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Publicado em número 178 - (pp. 7-12)

Cidadania: crítica à lógica da exclusão

Por Prof. Hugo Assmann

Neste artigo tenta-se relacionar a questão da cidadania com a da exclusão social. Não para ficar na mera constatação de que essa exclusão é real e atinge grandes multidões. Busca-se enxergar algo dos nexos causais que geram essa realidade. Não se trata de acusar moralisticamente um inimigo, talvez o imaginando armado das mais perversas intenções e de um calculismo frio. Tal fantasia, além de falsa, não ajudaria em nada. Trata-se de compreender as condições histórico-evolutivas que levaram a humanidade a um impasse sem precedentes.

O maior desafio ético da atualidade e, nesse sentido, o fato maior deste nosso tempo é, sem dúvida, a presença de uma estarrecedora lógica da exclusão no mundo. Grandes contingentes da população mundial passam ao rol de “massa sobrante” e faltam as decisões políticas necessárias para uma efetiva dignificação de suas vidas. Se estamos, de fato, imersos num desmedido processo antissolidário, numa espécie de anticidadania estrutural, qual é a força transformadora das nossas linguagens sobre a cidadania?

 

I. Fenomenologia da nova linguagem

As palavras do título parecem solenes: cidadania, lógica da exclusão. Mas evidentemente não é questão de apegar-nos demais a esses termos. Seu significado sempre depende do seu uso, e não adianta querer atribuir-lhes um sentido imutável. Vejamos rapidamente algo a respeito da circulação e da serventia desse tipo de linguagem.

 

1. Cidadania é palavra de muito e diferenciado emprego. Desde a Constituinte (1987-1988), passando pelo acúmulo de frustrações com a “Constituição Cidadã” (como alguns a quiseram batizar), até o incipiente desvendamento do lamaçal de corrupções que encharca o país, sempre de novo a linguagem sobre a cidadania voltou ao centro dos reclamos éticos. É bom saber que o fenômeno adquiriu características bastante peculiares no Brasil.

O fascínio e a manipulação da linguagem sobre a cidadania faz com que ninguém mostre querer desistir dela. Por mais que se trivialize e banalize, continua inegavelmente importante, embora o processo de expropriação dessa linguagem pelos setores mais conservadores tenha avançado assustadoramente. Está, pois, fora de discussão a relevância dessa linguagem, mas seria ingênuo acreditar que a palavra cidadania guarda em si mesma o selo de uma significação exigente. E necessário colocar-lhe referenciais explícitos de proposta política, econômica, educacional etc., para que não flutue no olimpo dos universais abstratos do discurso ideológico, que sempre fareja o “politicamente correto”.

Cidadania será nosso tema indireto, enquanto implicado no da lógica da exclusão. Basta-nos esta definição mínima: cidadania não pode significar mera atribuição abstrata, ou apenas formalmente jurídica, de um conjunto de direitos e deveres básicos, comuns a todos os integrantes de uma nação (e, por extensão, da humanidade inteira), mas deve significar o acesso real, e juridicamente exigível, ao exercício efetivo desses direitos e ao cumprimento desses deveres. Não há, pois, cidadania sem a exigibilidade daquelas mediações históricas que lhe confiram conteúdo no plano da satisfação das necessidades e dos desejos, correspondentes àquela noção de dignidade humana que seja extensiva a todos num contexto histórico determinado.

A mediação histórica fundamental da cidadania básica é o acesso seguro aos meios para uma existência humana digna. Todos os demais aspectos de uma cidadania participativa supõem essa base mínima. Daí a correlação estreita entre cidadania e trabalho (no sentido de emprego justamente remunerado) na visão até hoje comum dessa temática. Para o trabalhador e seus dependentes, a cidadania se alicerça no direito ao trabalho.

Que sucede, porém, quando a própria noção do trabalho entra numa profunda transformação, ao ponto de muitos começarem a falar do fim do trabalho no sentido tradicional? Será que isso é assunto apenas para países ricos, ou tem algo que ver com o que já está sucedendo também em nosso país? Salta à vista que a questão do emprego, de todos os modos, permanece como um dos elos básicos entre cidadania e lógica da exclusão.

 

2. O uso dos termos exclusão, excluídos começou a multiplicar-se nos últimos anos. Como é sabido, essa linguagem — às vezes mais como exclusão social, outras como exclusão política — tomou conta dos meios de comunicação, especialmente dos chamados alternativos, e já é frequente em revistas especializadas em ciências sociais. Até já entrou em documentos do episcopado, no Brasil. Em alguns círculos pastorais começou-se a falar em “teologia dos excluídos”. A expressão não está isenta de ambiguidades, sobretudo quando serve de expediente para querer virar definitivamente a página da teologia da libertação (que certamente não ficou livre de equívocos, mas teve intuições de ressonância permanente).

Ultimamente, alguns jornais já começaram a ironizar a linguagem sobre os excluídos como “um novo jargão”. É possível que, muito em breve, essa linguagem seja vilipendiada e considerada analiticamente vazia. Se assim acontecer, não bastará constatar, com razão, que também essa rejeição faz parte do jogo ideológico de indiferença em relação aos excluídos. É necessário saber responder aos diferentes níveis da pergunta: excluídos de que e por quê?

 

3. A expressão lógica da exclusão começou a circular, ao que me consta, a partir de um encontro entre filósofos europeus e latino-americanos em Mainz, Alemanha, em 1991. Nossa intenção, ao participar na cunhagem dessa maneira de falar, era bastante clara: revelar o caráter estruturalmente excludente de certas instituições criadas pelo Ocidente com ares ideológicos de inclusão universal e que, enquanto tais, engendram uma enorme quantidade de linguagens “autovalidantes” e autorreferenciais, que se apresentam como inquestionáveis em sua suposta validez. Três exemplos: o direito quando reduzido ao formalismo contratual, a democracia liberal quando reduzida à emissão episódica do voto, e, sobretudo, o mercado quando se pretende irrestrito e cumpridor automático do bem comum.

É fundamental que se entenda: não se trata do prurido de inovar linguagens altissonantes, mas de encontrar um jeito de trazer à luz aquilo que mais se busca ocultar, a saber, que as promessas de inclusão — por exemplo, no caso do mercado — parecem andar pari passu com as evidências da exclusão. Cabe, assim, a suspeita de que, no coração desse tipo de boa-nova cruel, lateja um cerne proveniente do sagrado violento.

É pouco plausível que aumente a aceitação de linguagens desse tipo, nos círculos intelectuais do Norte. Pior: há inúmeras resistências para nem sequer conceder que deveras existe, em termos amplos e planetários, um predomínio da exclusão. Menos ainda se está disposto a reconhecer uma lógica da exclusão, enquanto tendência objetivamente inscrita nas estruturas do poder assim como elas efetivamente funcionam no mundo atual. O discurso que prevalece é, ao contrário, o da messianização do mercado irrestrito como lógica da plena inclusão e solução benéfica para todos. O discurso ideológico oficial da economia de mercado continua sustentando que os que ainda não foram incluídos, um dia o serão.

 

4. Vejamos agora algo sobre o conteúdo analítico da linguagem empregada. Normalmente a palavra exclusão indica formas gritantes de iniquidade social. Mas ela foi adquirindo um sentido analítico mais preciso à medida que se tornou uma espécie de palavra-síntese para nomear as características novas das desigualdades sociais enquanto atingem maiorias, no Brasil e no mundo[1]. As publicações de Hélio Jaguaribe e Cristovam Buarque[2], embora representem posições ideológicas distintas, coincidem em desvendar a lógica perversa “da produção de uma dualidade social, da construção de dois Brasis: de um lado, uma sociedade moderna e industrial, minoritária e, de outro, uma sociedade primitiva, majoritária”[3].

Dívida social, apartheid social, e expressões similares, embora fortes, não expressam da mesma maneira o círculo vicioso da exclusão. Não que a exclusão em si seja fenômeno novo. Houve inúmeras formas de exclusão ao longo da história. As características novas, e até certo ponto inéditas do atual fenômeno da exclusão — com óbvias variantes por países, mas extensiva, por analogia, ao planeta inteiro podem ser resumidas nos seguintes aspectos:

a) a aceleração científico-tecnológica conduz a uma eliminação crescente de empregos tradicionais;

b) a obsessão com o crescimento econômico, apresentado ideologicamente como sinônimo de desenvolvimento social, consolida as tendências de desemprego estrutural;

c) a questão social muda de configuração por causa do surgimento de enormes contingentes populacionais economicamente “inaproveitáveis” e “desnecessários” (“massa sobrante”);

d) na mente dos incluídos surgem profundas mudanças nas imagens ou representações sociais acerca dos excluídos, ou seja, muda profundamente o conceito de pobre;

e) o fenômeno da exclusão vem acompanhado de novas formas de violência real e de representações da violência no imaginário;

f) a abertura à sensibilidade solidária vê-se bloqueada em muitos por ambígua mistura de sensações de impotência, indiferença, medo e ameaça.

 

Como frisa agudamente Elimar Pinheiro Nascimento, “na mudança da representação social do pobre constrói-se a maior novidade da exclusão entre nós hoje: a população economicamente desnecessária passa a ser socialmente perigosa. Este é o retrato perverso da nova exclusão: a criação de uma parcela da população passível de eliminação física”[4].

 

II. Distinções importantes

Para evitar confusões inúteis, convém sublinhar algumas distinções:

1. Admitir que existem excluídos, e muitos, não a mesma coisa que afirmar que existe uma lógica da exclusão. Entre os sensatos e informados, pouca gente nega que as regras do poder, que prevalecem no mundo de hoje, geram multidões de excluídos. No entanto muitos preferem acreditar que, aos poucos e depois de muitas vítimas, algum dia todos os que sobrarem “chegarão lá”; ou seja, que predominará, finalmente, a lógica da inclusão de todos, que se apregoa como a quintessência da economia de mercado. Olhando para trás, para os sucessos do capitalismo, não faltam argumentos que parecem apoiar esse ponto de vista.

 

2. Sustentar que existe deveras, nas atuais circunstâncias do mundo, uma verdadeira lógica da exclusão não representa um veredicto fatalista, como se não fosse possível criar alternativas ao atual estado de coisas. Ao contrário, o duro juízo analítico das atuais circunstâncias visa precisamente ajudar a libertar-nos da ideologia da “única alternativa” do mercado irrestrito. Em outras palavras, essa denúncia crítica pretende alicerçar a esperança de que se chegue a pensar e a aceitar, conjuntamente, a vigência do mercado e seu direcionamento a metas sociais, ou — segundo a frase em moda — que se consiga “democratizar o capitalismo”. Isso, porém, implica confrontar-se com as teorias predominantes acerca do mercado, as quais lhe atribuem um caráter benfazejo automático e reconhecem apenas aspectos excludentes do mercado porquanto ele continua “imperfeito”.

 

3. Evitemos, com máximo cuidado, a perspectiva moralista, tão comum nesse tipo de reflexão, especialmente entre cristãos. Em que consistiria, em nosso caso, esse equívoco moralista? Em supor que exista, sei lá onde, um conjunto de cérebros perversos ocupados em maquinar, intencional e planejadamente, os mínimos detalhes do que chamamos lógica da exclusão. Suposição parecida havia em algumas teorias acerca do imperialismo. É claro que existem também exclusões conscientemente elaboradas. No conjunto, porém, trata-se de uma complexa etapa evolutiva da humanidade, originada em muitos antecedentes, e que, como tal, é um somatório de condições objetivas e subjetivas que ultrapassam, em muito, a inten­cionalidade dos indivíduos. Reverter semelhante situação tampouco será fruto da boa vontade de meia dúzia de indivíduos. Requer-se, igualmente, enorme soma de esforços solidários, ancorados, está claro, em multiplicadas conversões individuais à solidariedade.

 

III. Mercado e cidadania

Qualquer discussão séria e serena sobre a economia de mercado deve começar, a nosso modo de ver, admitindo, primeiro, que é preciso dizer um “sim” decidido ao mercado não apenas por razões circunstanciais (por exemplo, porque, momen­taneamente, não existe outra proposta, já que o “socialismo real” entrou em colapso), mas também por razões antropológicas (incentivo à criatividade, ao empenho, à melhoria e diversificação produtiva; união profunda entre necessidades e desejos etc.); segundo, que a economia de mercado foi tremendamente exitosa no aumento da produção de bens e serviços e na incorporação dos avanços científico-técnicos ao sistema produtivo.

Para ser breve, talvez sirva como bom ponto de partida, para qualquer debate sobre os limites do mercado, aquele velho princípio da social-democracia: tanto mercado quanto possível, contanto que se admita também todo aquele direcionamento, público e democrático, do mercado a metas sociais, o qual for necessário ao menos para a satisfação das necessidades elementares de todos os cidadãos.

Fique, pois, claro que, de nenhuma maneira, encaramos o mercado como pura lógica de exclusão, mas como a coexistência de uma lógica da inclusão com uma lógica da exclusão. O predomínio de uma sobre a outra depende do grau de normatização dos direitos sociais de todos os cidadãos, à qual os agentes do mercado estejam jurídica e institucionalmente obrigados a ater-se. Não existe “mercado livre” sem esse enquadramento normativo, que já variou muito ao longo da história da economia de mercado, e hoje é profundamente diverso de país a país. O estranho é que os economistas liberais e neoliberais continuam a sustentar que o mercado constitui uma “solidariedade orgânica” por força dos próprios mecanismos do mercado, quando, na realidade, todas as conquistas sociais, que hoje fazem parte — de maneira muito variada — do enquadramento jurídico dos mecanismos de mercado, exigiram duras e prolongadas lutas sociais.

Para a economia de mercado, enquanto abandonada a seu próprio jogo, o ser humano só é tomado em consideração enquanto homo oeconomicus, isto é, enquanto agente econômico capaz de oferta e demanda. No jargão em moda: “Qualidade Total”; o cidadão é o cliente, apregoado como referência básica. Nada mal, como um bom começo, se a satisfação de necessidades humanas reais fosse a base de critérios da economia! Todavia, como sabemos, num sistema produtivo puramente mercadológico, nunca é esse o critério predominante, mas o da rentabilidade. Além disso, como ficam os que não têm poder aquisitivo?

O fato de que haja (segundo os países) gravíssimos limites no acesso de todos ao status de cliente e consumidor, jamais é explicitamente admitido pelos defensores fidei do mercado. Este, obedecendo sabidamente a uma lógica de exclusão dos que não têm poder aquisitivo, é apresentado como lógica de inclusão sem limites. Ou seja, os limites do mercado são sempre silenciados.

Fica, no entanto, evidente que os limites do mercado são vistos, ao mesmo tempo, como os limites da cidadania possível, pelo menos no que se refere ao conteúdo econômico desse conceito. Essa é, sem dúvida, a visão da maioria dos economistas e do sentido comum dos que se encontram integrados na ideologia do mercado irrestrito.

Para eles, o cidadão é o cliente. Não apenas o cliente enquanto consumidor (real ou potencial), embora seja precisamente isso o que passa a predominar no conceito: o poder aquisitivo define o cidadão. Sobra, contudo, uma franja complementar de sentido: cliente pode significar também força de trabalho “aproveitável” pelo mercado de trabalho. Ou seja, o consumidor potencial começa naquele “crédito” — naquela qualidade de “ser aceitável” pelo mercado — que consiste na simples força de trabalho. E, à medida que ele já não é “de interesse”, sequer como força de trabalho (cliente potencial), passa a integrar a “massa sobrante”, que fica fora desse tipo de conceito de cidadania.

Os que adotam plenamente essa perspectiva de identificação do cidadão com o cliente obviamente não precisam dar-se ao trabalho de explicitar todas as implicações lógicas da posição adotada. Uma vez que se tenha adotado a tese do absoluto predomínio do mercado nas relações sociais, muita coisa pode ficar subentendida. Nem seria agradável ter de discutir, a todo o momento, os óbvios limites dos mecanismos de mercado como realizadores de urgências sociais.

Mais impressionante é a facilidade com que se “trabalha” com a lógica de um mercado irrestrito como se fosse uma dinâmica de inclusão ilimitada. Só não estariam “dentro” aqueles que — de alguma forma culposa — deixassem de aproveitar a “chance” de integrar-se no mercado. Não se pode forçar ninguém a ser feliz, adquirindo plenamente a cidadania de cliente apreciado.

 

IV. Outros ingredientes da lógica da exclusão

1. Mundialização do mercado total. Entramos no que o Clube de Roma — uma organização internacional de intelectuais e políticos — assim como muitos outros denominam “a primeira revolução glo­bal”[5]. Ela sucede como mundialização “multi­facética” (da comunicação instantânea, da interdependência de todos, da padronização de tendências comportamentais etc.), mas é, acima de tudo, o kat’hólon (a abrangência global, a “catolicidade”, a oikouméne) da economia de mercado. Portanto, trata-se, antes de mais nada, de mundialização sob a égide do econômico, em termos de economia de mercado, já implantada segundo critérios e mediante instituições basicamente comandadas pelos países industrializados.

Em relação aos valores éticos, cabe notar que o próprio conceito de globalização já inclui, para o Clube de Roma e muitos outros analistas, a conotação de uma defasagem gritante entre, por um lado, uma padronização econômica universalizante (economia de mercado dentro de regras ditadas e controladas pelo Norte) e, por outro lado, a falta dos valores de solidariedade global exigidos por esse contexto. Daí a ênfase do Clube de Roma no que denomina “o mal-estar humano” e “o vacuum (vazio ético); e, por isso mesmo, sua insistência nas “intimações à solidariedade” e nas “motivações e valores” para que saibamos “aprender nosso caminho para dentro de uma nova era”.

 

2. A nova natureza do progresso científico-tecnológico. Desde os anos setenta se fala na “era tecnotrônica”. Ela enseja uma incrível aceleração de produtividades setoriais, que impactam fortemente o mercado. Há uma revolução das “necessidades” e dos “desejos”, e uma nova vinculação entre ambos. O consumismo inclui a constante “descartabilidade” de muitas mercadorias. O caráter instantâneo da comunicação global reduz à quase impotência antigas formas de normatização pela via parlamentar, sempre bastante lenta. Indivíduos e pequenos grupos, enquanto instâncias de poder econômico, tomam decisões e as aplicam, em segundos, sobre coisas da maior relevância (por exemplo, transações bilionárias), enquanto parlamentos inteiros levam meses para decidir sobre coisas de menor valia. Muitas das decisões de relevância mundial, especialmente no plano financeiro, escapam completamente a qualquer controle democrático. As novas tecnologias envolvem muito capital, mas costumam gerar poucos empregos, quando não eliminam até empregos existentes. O avanço científico-tecnológico incrementa ainda mais o predomínio do capital financeiro sobre o capital diretamente aplicado na produção. Além disso, é um dos fatores que aceleram a concentração da renda e a remuneração elevada de empregos seletivos de alta competência.

 

3. Surge a sociedade do conhecimento. A capacitação científico-técnica, ou seja, o manejo de conhecimentos operacionais, torna-se matéria-prima do processo produtivo. Fala-se cada vez mais na knowledge society. Acirra-se a competitividade, no mercado de trabalho. A educação básica se refere agora a competências de aprendizagem (entenda-se: flexibilidade adaptativa no emprego) e competências sociais (entenda-se: capacidade de competir no emprego). A onda “Qualidade Total”, que já está entrando também na educação, refere-se funda­mentalmente a isso. Portanto, estamos presenciando uma profunda transformação do próprio conceito de trabalho. É óbvio que isso afeta diretamente os que não tiveram “chance” de estudar e se preparar para essa nova situação.

 

4. A nova muralha entre Norte e Sul. Os países do “Mundo dos Dois Terços” são vistos como apenas seletivamente “aproveitáveis” em alguns aspectos, sendo que a maior parte deles se tornou “sem interesse econômico”, em termos globais.

 

5. Alastra-se a indiferença e o bloqueio da solidariedade. De uma gravidade difícil de exagerar é o clima de fria indiferença ética, que se alastrou pelo mundo. Não há dúvida que também existem numerosos indícios de um despertar da solidariedade. Mas, em termos gerais, hoje as vítimas são, em sua maioria, uma espécie de distante lixo da história. José Comblin expressa isso de forma dramática:

“… A nova sociedade, nascida da terceira revolução capitalista… a nova burguesia (os norte-americanos chamam-na ‘classe média’) impõe a sua cultura, o seu egoísmo, o seu consumismo, e o resto do mundo que se dane. (…) A nova burguesia a impõe a sua ‘cultura da satisfação’, como diz Galbraith[6]. Isola-se no seu consumo privilegiado, reserva-se a si mesma todos os recursos do mundo, nega-se a prever o futuro, ou a encarar de frente os males presentes das imensas multidões de miseráveis. A nova burguesia cultiva uma euforia artificial, porque pode consumir cada vez mais, e ignora o resto, nomeadamente, a destruição das massas pobres da humanidade. Por um lado estamos diante de uma minoria fechada no seu egoísmo integral, por outro lado, jaz aí uma imensa maioria sem poder, sem recursos, os ‘novos bárbaros’. (…) uma burguesia inconscientemente muito mais cruel do que todas as anteriores, porque está decidida a deixar morrer de inanição a maior parte da humanidade, sem mover um dedo para não sacrificar nada dos bens egoistamente conquistados. (…) Já não se pode pensar num simples Movimento de libertação, porque se trata de regenerar todo o tecido da sociedade, e de construir um novo modelo social[7].

 

Conclusão

Este artigo quis ser um convite para que assumamos criativamente as nossas perplexidades. Em outros escritos[8] enfatizamos, além de fortes complementos ao que aqui se tratou, a esperança em um despertar crescente da solidariedade, e até da vivência da beleza, neste nosso planeta ferido. Só que já não é possível iludir-se acerca de “amorizações” solidárias brotando por aí na pura espontaneidade. Somos membros de uma espécie inclinada a egoísmos e entredevoramentos. Somente a conversão, refeita dia a dia, pode conduzir-nos à fraternura solidária capaz de evitar nossa autodestruição. E é possível “curtir”, solta e prazerosamente, esse apelo cotidiano da graça que nos vem do rosto dos outros.



[1] Nascimento, Elimar Pinheiro, “Exclusão: a nova questão social”, Proposta (Rio de Janeiro, FASE), 22 (61), pp. 40- 43, junho de 1994.

[2] Jaguaribe, Hélio et al., Brasil: reforma ou caos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; Id., Brasil 2000. Para um novo pacto social, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986; Buarque, Cristovam, O colapso da modernidade brasileira e uma proposta alternativa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991; Id., O que é apartação, São Paulo, Brasiliense, 1993; Id., “Pequeno glossário de termos da apartação”. Proposta (Rio de Janeiro, FASE), 22 (61), pp. 34-39, junho de 1994.

[3] Nascimento, E. P., loc. cit., p. 40.

[4] Ibid., p. 43.

[5] King, Alexander & Schneider, Bertrand, The first global revolution. A report by the council of the Club of Rome, New York, Pantheon Books, 1991.

[6] Galbraith, J. K., A cultura do contentamento, São Paulo, Pioneira, 1993.

[7] Comblin, J., em Convergência (Vozes), julho-agosto/93; e Fraternizar (Portugal), nº 64, dezembro/93.

[8] Por exemplo, Crítica à lógica da exclusão. Ensaios sobre economia e teologia, São Paulo, Paulus, 1994; e Paradigmas educacionais e corporeidade, Piracicaba, Unimep, 2ªed., 1994.

Prof. Hugo Assmann