Publicado em número 193 - (pp. 23-28)
Marginalidade e sombra social
Por Profa. Maria Elci S. Barbosa
No dicionário da língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, encontramos a seguinte definição da palavra marginal (Bras.): “Diz-se da pessoa que vive à margem da sociedade ou da lei como vagabundo, mendigo ou delinquente fora da lei”.
A partir dessa definição podemos encarar dois aspectos da questão da marginalidade, quais sejam, viver à margem da sociedade — esta entendida como uma coletividade na qual os valores e as regras de conduta são regidos por um consenso grupal — e, o segundo aspecto, sociedade entendida como um sistema estruturado a partir de leis formais — um sistema jurídico, legal. Neste segundo caso, o marginal é um fora da lei. No primeiro, ele é simplesmente alguém que está fora de um grupo, ou não pertence a tal grupo social, pois nem sempre a sociedade consensual coincide com a legal.
1. Os valores atuais em nossa sociedade
Hoje em dia, ao olharmos para o nosso meio circundante deparamos com grandes mudanças de valores, se comparados com aqueles do início do século. Valores que, apesar de não especificados nas leis escritas, estão vigentes na consciência coletiva e nacional, regendo a conduta de cada cidadão.
O incrível desenvolvimento dos processos de comunicação fez a aldeia global, preconizada por McLuhan, um fato cada vez mais pujante. Estamos plugados no mundo — na internet. A mídia, principalmente radiofônica e televisiva, contribuiu muito para formar novos valores e descartar muitos outros. Mantidos a partir de grandes somas de dinheiro por empresas que visam tão somente à lucratividade, os canais de comunicação se tornaram grandes vendedores de ilusões, e criadores de novas necessidades e valores sociais — necessidades essas nem sempre reais.
Há uns trinta anos, ainda como estudante de psicologia social, perguntava-me o que poderia acontecer numa sociedade onde o marketing e a propaganda induziam necessidades de consumo, quando grande parte da sua população não teria como adquirir tais bens? Se a felicidade se mostrava vinculada à posse de tais bens, como ser feliz sem tê-los? Ou ainda, como obtê-los para ser feliz?
Já nessa época as consequências eram óbvias: o embrião da explosão social, ou mesmo da guerra civil em que vivemos hoje estava posto.
Se de um lado houve um grande desenvolvimento das comunicações, o mesmo não aconteceu com o desenvolvimento econômico, educacional, cultural e tecnológico de nossa sociedade. Pelo contrário, houve agravante diminuição real do poder aquisitivo de grande parte da população. A economia e a educação não acompanharam a criatividade e o pique de soluções rápidas apresentadas pela publicidade na sua corrida à concorrência pelo maior consumo e maior lucro.
Uma das grandes consequências desse desequilíbrio é a explosão social que vivemos com toda a sua violência. É uma guerra ora explícita, ora velada, uns contra os outros, nos roubos e nos assaltos de todos os tipos, e em todas as camadas sociais. Uma guerra de indivíduo contra indivíduo, de cidadão contra cidadão, para obter os bens de consumo que passaram a ser “imprescindíveis”. Encontramos aí desde os chamados “crimes de colarinho branco”, até os do tipo “ladrão de galinhas”. Não há nenhuma ideologia por trás dessa guerra civil. Seria forçar a leitura ver aí ideologia de luta de classes. Todos querem a mesma coisa: ter e poder, não importando os meios — seja um tênis, um relógio ou um apartamento em Miami. É uma guerra individualista, sem nenhuma proposta de bem comum.
Não sei se alguém se perguntou e se pergunta hoje acerca da responsabilidade social e ética de se criar necessidades onde antes não existiam. Não lia nenhuma preocupação em ampliar o conhecimento para que cada um possa escolher o que é bom para si. Assim, uma população que não aprendeu a preparar uma boa alimentação, nem conhece os nutrientes necessários para o desenvolvimento de uma criança ou de um jovem — e que além da carência cultural tem a falta real de dinheiro, e, muitas vezes, não pode nem mesmo comprar leite (vide as campanhas demagógicas de distribuição de leite) —, passa a consumir “salgadinhos”, “danoninhos” ou que tais apresentados pela TV. O organismo humano não tem necessidade de ingerir “salgadinhos”, mas verdura e frutas, sendo que estas, muitas vezes, são até mais baratas.
Os exemplos seriam inúmeros, mas interessa-nos observar e analisar as consequências do incremento das necessidades de consumo do ter e do poder. Para Matthew Fox, “o consumo alimenta nossos apetites insatisfeitos, nutre o fato de que não fomos alimentados espiritualmente, e que há um vazio em nós que não pode ser preenchido por mais que vamos às compras, o possamos adquirir muitos bens”. O “vazio em nós” aumenta quanto mais nos afastamos de nós mesmos, da nossa condição humana e espiritual.
E qual seria a condição humana? Podemos perguntar melhor quais seriam os valores humanos e espirituais? Como viver e sentir a própria vida como algo substancial e significativo? Valores como trabalho, disciplina, honestidade, paciência, coragem, garra para lutar diante de obstáculos, e outros, sempre apareceram em todas as histórias da humanidade, desde as mais remotas eras. Filósofos e teólogos de todos os tempos afirmaram de uma ou de outra maneira que “a vida é, em grande parte, uma jornada moral e espiritual”. As fábulas de Esopo, as lendas indígenas e mesmo os mitos das diversas culturas falam desses valores, também chamados de virtudes que aparecem no escopo das religiões. Segundo o filósofo John Locke “é a virtude (…) o objetivo difícil e valioso que deve ser enfocado na educação, e não uma petulância atirada nas artes menores dos estratagemas”.
Hoje em dia, parece-nos que esses valores ou virtudes, que deveriam reger a vida humana, foram substituídos pelos seus opostos — os vícios, entre eles os pecados capitais, assim cognominados pela terminologia eclesiástica. São eles: o orgulho, a avareza, a inveja, a ira, a impureza, a gula, a preguiça ou acídia (cf. Catecismo da Igreja Católica nº 1.866). E, para justificar tudo, o cinismo.
Para Matthew Fox “o espírito é alimentado quando as pessoas contam suas verdadeiras histórias com todas as dores inerentes, mas também com possibilidades e esperanças”. Como já mencionamos, as histórias contadas pelas propagandas vendem a ilusão de um mundo paradisíaco bem distante do real. Os filmes e novelas da televisão, por sua vez, também não contribuíram muito para o espírito, pois, ao longo das décadas, a maioria deles decantou valores que pouco ou nada enobrecem a vida humana. Hoje já se tem alguns estudos que mostram os danos psicológicos causados pelo excesso de violência mostrada na TV. Muitos programas mostram como se tornar rico rapidamente, e até com certo cinismo, como apareceu em uma novela, fazer uma “banana” para o país, deixando-o para viver em algum paraíso do dito Primeiro Mundo. Às vezes chegamos mesmo a pensar que poucos são os que têm amor e respeito à terra brasileira, e os que têm são considerados “caretas”. Mas não foram só as novelas e os programas da TV que contribuíram para isso. Olhando mais para trás, esses valores estão nas nossas raízes históricas. Não são os valores especificados na lei, como mencionamos anteriormente, mas aqueles vividos pela coletividade. Desde os primeiros homens que aqui aportaram — e isso aprendemos nos livros de História do Brasil —, o destino desta terra era o de ser explorada. Os portugueses vieram para extrair riquezas da terra e levá-las para a Europa (Portugal e mesmo Inglaterra), escravizar índios e, se possível, enganá-los. Parece que 500 anos não foram suficientes para mudarmos esses valores. Mudaram os protagonistas, sem dúvida, mas não os valores. Poucos foram os que vieram para aqui construir algo sólido e fincar raízes na terra.
2. Tipos de sociedade
Diante desses pressupostos, tem-se pelo menos dois tipos de sociedade num mesmo país: a legal, que parece se perder nos papéis e nos meandros de uma burocracia inóspita, e a factual, onde a coletividade vive e briga por determinados valores de sobrevivência, de conveniência, e de aparência.
A legal, diga-se de passagem, ficou bastante enfraquecida depois de tantos governos ditatoriais — neste século de República tivemos dois governos ditatoriais marcantes: o de Getúlio Vargas e o militar. Nesses governos, a justiça ficou confinada a um quarto escuro dos palácios da ditadura. Frases como: “Lei, ora a lei!” e “Para os amigos tudo, para os inimigos a lei”, ainda ressoam em nossos ouvidos. E nos perguntamos, afinal, quem é essa sociedade legal? Ela existe? A quem serve hoje em dia?
Consequentemente, existem éticas diferentes. A ética advinda da formalização das leis; a ética da sociedade vigente, que banaliza a vida; e a ética daqueles que conservam os valores que dignificam o ser humano. Assim sendo, pode-se perguntar: quem são os marginais na sociedade brasileira? Os que exploram a terra ou os que a respeitam? Os trabalhadores ou os que fazem negociatas? Os que roubam para viver melhor ou aqueles que vivem com o que têm? Os que dignificam a vida, ou os que a banalizam matando seja por algumas dezenas, seja por alguns milhões de Reais?
Talvez se contássemos o número de pessoas, em todos os grupos sociais, de um lado e de outro, poderíamos deduzir logo para onde pende a balança. Se marginal for entendido como a minoria que vive à margem de uma sociedade vista sob certa ética de valores, então, talvez, deparemos, com o fato de que marginais são aqueles que ainda acreditam na vida como uma “jornada moral e espiritual”, e, por isso, trabalham, lutam, enfrentam obstáculos, são honestos, enfim, aqueles que não banalizam a vida nem a tratam com cinismo.
Sob o ponto de vista social, então, o conceito de marginalidade é algo para se refletir: o confronto entre o teórico, legal, e a realidade factual; valores pressupostos e valores vividos. Isso posto, podemos concluir que o marginal que está fora da lei nem sempre está fora da sociedade.
3. Marginalidade: ética psicológica
Mas deixemos agora de lado a questão da marginalidade, sob o ponto de vista social, para entendermos essa questão sob o ponto de vista do indivíduo, sob o enfoque psicológico. Distante da questão social mais ampla, cada um de nós pode se perguntar o que é ou quem é o marginal dentro de si mesmo. Aqui temos de fazer uma reflexão sobre aqueles aspectos de nossa personalidade que foram colocados de lado, não aceitos pelo nosso sistema egóico.
Quais foram os aspectos excluídos, e o que não queremos enxergar como pertencentes a nós?
Para responder à questão da marginalidade dentro de nós, podemos recorrer ao conceito de sombra de C. G. Jung.
A sombra refere-se ao lado obscuro, inconsciente, muitas vezes reprimido e indesejado de nossa personalidade, contrapondo-se, assim, à personalidade ideal, consciente, que acreditamos ter. Normalmente essa personalidade, ou “ego ideal”, aponta E. C. Whitmont, é formada por ideais e padrões culturalmente adquiridos. É fruto da convivência com a família, grupos sociais a que se pertence e grupos religiosos. De modo geral, esses padrões direcionam nosso modo de ser e de agir. Assim, através do desenvolvimento de nossa personalidade, vamos nos identificando com aspectos considerados positivos e rejeitando os que a eles se contrapõem. Estes, por sua vez, acabam por escorregar em algum canto do nosso inconsciente. E aí está contido “todo o espectro potencial do comportamento humano”. Não só aquilo que não aceitamos como muito mais, ou seja, também aquilo que pertence a nós como participantes da raça humana. J. A. Sanford diz mesmo que seria desnecessário a existência de mandamentos, tais como: “não roubarás”, “não matarás”, “não cometerás adultério”, se não houvesse a possibilidade de cometermos tais atos. Se observarmos bem, veremos que todas as sociedades têm seus “mandamentos”, a fim de impedir que seus membros ajam de forma destrutiva uns contra os outros,
Num nível mais pessoal, a sombra não sé refere somente a qualidades destrutivas, mas a tudo aquilo que foi reprimido pelo indivíduo, bem como àquilo que não teve possibilidade de ser expresso. Refere-se à vida não vivida como um todo. Por conter também as potencialidades criativas do indivíduo, o reconhecimento de aspectos de nossa sombra traz, em geral, a liberação de energia criativa e positiva, que contribui para o fortalecimento e integração da personalidade.
Mas como reconhecer algo que nos é desconhecido? Como perceber algo que está na sombra? Podemos lembrar que Peter Pan não tinha sombra e foi Wendy que a costurou nos seus pés. Enquanto permanecemos muito infantis, não temos capacidade de olhar para nossos pés, nossas pegadas, nossa realidade. E, assim, não reconhecemos aspectos que são nossos, ainda que nos pareçam desagradáveis. Sendo infantis, passamos a enxergar nos outros nossos defeitos. Como está escrito no evangelho, é mais fácil enxergar um cisco no olho do outro do que uma trava no nosso. Ao fato de enxergarmos no outro aquilo que temos ou somos como personalidade chamamos de projeção. Dessa maneira o inferno são os outros, não nós. Não se tem presente que, vivendo assim, vive-se num inferno.
4. Sombra coletiva
Num nível mais coletivo, a sombra do grupo revela-se nas guerras, ódios e preconceitos entre grupos raciais, religiosos, gangues etc. Cada grupo recebe a projeção do outro. Ou seja, as qualidades inferiores, reprimidas, de um grupo são vistas como pertencentes ao outro. Assim, os nazistas, por exemplo, julgando-se pertencentes a uma raça superior projetaram seus aspectos mais mesquinhos e negativos nos outros grupos, principalmente nos judeus. É dessa maneira que o grupo marginalizado numa sociedade carrega a projeção negativa da sombra do grupo majoritário. E a recíproca também é verdadeira.
Assim, a sombra começa no indivíduo, sendo um aspecto de sua personalidade, mas em certo ponto alcança o nível coletivo, e, num nível mais profundo, pode-se falar em arquétipo do mal.
Como diz Sanford: “A sombra não pode ser negada, mas deve ser tratada sob a luz de uma autoridade mais elevada. As religiões do mundo inteiro reconheceram essa afirmativa e instruíram a humanidade na arte de viver a consciência de Deus”.
Encontramos esse ensinamento com muita clareza no Pai-Nosso, em que Jesus nos alerta com a frase: “E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”. Esse mal inicia em nós mesmos através das tentações que nos fazem sucumbir. São também os rancores, ódios, desejos de vingança, descuidos diante do perigo, pensamentos e tramas que prejudicam os outros etc.
“Livrai-nos do mal” não se refere somente ao mal que existe fora, na coletividade, e pode me atacar, mas àquele mal que pode me possuir, e que vem de dentro do meu próprio eu. C. G. Jung escreveu certa vez que nós nos tornamos o que fazemos. Quando uma pessoa age de maneira realmente destrutiva — como diz von Franz — e “não como todo o mundo, sendo meramente preguiçosa, enganadora etc., a reação imediata é a de que se trata de algo desumano, especialmente na psicose ou nos estados psicóticos, nos quais às vezes se encontra uma destrutividade tão fria e demoníaca e, ao mesmo tempo, tão ‘divina’ que se fica fascinado”.
Trata-se do arquétipo do mal que nos choca e fascina, fazendo-nos absorver com horror os noticiários da mídia.
Von Franz continua: “Isto nos dá um frio na espinha porque não sabemos o que fazer — é por demais terrível e chocante; e é esta coisa horrível e chocante nas pessoas que as leva a cometer um assassinato a sangue frio”.
Existe o aspecto do “camponês primitivo” dentro de nós, que fica fascinado, ao mesmo tempo excitado e horrorizado diante de situações escabrosas, sejam crimes ou acidentes. É só observar como as pessoas, ainda que com horror, contam detalhes e especulam acerca de fatos mórbidos de que tomaram conhecimento. Muitas vezes descrevem esses fatos com detalhes e não conseguem poupar os ouvintes. Jung conta que, em suas viagens pela África, “sempre que acontecia algo terrível as pessoas se sentavam em volta do cadáver durante horas, tagarelando sobre o que tinha acontecido, enchendo os olhos com aquela terrível visão”.
Ainda que possamos compreender o “camponês primitivo” dentro de nós, que fica fascinado diante das coisas terríveis do mal, porque o terrível é também “divino”, fazer o mal ou tomar a decisão proposital de cometer uma maldade, leva-nos a transformar-nos em mal. “É por isso, segundo Sanford, que experienciar os mais obscuros impulsos da sombra não é um problema para a sombra, já que facilmente podemos nos tornar possuídos pelo mal numa tentativa dessas. Isso atesta a natureza arquetípica do mal, e uma das qualidades dos arquétipos é a sua capacidade de se apossar do ego — é como estarmos sendo devorados pelos arquétipos ou identificados com eles”.
Diante de tais constatações, fica claro a necessidade cada vez maior de que ampliemos a nossa consciência individual para que se evite a identificação com a sombra coletiva com a qual estamos inevitavelmente ligados.
Para isso precisamos nos perguntar inúmeras vezes por que somos radicais em determinados assuntos, porque ficamos extremamente irritados diante de alguns fatos, e assim por diante. Toda vez que as emoções parecem tomar conta de nós, devemos ter uma atitude de observação. Pois as emoções revelam que estamos nos fechando sob um aspecto, impedindo a possibilidade de analisar outros lados da questão, que, por alguma razão, nos é difícil. Por isso dizemos que a emoção nos cega. Porém, se tivermos a coragem de encarar nossos sentimentos de inveja, ressentimentos, raivas etc., assumiremos a nossa visão parcial diante das questões, assumiremos também a nossa responsabilidade por nós mesmos, aceitando nossas imperfeições, e propiciando um crescimento efetivo e aprofundado de nossa personalidade.
5. O arquétipo do mal
“Por causa de sua fascinação, o mal tem um considerável poder sobre a alma humana; esse poder é tão grande que C. G. Jung disse que apenas duas coisas poderiam deter uma pessoa de cair em poder do mal: se a alma da pessoa for preenchida com um poder maior que o poder do mal, ou se a pessoa pertencer a uma calorosa e receptiva comunidade humana” (Sanford).
A partir dessa intuição de Jung, lembrada por Sanford, podemos começar a refletir como a questão da marginalidade, sombra e mal podem ter algumas propostas de solução. A primeira delas, parece-nos, é que precisamos encarar nossa sombra pessoal, e fazer uma reflexão maior sobre nossas projeções. A segunda está mais ligada a um âmbito social, onde uma avaliação mais aprofundada dos valores se faz necessária.
Quanto à sombra pessoal, podemos citar o depoimento de um paciente de Jung que é bastante ilustrativo:
“Muita coisa boa me veio através do mal. Mantendo-me quieto, sem reprimir nada, permanecendo atento e aceitando a realidade — aceitando as coisas como são, e não como eu gostaria que fossem — ao fazer tudo isso, um conhecimento fora do comum se aproximou de mim (…) como eu nunca antes imaginara. Sempre achara que, quando aceitávamos as coisas, elas nos subjugavam de uma maneira ou de outra. Ocorre que isso não é de modo algum verdadeiro, e é somente aceitando-as que podemos adotar uma atitude com relação a elas. Portanto, agora pretendo jogar o jogo da vida, ser receptivo a qualquer coisa que me suceder, boa ou má, com o sol e a sombra sempre alternando-se e, desse modo, também, aceitando minha natureza com seus aspectos positivos e negativos. Desse modo, tudo fica mais dinâmico para mim. Que tolo fui! Como tentei fazer com que tudo caminhasse da maneira como eu queria!” (citado em Storr, A., Solidão, Paulus, 1996).
Esse depoimento, escrito em uma carta para Jung, fala-nos da vida como ela é, dos aspectos positivos e negativos, da aceitação de si mesmo e, consequentemente, da vida. E lá está, no Pai-Nosso, a mesma proposta: “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”.
Outro aspecto importante, também apontado por Sanford, acerca do mal, é que, “se ele não tiver oponentes, simplesmente crescerá, fortificando-se cada vez mais; e ainda, a pior coisa que podemos fazer em relação ao mal é tentar apaziguá-lo”. Nesse sentido, podemos notar como a própria educação se torna ineficiente, quando, a partir de uma psicologia falsa e distorcida, os educadores — pais e escola — tentam não “contrariar” as crianças, ou mesmo fingir não perceber suas birras. Assim, crianças teimosas e birrentas acabam por se tornar pequenos ditadores, e provavelmente adultos desastrosos, sem nenhum respeito a si e ao outro. Muitas vezes, também, aplacar o comportamento carente do outro apenas faz com que suas más tendências aumentem. É, então, somente o pai ou educador que já lidou com suas próprias carências e más tendências e que pode dizer não a si mesmo, que poderá fazê-lo em relação ao outro.
Partindo do âmbito pessoal para enxergar o outro, o social, podemos observar que a coisa mais difícil para o ser humano é “amar o próximo como a si mesmo”. Apesar de von Franz dizer que “o fato de que alguém possa se imaginar matando um semelhante, alguém da mesma substância, o que não é normal em animais de sangue quente e transcende a natureza humana”, o homem sempre foi hostil ao próprio homem. Houve sempre na história guerras entre os povos, gerando escravidão e barbaridades em relação aos povos vencidos. Como se o homem não visse no outro um semelhante, alguém da mesma substância. Se a cor, a cultura, os traços físicos diferem, isso deveria ser a riqueza da humanidade, como o é; porém, o homem desconhece seu semelhante na essência e por conta dessas diferenças desenvolve uma moral preconceituosa. Como já vimos, isso está inteiramente ligado à questão da sombra pessoal e coletiva.
6. Paradoxos da sociedade moderna
Se atualmente o desenvolvimento da tecnologia dos meios de comunicação, dos sistemas econômicos, promoveu aproximação maior entre os povos, paradoxalmente esses mesmos sistemas distanciam as pessoas umas das outras.
A competitividade, a ganância, a escalada para a ascensão social têm sido de uma violência tão bárbara quanto a invasão dos hunos, pois são inúmeros os que caem e vão ficando para trás com vida destroçada, mutilados. Um dos grandes problemas atuais é o desemprego e a falta de oportunidades de trabalho em todos os países com médio ou grande desenvolvimento tecnológico. No decorrer da história o homo faber passou a ser um empregado, um trabalhador com certa estabilidade. Hoje em dia, não existe mais empregos nem trabalho para grande parte das pessoas, impedindo-as de viver mais plenamente as potencialidades do seu eu.
Voltando à afirmação de Jung, o mal só pode ser detido se “a alma for preenchida com um poder maior, e se a pessoa pertencer a uma comunidade que a acolha”. “O fato de a pessoa ser parte de uma hierarquia, e de ter trabalho específico para realizar, confere significado à sua vida. Isso também lhe oferece estrutura de referências através da qual percebe sua relação com os outros” (Storr).
Só assim a comunidade pode ser acolhedora e conseguir ser solidária com seus membros, transmitir seus valores e sua história através das gerações, e permitir que cada indivíduo tenha oportunidade de desenvolver-se tanto física como socialmente — e isso se traduz mediante um trabalho efetivo e significativo para si mesmo, bem como para a coletividade.
Podemos ainda considerar o que Jung escreveu a William W., um dos fundadores dos “Alcoólatras Anônimos”: “Estou fortemente convencido de que o princípio do mal que prevalece neste mundo dirige a necessidade espiritual não reconhecida para a perdição, a não ser que seja neutralizada, ou por uma compreensão real da religião, ou por um muro de protestos da comunidade humana. Um homem comum, desprotegido dos fatores mencionados, e isolado na sociedade, não consegue resistir ao poder do mal” (C. G. Jung, Letters, 2, Princeton Press, 1975).
E ainda, num dos seminários sobre Zaratustra, Jung diz: “Vejam, eliminar Deus de uma maneira muito extensa é o mesmo que negarmos o fato de estar famintos, mas então começamos a nos comer uns aos outros, tornamo-nos tão famintos que uma catástrofe se seguirá: serão desenvolvidos em nós apetites que não seriam, se esses fatores psicológicos estivessem nos lugares certos”.
Nesse seminário de 6/5/1936, Jung já antevia, a partir da negação de Deus e da ideia de super-homem de Nietzsche, que a humanidade poderia viver a catástrofe do autoaniquilamento.
A questão da marginalidade e sombra social se coloca, pois, como uma questão vital não só para o indivíduo como para toda a coletividade. A sociedade como um todo só poderá se erguer se houver uma profunda revisão nos valores pessoais e coletivos. Se formos por demais tolerantes com os vícios e com o mal, e se ainda nos tornarmos cínicos diante da vida, o caminho é, sem dúvida, o da nossa destruição.
7. Jesus e os dois ladrões
Cristo, na cruz, esteve entre dois ladrões. Um falou: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós”. Podemos perceber aí uma atitude desafiadora, cínica e irresponsável, pois colocava a sua salvação na mão do outro, quase como “obrigação” do outro, já que era Deus.
O segundo ladrão, também chamado o “bom ladrão” por Lucas, disse: “Nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação? Quanto a nós, é de justiça, estamos pagando por nossos atos; mas ele não fez nenhum mal”. E acrescenta: “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com teu Reino”.
A atitude desse ladrão foi completamente diferente. Primeiro ele demonstrou temor a Deus; segundo, reconhecia os próprios erros, e, portanto, aceitava suas penalidades; e, terceiro, suplicou a misericórdia divina com humildade. Portanto, o divino e o humano estavam contidos em seu ser, e, ao mesmo tempo, sabendo-se pequeno diante daquilo que transcende o homem, o Reino de Deus.
E foi a esse que Jesus respondeu: “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso”.
Fica-nos como reflexão final esses dois ladrões: com qual deles convivemos no nosso eu interior? Em que momentos aparece um ou outro? Um revela-nos o caminho da salvação; o outro, não.
Bibliografia
1. C. G. Jung, Nietzsche’s Zarathustra — Notes of the Seminar given in 1934-1939, Princeton University Press, 1988.
2. Marie-Louise von Franz, A sombra e o mal nos contos de fadas, Paulus, São Paulo, 1985.
3. Sanford, J. A., Mal, o lado sombrio da realidade, Paulus, São Paulo, 1988.
4. Storr, Anthony, Solidão, Paulus, São Paulo, 1996.
5. A Bíblia de Jerusalém, Paulus, São Paulo, 1980.
6. Fox, Matthew, “Stories that need belling today”, in Sacred Stories, Editado por Charles Simpkinson e Anne Simpkinson, Harper, San Francisco, 1993.
7. Bennett, William J., O livro das virtudes, Ed. Nova Fronteira, São Paulo, 1995.
Profa. Maria Elci S. Barbosa