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Publicado em número 200 - (pp. 7-12)

Educação: na liberdade para a responsabilidade

Por Pe. Hermilo E. Pretto, cs

Introdução

O texto que segue é uma tentativa de reflexão sobre o tema da educação em termos de liberdade e responsabilidade, num contexto de grandes desafios como é o que estamos vivendo. Quem observa com um pouco de atenção o panorama educacional do nosso tempo, sobretudo em nosso contexto brasileiro, irá perceber um impasse inquietante.

De um lado, pais despreparados, incapazes de verdadeira tarefa educativa, por não compreenderem que a única autoridade consistente é a que brota da força moral, que só pode vir pelo testemunho. Eles mal se dão conta de que estamos atravessando uma grande revolução cultural, com ênfase na provisoriedade de todas as iniciativas, na perda de consistência da palavra dada, na enorme e quase insuperável dificuldade em assumir compromissos definitivos, no poder de sedução exercido pelos modernos meios de comunicação de massa, na revolução sexual, no surgimento de propostas alternativas para a família, na supremacia da subjetividade moral por referência à objetividade. De outro, pseudopedagogos, sem conhecimentos mínimos de antropologia, que julgam poder-se educar na exclusão de qualquer indicação de limites. Alguns educadores parecem tomados por inusitada confiança numa suposta índole naturalmente pacífica do ser humano. Certas asserções deixariam perplexo o próprio Rousseau.

Acrescente-se a isso o cultivo das aparências em detrimento da realidade mais profunda, o desconhecimento de que a realidade do ser humano é essencialmente conflitiva e de que todo o processo educativo é, por natureza, violento porque direciona a assimilação de valores e determina comportamentos e atitudes. Em face de tal situação, é compreensível que não poucos pais abdiquem da tarefa educativa e um número crescente de educadores chegue à beira do desespero por não entreverem possibilidades que as circunstâncias parecem excluir de maneira flagrante. Em razão disso, parece-me importante aprofundar a questão no sentido de tentar abrir caminhos que façam da educação fator de crescimento da pessoa em todos os níveis.

 

1. Liberdade: pressuposto de toda educação

Quem reflete sobre a condição humana percebe toda a ambivalência da liberdade. Se, por um lado, ela é a grande aspiração do ser humano, aquilo que o engrandece e o torna responsável pelo próprio destino, por outro ela se revela um peso quase insuportável. Ser livre implica tomar decisões e responder por elas, com o risco permanente de errar. Compreende-se, a partir dali, a razão pela qual a massa humana, com excessiva frequência, assegure apoio a formas discricionárias de governo. O exercício da democracia e, consequentemente, da liberdade, gera por vezes angústia em razão sobretudo da incerteza que toda decisão acarreta. Daí a frequente tentação de apoiar e de incentivar o surgimento de lideranças ostensivas que tomem decisões rápidas e eficientes, dispensando as pessoas de tão árdua tarefa.

Em face de tentação tão forte, há que se reconhecer a liberdade como um pressuposto irrenunciável de toda educação. Apesar da força ostensiva dos resultados, nenhum processo de educação tem futuro se as pessoas envolvidas não puderem situar-se no interior de um espaço de liberdade. E quando se ignora este dado, uma eventual reversão dos fatos priva a situação de sua responsabilidade maior. Todos sabemos que os êxitos têm muitos pais e muitas mães. Já os fracassos são órfãos de pai e mãe. Mesmo reconhecendo que, em tantas situações, a liberdade seja um risco e até um peso, o processo educativo simplesmente não acontece se as pessoas envolvidas não a assumirem como um bem de referência do qual depende a dignidade humana e o sentido mesmo da vida. Eu diria até que sua aceitação, com tudo o que ela representa em termos de responsabilidade e de criatividade, é o melhor testemunho da qualidade de um processo educativo.

A partir do que foi dito até aqui, parece-me cabível sustentar outro elemento indispensável: o imperativo da autodeterminação. Somente as pessoas livres podem ser educadas. A primeira tarefa, por conseguinte, é a de ajudar as pessoas no sentido de que elas assumam livre e responsavelmente a própria educação, permitindo-lhes compreender que o processo educativo é exigência da condição humana e do imperativo de construir uma rede de relações significativas e consistentes. O determinismo instintivo, que ocupa espaço tão relevante na vida animal, é relativamente insignificante para o ser humano. A organização construtiva de sua vida depende, em larga escala, da aprendizagem. Mas esse é apenas o pressuposto. A meta a ser atingida é a de levar as pessoas à autodeterminação como a forma talvez incômoda, mas literalmente irrenunciável, de elas exercerem a própria liberdade. Não constitui humanidade delegar o poder de decisão principalmente em questões que interferem no sentido e na orientação fundamental da vida. Assim, é possível avaliar a qualidade de um processo educativo pela capacidade de tornar as pessoas sempre mais livres e mais responsáveis. Sua desqualificação evidencia-se quando deixa as pessoas em estado crônico de dependência. Não é consentido ao ser humano viver por procuração. Esta proibição brota da raiz mesma de seu ser.

 

2. Educação: comportamento e atitudes

Ao falar em comportamento, faço referência à objetividade do agir humano. Ao falar em atitudes, refiro-me à dimensão da subjetividade, que determina a qualificação humana de tal agir, sua razão inspiradora.

 

a) Comportamento e funcionalidade

Quando, em nível de sociedade, o assunto é educação, não é difícil detectar um lamentável equívoco. Parece haver uma preocupação no sentido de levar as pessoas a se comportarem de uma determinada maneira. De uma forma ou de outra, todos deverão ser enquadrados para que se assegure certa funcionalidade. Nenhuma sociedade suporta por muito tempo uma situação de desordem generalizada. Nas formas mais primárias de tal visão funcional acena-se à necessidade de que sejam acionados mecanismos coercitivos visando a levar as pessoas a agirem de uma certa forma, mesmo que elas estejam propensas a fazer o contrário, caso isso lhes seja facultado. Não raro a própria força da coação depende de fatores circunstanciais, como a ausência ou atenuação das formas de controle. Não é segredo para ninguém que, ressalvando gratificantes exceções, na escuridão não há virtude… Se levarmos a sério essa indicação, teríamos de chegar à seguinte conclusão: não existem povos educados ou civilizados. A verdadeira educação, ou civilização, deveria levar a uma relativização progressiva dos mecanismos coercitivos. Na verdade, as chamadas nações civilizadas são justamente aquelas onde as leis são aplicadas com rigor. Ainda recentemente foi-nos dado observar manifestações de barbárie em povos de elevadíssima civilização. Para tanto é suficiente que o sistema de leis seja suspenso, como geralmente ocorre em tempos de guerra ou de outras graves calamidades.

 

b) Atitudes e responsabilidade

É evidente, em consequência, que nenhum autêntico projeto educativo pode dar-se por satisfeito com o fato de as pessoas agirem de uma determinada forma em razão das sanções que poderão ser aplicadas.

É terrivelmente precária a situação de uma sociedade que se pauta por níveis razoáveis de funcionalidade, mas que está exposta ao arbítrio sempre que os mecanismos coercitivos são abolidos ou perdem vigor. Quem poderia confiar em semelhante situação se, a qualquer momento, a ordem pode ser alterada, possibilitando vazão à barbárie que o ser humano sempre aninha no mais profundo de si mesmo? Não seria sensato imaginar que em cada hebreu que saiu do Egito como escravo havia um faraó em potencial? Eu diria, por conseguinte, que uma verdadeira educação não pode dar-se por satisfeita com o fato de as pessoas se comportarem ajuizadamente porque há mecanismos repressivos que ferreamente assim determinam. Qual seria, então, a meta de uma educação que se pretenda séria? Existe alguma perspectiva de eficácia em profundidade maior?

 

c) Incidência na antropologia

Parece-me razoável sustentar que uma verdadeira educação mede-se por seu reflexo na antropologia. Dito em outras palavras: um autêntico processo educativo pode ser reconhecido por sua capacidade de levar as pessoas a uma adesão profunda aos valores que asseguram densidade e consistência à vida. E isso com uma margem muito pequena para os mecanismos coercitivos. Digo isso porque, no interior da condição humana, não é pensável uma situação em que todos, sem exceção, sejam capazes de aderir aos valores fora e longe de toda pressão. Em síntese, a educação deveria dar origem a um ser humano novo, capaz de não reproduzir a situação anterior e sempre aberto a criar novas situações de liberdade e dignidade humana. Quanto mais educado for um povo, sempre menor será o espaço reservado aos mecanismos coercitivos. Inversamente, quanto maior for a necessidade sentida por tais mecanismos, menor será o nível de educação atingido. As pessoas realmente educadas dispensam toda forma de pressão.

 

3. Educação e obediência

Quem acompanha de perto os caminhos e descaminhos da educação sabe que a obediência hoje é vítima frequente de um verdadeiro terrorismo verbal. Parece haver uma incompatibilidade de princípio entre ela e a liberdade. Não é difícil reconhecer que semelhante postura tem lá suas razões de ser, principalmente porque a obediência foi tantas vezes compreendida como submissão. Assim, muitos educadores pretendem submeter as pessoas que lhes foram confiadas (geralmente crianças, adolescentes e jovens), imaginando com isso que as estariam educando. Essas, por sua vez, não raro resistiram a semelhante proposta. E, convenhamos; se obediência significa submissão, ficamos literalmente sem alternativas: precisamos excluí-la da forma mais radical que nos seja possível. Ninguém detém sequer o direito de submeter-se. E o que dizer dos sistemas que presumem deter o direito de submeter os povos, levando-os a formas progressivamente insensatas de obediência e ordem?

 

a) O Tempo e a História

Em razão dessa terrível deformação, perdemos em grande parte a capacidade de compreender que a obediência é um dos temas essenciais da existência humana. O ser humano, com efeito, deve rigorosa obediência ao Tempo e à História. O encadeamento dos acontecimentos, em formas tantas vezes surpreendentes, é testemunho de que a História não resulta da conjugação casual de fatos e eventos, que revelem maior ou menor densidade e consistência. Para aqueles que se alimentam numa fé religiosa há o reconhecimento de que Deus está na origem e na inspiração de todos os grandes processos históricos, mesmo em sua radical ambiguidade. O que é interessante observar, no interior de tal perspectiva, é que o Tempo e a História em tantas situações são portadores de perspectivas vitais, de autêntica novidade, de inspiração para novos caminhos de fidelidade maior ao princípio da vida. A este respeito, Jesus expressou com clareza esta dimensão de obediência aos sinais dos tempos como indicações dos caminhos de Deus: “Ao entardecer dizeis: ‘Vai haver bom tempo, porque o céu está avermelhado’, e de manhã: ‘Hoje teremos tempestade, porque o céu está de um vermelho sombrio’. O aspecto do céu sabeis interpretar, mas os sinais dos tempos, não podeis” (Mt 16,2-3). Constitui terrível deformação confundir o princípio da vida com suas expressões históricas, sempre precárias. De todo o modo, uma eventual desobediência à vida terá como consequência as piores arbitrariedades.

 

b) A estrutura do ser

Mas esta obediência ainda não é tudo. O ser humano deve ainda, e principalmente, obediência à estrutura mais profunda de seu ser. É dali que brotam as determinações éticas que devem pautar a existência humana. Sabemos quais sejam os impasses da heteronomia, quando as determinações que deveriam orientar o ser humano, na perspectiva de assegurar sentido e consistência à vida, não brotam de seu ser, mas resultam de imposições que levam fatalmente para a desumanização. À medida que se procura uma vida de plenitude, essa obediência revela-se indispensável. Andar em sentido contrário leva fatalmente para a despersonalização.

Essa é a razão pela qual se revela necessária a associação entre educação e obediência. Mas integra igualmente a proposta educativa o discernimento que permita distinguir os verdadeiros processos vitais das banalidades inspiradas no senso comum, nos modismos passageiros e inconsistentes, nos gostos duvidosos da economia de mercado. O educando precisa saber que a obediência, entendida no interior dessa perspectiva, é a condição de sua plena realização. A verdadeira educação vem pela responsabilidade e jamais pela conformidade e pela submissão. Se funcionalmente ainda é possível falar-se em obediência a esta ou àquela autoridade, é somente à medida que, pelas circunstâncias históricas, determinadas pessoas são chamadas a conduzir a caminhada da sociedade, de uma comunidade particular e até de um grupo ou de qualquer núcleo humano. Mas, a rigor, a obediência não é a elas, e sim aos sinais dos tempos e à estrutura do ser. Nesse sentido, para exigir obediência, elas mesmas devem testemunhar que são obedientes a tais critérios maiores. Não pode exigir obediência quem vive de forma anacrônica e trai a lei do ser. No fundo, trata-se de compreender que são apenas mediações, circunstancialmente necessárias, mas fatalmente superáveis.

Problema de não menor importância é o de tentar compreender de que forma o educando deve aprender a obediência, na perspectiva de que estamos falando, e de que maneira ela deva ser posta em execução. Como pensamos e agimos no interior da condição humana, não podemos ignorar todo o âmbito de extensão e de profundidade da radical ambiguidade. Aqui discernimos graduações, deformações e infidelidades. Mas encontramos também formas paradoxais de obediência à medida que ela for compreendida como referência à autoridade constituída.

 

c) Obediência como submissão

Há uma forma de obediência que vem como submissão. Sem pretender apresentar comprovações estatísticas, não é difícil perceber que, na grande sociedade, nas comunidades pastorais e até em comunidades religiosas, esta seja a forma mais comum de obediência. Temos aí o testemunho mais contundente de uma educação que radicalmente falhou em sua tarefa maior. Mais acima dizia que um verdadeiro projeto educativo deve pressupor a liberdade e precisa levar ao exercício responsável da liberdade. Não deixa de ser penosa a constatação de que, tantas vezes, pessoas sem conta foram educadas para a submissão, para a transferência de responsabilidade, para a renúncia à autodeterminação. Parece-me possível afirmar que somente as pessoas livres podem ser verdadeiramente obedientes e que somente uma verdadeira obediência é capaz de levar as pessoas às formas mais elevadas da liberdade. Enquanto a sociedade estiver constituída por superiores e súditos, a obediência será sempre submissão. Com isso quero dizer que uma verdadeira educação carrega a exigência de uma recriação da sociedade no interior de parâmetros que têm a pessoa humana como referência maior.

 

d) Obediência como disponibilidade

Uma outra forma de obediência leva o nome de disponibilidade. É possível perceber que um número razoável de pessoas assume a vida em espírito de disponibilidade, sobretudo em referência ao princípio maior da vida. Muitos de nós já tiveram a oportunidade de encontrar uma pessoa disponível. Caracteriza-a enorme capacidade de passar para um segundo plano projetos e interesses pessoais a fim de que outras pessoas possam viver em dignidade maior. O que mais surpreende em tais pessoas é a frequente constatação de que, ao abrirem mão de vantagens pessoais, não expressem contrariedade e tristeza, mas profunda alegria. Essa forma de obediência, entendida como disponibilidade, é testemunho eloquente da qualidade de um processo educativo.

 

 

e) Obediência como transgressão

Por fim, há uma forma de obediência que poucas pessoas conseguem compreender porque contradiz de maneira flagrante o senso comum. Somente uma atitude de profunda liberdade e de renúncia a toda espécie de preconceito pode ajudar no reconhecimento de que algumas pessoas, por uma vocação paradoxal, são chamadas a obedecer pela transgressão. Elas geralmente revelam enorme capacidade de transcendência em relação ao tempo presente e conseguem antecipar o futuro. Em nome deste futuro de maior vida e de maior liberdade elas transgridem as determinações existentes e propiciam a emergência do autenticamente novo.

Tais pessoas costumam ser vítimas de todas as formas de incompreensão porque não se conformam àquilo que aí está e buscam, com todas as forças, expressões maiores de dignidade humana. Elas sofrem terrivelmente até mesmo a exclusão, incomodam todos os conformados, geram inquietação em tanta gente, vivem no ostracismo, porque na sociedade não há lugar onde possam ficar. Mesmo que nós nos sintamos incomodados com semelhante situação, deveríamos expressar profunda gratidão por elas exatamente à medida que propiciam transformações para melhor. Com efeito, não são os submissos que permitem à História dar passos qualitativos, e sim aqueles que, em atitude de profunda responsabilidade, têm a coragem e a ousadia de transgredir. Enquanto uma sociedade continuar a excluir os transgressores responsáveis, dificilmente haverá esperança de mudanças substanciais em direção a uma nova humanidade.

Mas se revela no mínimo temerário alguém atribuir a si tão estranha vocação. Se uma pessoa, ao acordar pela manhã, alimentasse a convicção de que é profeta, a decisão inadiável seria a de interná-la num manicômio. Os verdadeiros profetas costumam apresentar elevado nível de autocrítica, e normalmente alimentam a convicção de que o profetismo não lhes pertence. Em não poucos casos, como ocorre nas vocações proféticas testemunhadas pela Bíblia, eles chegam a opor resistência em razão da consciência da própria indignidade e das dificuldades inerentes a tal missão. Ao que tudo indica, anima-as o espírito de serviço, qualificação essencial de toda a missão. Daí o senso de responsabilidade que sempre as acompanha.

 

f) Discernimento

Como seria possível distinguir entre autêntico e falso transgressor? A questão é um tanto complexa. Um critério interessante é o desprendimento com o qual a pessoa transgride. Ela nunca se envolve numa transgressão em seu próprio benefício, no sentido de usufruir vantagens e privilégios. Outro critério é a exclusão de todo complexo de vitima. Não transgride responsavelmente quem não sabe pagar o preço, tantas vezes bem alto, das próprias opções. Outro ainda é a dúvida permanente quanto à retidão do projeto em função do qual transgride. Não é verdadeiro obediente, nesse sentido paradoxal, quem confunde as próprias ideias com o projeto da vida. A dúvida, afinal, é também um sinal da sanidade mental e moral de uma pessoa.

Em síntese, a verdadeira educação é capacitação para esta obediência que só pode acontecer em espírito de disponibilidade (sempre) e de transgressão (em determinadas circunstâncias). Se o projeto educativo tantas vezes não consegue atingir seus objetivos, a razão prende-se também aos incontáveis equívocos que o envolvem. A busca de formas de convivência marcadas pela ausência de conflitos parece sugerir que a mais eficiente forma de educação seja a que leva as pessoas à submissão. Na verdade, temos aí terrível deformação. É por essa razão que mais acima eu dizia que a questão-chave não é a de levar a sociedade a comportar-se de uma determinada forma, em função de mecanismos coercitivos. Isso teria como resultado uma situação de extrema precariedade. A pessoa bem-educada é sempre alguém livremente responsável.

 

4. Educação e sofrimento

Este é o último ponto que eu gostaria de analisar no interior da reflexão sobre o sempre espinhoso tema da educação na liberdade em vista da responsabilidade. Preocupa-me a necessidade de que sejam levantadas as perspectivas mais relevantes porque no processo educativo está em jogo nada menos que o sentido da vida. Educa-se para que as pessoas aprendam a ser fiéis à estrutura mais profunda de seu ser.

 

a) Uma constatação

A questão aqui mostra-se complexa e mesmo muito delicada. O nosso tempo revela, mais que em épocas passadas, extraordinária sensibilidade em relação aos aspectos negativos de todas as formas de sofrimento. E não é sem razão que assim se encare a vida como um todo, aí incluindo o tema da educação. Com excessiva frequência e com requintes de crueldade, o ser humano, ao longo da História, utilizou o sofrimento imposto como forma de submeter o próprio semelhante. Antes do surgimento de ciências como a psicologia e a pedagogia, parece que a sociedade não conhecia outra forma de educar as pessoas a não ser através de meios repressivos. Como garantia de eficiência, sempre foi apresentada a excelência dos resultados. Mal se conseguia perceber que as pessoas educadas tantas vezes eram aquelas que haviam sido reduzidas à submissão pela força. Quando lemos relatos de experiências passadas, surpreende-nos a severidade com a qual pais e mestres educavam seus filhos e alunos. Em tantos casos, ocorria flagrante desrespeito à dignidade humana. Quem, em nosso tempo, ousaria ainda fazer a apologia de semelhante violência?

 

b) Outra face da realidade

Mas apesar do desconforto que isso possa provocar nas pessoas, julgo poder dizer que esta é apenas uma das faces da moeda. Visualizar o aspecto repulsivo do sofrimento pode até ser cômodo e situar-nos numa postura de bom senso. É lícito, no entanto, perguntar: estaria ali toda a verdade? Devo reconhecer, com certo pesar, que o nosso tempo não se revela propício para uma reflexão mais serena, profunda e abrangente até porque está enredado em polarizações ideológicas que em nada ficam devendo à intransigência dogmática habitualmente atribuída à Igreja. O diálogo revela-se difícil porque ele só é possível quando as pessoas envolvidas têm a honestidade de alimentar dúvidas quanto às próprias interpretações e estão abertas a outras posturas, até mesmo alternativas. Como é possível caminhar construtivamente com pessoas que presumem deter a posse da verdade e excluem por princípio a possibilidade da busca?

 

c) Sofrimento e humanização

Mesmo lamentando tal estado de coisas, gostaria de chamar a atenção do leitor para a força de humanização que vem do sofrimento. Observando nossa própria experiência, é possível constatar que as grandes lições de vida, aquelas que são portadoras de sabedoria, geralmente vêm pelo sofrimento. O êxito, com sofreguidão buscado por tanta gente, tende a criar uma situação ilusória que pode levar à presunção quanto às próprias possibilidades. Já o fracasso, com o que ele tem de decepção e até de humilhação, frequentemente permite dimensionar a vida em sua justa medida. A pessoa que enfrentou a dor com dignidade, sem complexo de vítima, tem uma chance extraordinária de plenificar-se de humanidade.

Parece-me possível, a título de exemplo, citar casos de grandes sofredores que despertaram para extraordinária dignidade e atingiram sensibilidade incomum em face do sofrimento alheio, justamente a partir do próprio sofrimento. Aliás, como pode ser capaz de compaixão alguém que nunca sofreu? Hoje observamos crianças e adolescentes que, segundo a pedagogia de plantão, não podendo passar por nenhuma contrariedade, revelam insensibilidade diante da dor, das limitações da idade e das deficiências físicas das outras pessoas. Quanto fazem sofrer essas crianças e esses adolescentes que não podem sofrer!

Não se trata, absolutamente, de infligir o sofrimento. Mas não é, por acaso, essencial a percepção do limite para que a convivência humana seja possível? Haverá alguém incapaz de compreender e aceitar que os direitos de uns terminam onde começam os direitos dos outros? Mais ainda: é possível falar-se em justiça quando se tem uma consciência exasperada dos próprios direitos e uma consciência reduzida dos próprios deveres? É sensato falar-se apenas dos direitos da criança e do adolescente, omitindo intencionalmente seus deveres? Fica sempre a impressão de que nosso sistema educacional se fundamenta num lamentável equívoco.

 

d) Um testemunho

No interior do reconhecimento da força de redenção que o sofrimento tem, gostaria de lembrar o caso do escritor russo Dostoievski. Tendo-se envolvido numa conspiração política, é condenado a quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria e mais quatro como soldado raso. Antes de partir, ele escreveu ao irmão: “Não me sinto abatido, não perdi a coragem, meu irmão. A vida está em toda parte, a vida reside em nós, e não no mundo que nos rodeia. Perto de mim haverá homens, e ser um homem entre os homens, e sê-lo sempre, em quaisquer circunstâncias, sem desfalecer nem tombar, eis o que é a vida, o verdadeiro sentido da vida”[1]. Seus biógrafos reconhecem que “aqueles quatro anos são como o reservatório secreto onde o seu gênio se alimentará daí para o futuro”[2]. Ele chegou a dizer, em 1880, ao jovem Mieriechkóvski, que foi ler-lhe seus versos: “Para escrever bem é preciso sofrer, sofrer”[3]. “Caso evidente de masoquismo”, diria alguém. Mas quem conhece a quase ilimitada compaixão de Dostoievski pelos sofredores da terra (uma de suas obras leva o título surpreendente de “Humilhados e Ofendidos”) sabe onde foi que ele aprendeu essa grande lição de sabedoria.

Em síntese, e como conclusão: Não se trata de aprovar o sofrimento e, menos ainda, de infligi-lo às pessoas no processo educativo. Quem quer ver o ser humano vivendo com dignidade deve ajudá-lo a eliminar a dor. Mas há dores que decorrem da condição humana, com sua limitação estrutural, e do próprio processo de crescimento. Enfrentá-las com coragem, sem “vitimismos”, constitui dignidade incomum. Parece-me residir aqui justamente uma das qualificações essenciais de todo processo educativo. Uma verdadeira educação deve ter como meta primeira e referencial maior levar as pessoas a atingir a plenitude da vida. A funcionalidade é uma questão derivada, cuja modalidade depende sempre do nível educativo atingido. As leis que regulam tal funcionalidade tenderão progressivamente a perder em importância à medida que os valores humanos fundamentais forem assimilados num autêntico processo de conversão.



[1] Em: Fiódor Dostoievski, Obra completa, Vol. 1, Introdução geral, p. 36, Ed. Nova Aguilar, 1995.

[2] Ibid., p. 38.

[3] Ibid., p. 54.

Pe. Hermilo E. Pretto, cs