curto, acaba se transformando num bairro. E então vêm a luz, o transporte. A duras penas, a água (substituindo o poço) e, por fim, o asfalto. E aí começa outra “dor de cabeça”: o preço do asfalto (a inflação não perdoa) acaba sendo mais alto que o de toda a casa. E vem a luta para pagá-lo.
Quase sempre esse processo é realizado em mutirão. Beleza! Exemplo de solidariedade. Sim, mas enquanto se pensa assim, esquece-se que o trabalhador está livrando o capital de um peso: o custo de sua reprodução como mão de obra. A função do salário é servir para reproduzir a mão de obra. Ele deve ser “suficiente” para moradia, comida, estudo e vestuário. Quando os trabalhadores constroem sua casa em mutirão, eles livram o Estado e o capital de um dos itens que mais pesam para a reprodução da força de trabalho.
Há ainda outras coisas estranhas: entre a “cidade” e o novo bairro permanecem terrenos vazios. Antes, esses terrenos valiam dez vezes menos do que valem hoje (descontada a inflação), pois lá passa ônibus, há rede elétrica, e, pelo menos, uma “estrada” principal (rua, avenida) asfaltada…
Esses fatos do dia a dia são completados com as análises dos especialistas que mostram, por a mais b, que os investimentos públicos (tipo ex-BNH) não resolvem o problema, mas às vezes até o agravam. Mas quase sempre concluem: ruim com eles, pior sem eles.
Sim, mas estamos no Brasil. E esses são até privilegiados. Pois há os sem-teto, os favelados, os moradores de cortiço. E, há o “outro lado”: as “casas da Dinda”, que a cada ano abrigam uma parcela cada vez menor da população do Brasil, com requintes de conforto e sofisticação cada vez maiores.
Temos, assim, um retrato sumário da situação. São amostras, mas já nos permitem vislumbrar a sua complexidade.
1. Moradia e concentração de renda
O primeiro dado importante está na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), feita pelo IBGE, divulgada em novembro de 1990, com dados de 1989. Ela mostra duas realidades contrastantes: de um lado, a concentração de renda “conseguiu” tornar-se mais acentuada e escandalosa do que já era; apesar disso, houve uma aparente melhoria no padrão de vida geral (água, luz elétrica e coleta de lixo chegaram a mais domicílios e mais brasileiros passaram a receber o salário mínimo).
Esses dados são confirmados por um estudo do IPEA que mostra certa melhoria, embora diminuta, dos indicadores sociais. Assim, “a participação de domicílios considerados inadequados no estoque total de domicílios diminuiu de 10,9% para 7,5%; a participação dos domicílios com alta densidade (mais de três moradores por cômodo) caiu de 16,3% para 11,8%; o volume de domicílios dotados de saneamento básico considerado adequado passou de 43,1% para 53,3% e a proporção de pessoas vivendo em domicílios com canalização interna de água passou de 58,0% para 71,0%”[1]. Segundo Faria, um dos fatores explicativos está na forte mobilização política que caracterizou os anos 80.
Essa melhoria relativa é, entretanto, ilusória, pois está ligada a investimentos públicos maciços feitos na década de 70. Os “verdadeiros” problemas vão ocorrer nesta década (de 90), já que nos anos 80 praticamente não houve investimentos públicos.
Além disso, a política neoliberal preconiza o que se chama de um Estado residual, isto é, um Estado que deixa para a iniciativa privada, para os mecanismos de mercado autorregulado a “solução” dos problemas sociais. Nada de investimentos em saúde, educação, bens públicos. A iniciativa privada é mais eficaz para pôr tudo nos eixos. Pensemos, porém, essa política — cujos resultados já se mostram nos EUA pós-Reagan e Inglaterra pós-Tatcher — no Brasil, país no qual as elites sempre se caracterizam por sua insensibilidade total ao problema social. Mais ainda, os serviços públicos estão cada vez mais sucateados. Mas, como já falamos, para o ex-BNH, é preciso ter presente que, se a entrega ao setor público pode significar sucateamento, não se pode esquecer que “se a situação é ruim com os serviços sociais de caráter público, em virtude de sua precariedade e ineficiência, muito pior seria a situação sem eles”[2].
Além dessa melhoria, ainda segundo a PNAD, houve uma recuperação do salário médio dos trabalhadores. Esta, entretanto, foi mais acentuada entre os que recebem acima de quatro salários mínimos. Ou seja, até certo ponto, por eles terem maior capacidade de organização. Mas isso reflete também o fato de que já entre os trabalhadores “cresce” a renda dos que recebem mais.
Por outro lado, o relatório do Banco Mundial sobre os anos 80 apresenta o Brasil como um dos poucos países em que não houve redução do número de pobres na década. Na realidade, houve um aumento de 5% dessa população, de acordo com o mesmo relatório[3].
Tocamos aqui o segundo ponto nevrálgico: a concentração de renda em 1988 foi a mais alta na história do país, de acordo com tendência que só teve uma reversão (pequena) em 1986, ano do Plano Cruzado. A pesquisa PNAD mostra os seguintes números:
• Os 50% mais pobres ficam com 10,4% da renda nacional, e dentre esses, os 10% mais pobres ficam com 0,6% da renda nacional.
• Os 10% mais ricos ficam com 53,2% dá renda nacional, e dentre esses, 1% dos mais ricos fica com 17,3% da renda nacional.
É dentro desse quadro que se situa o contraste violento entre os “moradores de rua” e as “casas da Dinda”. E quanto mais alto se está situado na escala social, mais imune aos efeitos do “jogo” econômico: assim, os setores menos atingidos são os bens de consumo sofisticados e de imóveis de alto luxo, que têm comercialização garantida.
A recessão econômica e a inflação agravam ainda mais esse quadro. O problema da moradia está estruturalmente vinculado à questão do trabalho e este depende do crescimento econômico. Isso, é claro, sem esquecer que os resultados do trabalho têm que ser — para exigir o mínimo do mínimo — um pouco menos iníquos em termos de distribuição.
2. Moradia e força de trabalho
Até aqui respondemos a uma parte da pergunta do título: a moradia está vinculada diretamente à renda do trabalho e a situação do Brasil é suficientemente escandalosa para evidenciar as respostas. Elas são visíveis a olho nu.
Mas vamos além. No mundo capitalista tudo gira em torno da mercadoria, ou melhor, tudo é mercadoria. Assim, o solo (a terra) é mercadoria e não um “bem público” e o trabalhador é reduzido a força de trabalho que se compra e se vende. E isso tem a ver com a questão da moradia, de forma direta e imediata. Mas esta tem que ser vista, não de forma genérica, mas dentro da história e das classes sociais nela envolvidas. Já acenamos a esse fato, quando dissemos que a autoconstrução ajuda a acumulação capitalista na medida em que liberta o capital de um dos ônus mais pesado da força de trabalho.
Eva Blay, analisando o tema, mostra como a senzala, no período escravocrata; as vilas operárias, no início da industrialização; a expansão urbana espontânea, nos anos 50; e a construção massiva de conjuntos habitacionais financiados são formas históricas diferentes de preservar e controlar uma mercadoria, a força de trabalho.
Na senzala, urbana ou rural, o senhor preserva e protege o escravo como mercadoria. Lá é “protegido”, impedido de fugir. Sua vida como força de trabalho é prolongada.
A segunda forma de preservar e controlar mão de obra é o sistema colonial, no mundo rural, e as vilas operárias, no meio urbano. As colônias — conjunto de casas para moradia dos trabalhadores rurais livres — são uma forma de fixar e pagar, através da troca, o trabalho dos colonos.
Na cidade são construídas vilas operárias. São conjuntos de casas construídas num terreno com uma das frentes voltadas para a rua; através desta se entra e sai do interior da vila. As casas são alugadas aos operários.
Era o início da industrialização em São Paulo, e não havia praticamente mercado imobiliário no sentido em que entendemos hoje e assim o operário se sujeitava às condições impostas pelo empregador, pois a casa se vinculava direta e imediatamente ao emprego. Mais, havia poucos trabalhadores qualificados, e dessa forma a casa era o meio de prendê-lo. Ao mesmo tempo, porém, o impedia de obter um valor mais alto pelo seu trabalho. A casa ligava, de maneira inextrincável, trabalhador e empresa amortecendo assim o sentido da luta por seus interesses. A casa, por outro lado, não deixava de ser um investimento, na medida em que o trabalhador pagava aluguel.
Ao mesmo tempo, a classe média emergente procurava ir para longe das chaminés.
O aumento da imigração rural-urbana traz os cortiços: “as casas disponíveis eram utilizadas em sua capacidade máxima, sobretudo pelo operariado. Eram alugadas, sobre-alugadas, divididas, compartilhadas”[4].
As favelas surgem acompanhando o crescimento espacial da cidade. Quando os favelados conseguem trabalho mudam para os loteamentos em formação e as favelas são ocupadas por novos imigrantes. Isso significa que o crescimento espacial da cidade dá-se acompanhando a mobilidade social. Quem consegue emprego muda. Em outras cidades, como Recife, por exemplo, a população cresce sem participar da renda gerada pela cidade e assim quem está no alagado fica morando lá continuamente.
Nos anos 50, o crescimento do emprego “acompanha” o fluxo migratório. Não que toda a mão de obra disponível seja absorvida, mas há uma ampliação suficiente para fixar e remunerar os novos habitantes. As fábricas já não sofrem a pressão da necessidade de mão de obra. O problema habitacional é encaminhado sob a forma de autoconstrução. Desenvolve-se o mercado imobiliário particular.
Outra forma de encaminhar o problema habitacional são os sistemas de construção e venda por categoria de trabalhadores: são as caixas, os institutos, os sindicatos, frequentemente “trabalhando” com métodos clientelísticos de favorecimento político e “compadrio”.
Eva Blay nota que é nesse momento histórico que ocorre a inversão de mentalidade do trabalhador e que é vigente até hoje. Mais importante que o trabalho é ter uma casa própria, que garante a fixação. Se o emprego é instável, precário, difícil, a casa é segurança e proteção. A única garantia. Por isso ela se torna um bem arduamente buscado. Uma mercadoria pela qual dá-se tudo o que se pode e o mercado imobiliário, se torna cada vez mais especulativo. Mas sobre isso falaremos à frente. Importa considerar agora a forma de preservar e controlar mão de obra através da construção dos grandes conjuntos habitacionais financiados.
Esses reforçam a possibilidade de realizar “o sonho” da casa própria e assim reforçar essa aspiração: “esta aspiração, que de fato esconde a necessidade de se integrar economicamente no meio urbano pelo trabalho, adquire a aparência de ser um dia realizada. Com isso se esvaziam reivindicações reais e imediatas que a população urbana venha a fazer”[5].
Por outro lado, o BNH é (era) um banco comercial. Quem consegue financiamento, na realidade empenha toda sua vida útil de trabalhador. Vende, assim, antecipadamente sua força de trabalho em nome da casa própria. E o peso desta dívida não pode ser subestimado: o percentual fixo gira em torno de 20% do salário. Ora, quanto menor o salário, mais duro é o impacto dessa cota.
3. O solo como mercadoria
Para poder utilizar o solo urbano é preciso pagar por ele. Ele é uma “mercadoria no mercado” o que significa que quanto mais se precisa do espaço mais caro ele se torna. O preço acaba sendo determinado pelo próprio processo de expansão do tecido urbano. É esse mesmo processo que faz aumentar ou diminuir a procura de espaço, o que faz com que o preço dos terrenos sofra oscilações e seja um mercado altamente especulativo.
O solo urbano deixa de ser um bem de uso, uma utilidade, e se transforma num bem puramente econômico. Na realidade, quem quer investir na construção de um patrimônio acumula propriedades imobiliárias. É sobre essa base que surge e se alimenta o que chamamos de periferia, isto é, aqueles “setores da cidade precariamente atendidos por serviços públicos, nos quais os valores imobiliários são suficientemente reduzidos para serem suportados pelas populações de baixa renda”[6]. Ou seja, o nível de serviços urbanos básicos é tão baixo (na realidade inexistem serviços) que dá para “se morar” ali com o salário que se tem. A causa aparente, assim, é o baixo salário.
Mas há uma causa mais profunda. O especulador compra terrenos para um fim econômico que nada tem a ver com a sua utilização. Liga-se ao “valor” que o terreno representa como investimento de mercado. E isso faz com que o solo urbano seja ainda mais procurado (por quem não precisa dele para morar, mas para ganhar dinheiro). Com isso seu preço tende a subir.
Por outro lado, há necessidade real de terra, há investimentos econômicos que aumentam ainda mais o valor da terra e isso faz com que este esteja sempre acima dos salários e da inflação. Com isso se reforça a especulação. Então, o que acontece? Quem realmente precisa de terra para morar é expulso para áreas cada vez mais distantes. Os terrenos que ficam “no meio”, vazios ou insuficientemente ocupados, estão aí apenas para “valorização” mercantil. Sob esse prisma pode-se mesmo dizer que a cidade cresce mais do que precisa, isto é, mais do que o crescimento populacional exige.
Há ainda outro dado: também os serviços públicos — água, esgoto, eletricidade, asfalto — são oferecidos a quem pode pagar por eles. São também oferecidos como mercadorias. O próprio Estado pouco se interessa em investir nesses bens e serviços, uma vez que o retorno não é nada compensador.
Mais ainda: o investimento público em bens e serviços obedece à dinâmica de ocupação do espaço; ela, por sua vez, expressa fisicamente a “geografia” das classes sociais. Expliquemos: à medida que um bairro (antigo) começa a ser ocupado por prédios de apartamentos, com o tempo num só desses conjuntos acaba morando o mesmo número de famílias que antes ocupava quase que uma rua inteira. Isso obriga o poder público a trocar a infraestrutura, consumindo grande parte do poder de investimento público que poderia ir para setores realmente carentes desses serviços.
Com isso, fica mais fácil entender a questão levantada no título. As pessoas moram onde podem, isto é, de acordo com sua posição na estrutura das relações sociais. E assim há os condomínios de alto luxo convivendo com os cortiços, os sem-teto. Só que, na dinâmica do processo de trabalho, na distribuição social de seus resultados, quem mora bem melhora cada vez mais à custa de quem vai perdendo até a casa erguida em regime de autoconstrução, porque “chegou o asfalto” e é preciso vendê-la, pagar o “serviço público” e ir morar mais longe.
[1] Faria, Vilmar, “A conjuntura social brasileira — dilemas e perspectivas”, Novos Estudos Cebrap, julho 1992, p. 11.
[2] Idem, p. 112.
[3] Cf. O Estado de São Paulo, 18/10/1990.
[4] Blay, Eva Alterman, Habitação: a política e o habitante, Belo Horizonte, 1975, p. 11 (mimeo).
[5] Idem, p. 14.
[6] Bolaffi, Gabriel, “Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema”, in Hermínia Maricato (org.), A produção capitalista da casa, São Paulo, Alfa-Ômega, 1982, p. 57.
Pe. Luiz Roberto Benedetti