Publicado em número 216 - (pp. 10-17)
América Latina: presente e futuro, esperança e temor
Por Pe. José Comblin
A presente consideração está centrada na religião. Por isso tomaremos como ponto de partida a transformação cultural que condiciona a atual evolução da religião. O nosso interesse não está diretamente orientado para a situação econômica ou política, embora a economia e a política condicionem a cultura, e, por isso, não podemos evitar de fazer algumas considerações sobre economia e política. Porém o nosso interesse está concentrado na religião, e, mais especificamente, na religião cristã.
1. A transformação cultural na América Latina
A América Latina é parte do mundo ocidental, embora ainda esteja bastante influenciada pelas culturas indígenas e africanas. Nela coexistem ou estão misturadas várias culturas. No entanto, a cultura dominante é a cultura dos brancos, que ocupa todas as posições relevantes na sociedade. As culturas indígenas e africanas subsistem, mas sempre reprimidas e incapacitadas de se desenvolver com o mesmo dinamismo dos brancos, exercendo pouca influência na sociedade.
A sociedade latino-americana está profundamente dividida. Daí as transformações culturais afetarem de modo muito diferente a maioria da população, constituída por excluídos, e os privilegiados, que abrangem 10% da população nos países mais atrasados e 30% nos mais desenvolvidos.
Dessa divisão radical resultam duas visões da realidade e do futuro. Para os privilegiados a atual transformação é maravilhosa. Ela constitui a porta de entrada no Primeiro Mundo, a assimilação definitiva da cultura dos Estados Unidos — que são o padrão absoluto, a única referência aceitável. As expectativas para o futuro são radicalmente otimistas. Os privilegiados sabem que, de qualquer maneira, vão ganhar e progredir. Ainda que o produto nacional esteja baixando, os privilegiados continuarão ganhando. Daí o entusiasmo provocado pelas mudanças atuais. Os ricos entram no novo século com a certeza da vitória. Adotam a nova cultura com paixão. Celebram a ciência, a tecnologia, a globalização. Jornais, periódicos, noticiários de TV praticam o culto dessa nova cultura.
Para os excluídos a situação é diferente. Sentem profundamente que uma mudança radical está ocorrendo, mas não sabem interpretá-la. Percebem as novidades pelo espetáculo da TV. Sentem os efeitos da novidade pelo desemprego, pela violência, pelo consumo das drogas. Sentem que são objeto de transformações que não entendem nem podem controlar. Muitas vezes deixam-se convencer pelas proclamações otimistas repetidas sem cessar pelos meios de comunicação. Deixam-se convencer pelas promessas dos que sabem falar bem. Ainda que sintam no corpo as frustrações e privações, acham que tudo vai bem e que o futuro será melhor. Outras vezes caem no desespero. Em geral vivem o momento presente, agradecendo a Deus por conseguir sobreviver: “graças a Deus não nos falta comida”. As expectativas são de curto prazo: emprego, casa, segurança, escola para os filhos, remédio e acesso a um hospital para os doentes. Para estes as desvantagens da nova cultura trazem consequências mais profundas — apesar de a propaganda insistir no contrário.
A nova cultura vem dos Estados Unidos, não tendo sido construída na América Latina. Trata-se de cultura quase toda importada. Embora com alguns anos de atraso, a cultura norte-americana atinge a América Latina. As transformações culturais vividas na América Latina são a repetição atrasada das transformações ocorridas nos Estados Unidos. A diferença é que apenas pequena parte da sociedade latino-americana ingressa positivamente nessa transformação cultural, ao passo que a maioria pobre sofre os seus efeitos negativos.
Em que consiste essa cultura que se impõe com tanta força na América Latina?
Na realidade ela pode ser vista de diversas maneiras: otimistas e pessimistas interpretam-na de modo diferente.
Os otimistas celebram as transformações tecnológicas e a entrada na era da comunicação, do conhecimento, da nova revolução tecnológica cujos efeitos seriam ainda mais sensacionais do que os efeitos das revoluções anteriores. Para eles, a nova era da comunicação abre uma perspectiva gloriosa de paz, prosperidade e desenvolvimento humano jamais visto. Chegou-se ao fim da história, isto é, dos conflitos provocados pela pobreza, isolamento e ignorância. Está nascendo nova humanidade.
Essa perspectiva nasceu nos Estados Unidos na década de 70. Hoje tornou-se perspectiva dominante nos Estados Unidos, sobretudo depois da década gloriosa dos anos 90. Essa década foi vista como o início da realização das promessas da nova época na história do mundo. A prosperidade sem par dos Estados Unidos seria a confirmação das previsões feitas pelos profetas da tecnologia nos anos 70.
Na América Latina, ao longo dos anos 90 as elites começaram a cantar o mesmo hino de triunfo. Os governos que foram assumindo os diferentes países latino-americanos nesses anos passaram a celebrar o mercado total, a globalização, a comunicação, o conhecimento, a cultura única e universal. Copiar os Estados Unidos em tudo passou a ser a regra. As elites promoveram a entrada dessa cultura, e as novas tecnologias passaram a ser acolhidas como a salvação do mundo. Internet, computadores e telefone celular passaram a ser sinais da cultura superior, como foi o automóvel há cem anos. As férias nos Estados Unidos, as compras em Miami, a ida das crianças à Disney World são ritos obrigatórios de qualquer família que tenha pretensão de cultura. Todos os temas da ideologia da globalização são recebidos como o novo evangelho pelas classes dirigentes, que ainda continuam entusiasmadas, apesar das crises no México (1994) e no Brasil (1999).
Por outro lado, todas as denúncias de autores que nos Estados Unidos criticaram a nova cultura, valem mais ainda para a América Latina, uma vez que os defeitos sentidos na metrópole tornam-se maiores nos países dependentes.
De modo geral o que se reprova nessa nova cultura é a destruição dos valores tradicionais, construídos nas épocas anteriores, e das estruturas que davam identidade às pessoas. Decadência da família, da nação, do trabalho como valor moral, da educação, e, de modo geral, de todas as instituições. O indivíduo encontra-se só no mundo — livre, mas só — condenado a se salvar sozinho, num mundo de bilhões de outros seres humanos, todos possíveis rivais nas lutas da vida. Desaparecem as formas tradicionais de solidariedade com as quais antigamente os indivíduos podiam contar nos momentos de crise.
Os críticos da nova cultura — entre os quais Gianni Vattimo e Gilles Lipovetsky — assinalaram-lhe as principais características.
Uma dessas características é a relativização geral de todos os conhecimentos. A verdade desapareceu e passou a ser de mau gosto pretender dizer alguma verdade. Os meios de comunicação difundem bilhões de informações e opiniões sobre fatos, mas dificilmente uma verdade. Estamos na época do pensamento “light”, sublinhado por Vattimo, ou da “cultura do vazio”, na expressão de Lipovetsky. Uma ideia dura um instante e é logo substituída por outra. Tudo é moda. Se uma pessoa imita os acenos da verdade, é com a intenção de iludir, porque não crê em nada daquilo que afirma.
Em meio ao ceticismo universal, a única realidade que subsiste é o “eu”. O “eu” é o meu corpo. Daí a imensa produção e o consumo sem fim de remédios, receitas de saúde e de felicidade. Na América Latina 90% daquilo que se publica, refere-se ao bem-estar corporal. Para as elites, os direitos humanos, os caminhos da felicidade, consistem em não sofrer, em não ser incomodados por nada e por ninguém.
Diante da crítica universal às instituições, o indivíduo procura a solidão. Muitos rejeitam o matrimônio porque constitui restrição à liberdade. As famílias se fazem e desfazem. Nos últimos dez anos houve imenso acréscimo na desestruturação familiar.
Desse mesmo modo, todas as associações passam por grande crise por não haver pessoas que queiram se dedicar ao bem comum. O estímulo é dado ao individual. Daí a crise das organizações sociais, sobretudo dos trabalhadores. Estes passam da solidariedade à competição em virtude da lógica do sistema. O Estado não é mais capaz de defender os trabalhadores contra a voracidade do capital. As leis de defesa dos trabalhadores desaparecem pouco a pouco. O capital esmagou o trabalho.
Na solidão o indivíduo depara com a violência, e, mais do que a violência de fato, o fantasma da violência. Sente-se ameaçado. Os grandes multiplicam as precauções. Têm os seus guarda-costas e a sua polícia particular. A profissão que mais cresce e oferece as melhores perspectivas de futuro é a profissão de segurança, isto é, de polícia particular. Os pobres não podem pagar esse luxo e são as vítimas habituais da violência. Sentem-se desamparados e angustiados.
Desse quadro, nasce a cultura da violência, pois a violência gera mais violência. Os jovens que não estudam nem trabalham não têm perspectiva alguma de vida. Não podem casar-se nem ter emprego. A saída é a violência, tornando-se afirmação de si — assim como as drogas, que são meio através do qual esses jovens conseguem afirmar que existem.
Por fim, graças à TV, nasceu a cultura única que vem ameaçando a diversidade cultural criada por milênios de ação civilizadora. Bem depressa vai desaparecendo os restos da cultura tradicional: festas típicas, artes, música-raiz, poesia, artesanato. Até a língua uniformiza-se, pois todos procuram falar como os locutores da TV. A nova cultura ignora o passado e os seus valores. Vive no momento presente sem continuidade.
Essas considerações, que lembram realidades bem conhecidas, já são o suficiente. Tais realidades constituem o contexto vital no qual se movem as religiões. São para elas o maior desafio. Como as religiões reagem diante desse desafio?
2. A religião
Na América Latina estamos assistindo a um retorno triunfal da religião. Esse triunfo vem sendo preparado desde a década de 70 — em que a religião enfrentava também os problemas sociais. Na década de 90 eclodiu o triunfo.
Pode parecer estranho o triunfo da religião numa época que pratica a relativização das crenças. Porém a nova religião que triunfa não está centrada na verdade, e sim no sentimento. Deus não está sendo aceito como uma verdade, e sim como uma presença sentida. Por outro lado, também pode parecer estranho o triunfo da religião numa época de exaltação da ciência e da tecnologia. No entanto, há compatibilidade entre elas. A ciência, como tal, somente é acessível à ínfima minoria da população. O restante recebe os resultados da ciência e da tecnologia como magia pura. Tudo isso vem do céu — a propósito: as tecnologias estão a serviço da religião e fornecem novos instrumentos de difusão.
Continua a existir uma minoria, sobretudo formada de intelectuais, que prolonga o ceticismo ou a incredulidade da idade moderna. No entanto, esse fenômeno tende a reduzir-se cada vez mais. Até o presidente do Brasil, que se orgulhava de ser ateu há vinte anos, não teria a ousadia de repetir isso hoje.
Hoje há enorme crescimento de denominações pentecostais. Presume-se que já tenham conseguido convencer entre 15% a 20% da população. Em alguns países cresceram mais, em outros menos. O maior crescimento deu-se na América Central — depois vem o Chile e o Brasil. Não se pode prever até onde poderão expandir-se, mas no momento ainda estão crescendo.
Os pentecostalismos pregam uma religião de conversão moral, oferecem uma comunicação direta com Deus e mostram sinais da presença do Espírito. As denominações neopentecostais insistem cada vez mais na cura dos enfermos, na expulsão dos demônios e nas promessas de prosperidade material. Deus é aquele que dá saúde, emprego, paz, reconciliação familiar etc.
Os pentecostais são fundamentalistas e habitualmente anticatólicos, por considerá-los idólatras. Os pastores são, quase todos, de classe pobre, morenos, sem educação formal, mas de dedicação e proselitismo totais.
Nas Igrejas pentecostais a religião é mais livre e espontânea do que nas denominações históricas. É uma religião mais personalizada, diferente do catolicismo, que é mais coletivo. Por sinal, práticas pentecostais estão penetrando cada vez mais nas denominações históricas, que sentem que se esvaziam se não se adaptam ao pentecostalismo.
Na América Latina a religião pentecostal tem a grande vantagem de estar ao alcance da cultura popular no momento em que os sacerdotes católicos se secularizam e abandonam a religião tradicional. O catolicismo oficial é formalista, ritualista, intelectual, isto é, incompreensível para a massa. Esta compensa a sua exclusão da religião oficial pelo culto aos santos da tradição. Ora, as Igrejas pentecostais praticam uma cultura popular, simples, que se expressa no linguajar do povo.
A Igreja católica vive também uma fase de triunfo. As mudanças vêm ocorrendo desde o final dos anos 70. Logo depois de Puebla, articulou-se reação contra a Igreja implicada em problemas sociais. O atual Pontificado contribuiu muito para essa mudança. Neste início de novo milênio a Igreja católica está consciente de que entrou numa nova época. Tem a impressão de que, ao rejeitar Medellín e Puebla, voltou a ter êxito e reconquistou a confiança do povo. Daí o triunfalismo tão presente na passagem de século recém-vivida. Acha-se que a atuação da Igreja nos problemas sociais, em época passada, foi a causa da crise hoje já superada. Daí haver entre grande parte dos padres jovens certo ressentimento contra a geração anterior, que teria, de alguma maneira, destruído a Igreja por meio da política. Hoje não querem mais saber de política — embora busquem aliança com o poder político.
A nova figura da Igreja católica é o fundamentalismo, o retorno à fase anterior da sua história: a Igreja majoritária. A Igreja católica tem consciência da força do pentecostalismo protestante, mas acha que tem condições de reconquistar o seu poder no país e na cultura. Está decidida a lutar contra a expansão do pentecostalismo, e acha que descobriu as armas que lhe darão a vitória: imita os métodos dos próprios pentecostais. O que ainda existe de ecumenismo consiste numa aliança com outras Igrejas históricas para conter o avanço pentecostal.
Os temas do novo catolicismo são marketing, visibilidade, massa e poder.
No Brasil, o movimento de renovação carismática constitui grande força da Igreja católica, estando em plena expansão. Nos países de língua espanhola, o movimento carismático não tem a mesma prioridade e cede a liderança aos movimentos fundamentalistas; que, na sua maioria, já existem há 50 anos na Igreja, mas somente na última década conquistaram a liderança: Opus Dei, Communione e Liberazione, Legionários de Cristo, Focolarinos, movimento de Schönstatt e movimento neocatecumenal. Esses movimentos devolveram à Igreja católica uma presença pública que havia perdido.
Num grande encontro realizado por esses movimentos em Roma, no dia de Pentecostes de 1998, o Papa conferiu-lhes a missão de serem os protagonistas da evangelização. Doravante esses movimentos são a presença pública da Igreja católica no mundo. Porém, somente na América Latina essa liderança manifesta-se mais claramente.
Tanto no Brasil quanto na América Latina vem surgindo um clero numeroso, que ignora as realidades sociais, buscando receitas no marketing católico.
Grande parte do novo clero busca a aliança do poder político e consegue realizá-la em muitos casos. Dessa maneira estabelece-se o retorno da política tradicional da Igreja católica. Há uma volta à velha tentação: a busca do poder para a manutenção do domínio sobre as massas. Procura-se novamente cristianizar graças ao apoio das forças econômicas e políticas.
Ao lado da Igreja católica tradicional e dos pentecostais conquistadores, há um grande número de religiões ou expressões religiosas buscando fixar-se no mercado religioso latino-americano, sobretudo nas grandes cidades, embora não tenham a mesma influência na sociedade.
O que é comum a esse grande número de expressões religiosas é que não dão importância ao conteúdo intelectual. São religiões de experiência direta com o divino, dando prioridade ao individual sobre o coletivo. Em lugar de grandes liturgias, em que o indivíduo se torna parte ou objeto de cerimônias que mal entende, essas novas religiões dirigem-se ao indivíduo, despertando-lhe os sentimentos pessoais e oferecendo-lhe a possibilidade de expressão. Essas religiões sintonizam-se bem com a cultura individualista. Praticam a inculturação melhor do que as religiões tradicionais. São alérgicas a toda a realidade social, sobretudo aos problemas sociais. Não querem saber de política, nem de economia. Querem ser religiões puras. Não querem contemplar a realidade da pobreza, nem a distância entre pobres e ricos. Querem ser a religião de todos, em que todas as diferenças sociais desaparecem. Afirmam a paz, a harmonia, a reconciliação universal como se fossem realidades já existentes. Suprimem o problema do mal.
Além disso, são religiões de alegria. Não querem que se fale de miséria ou sofrimento. Os cultos celebram a felicidade e a prosperidade. Somente falam dos males que podem corrigir imediatamente. Assim, por exemplo, mostram a realidade dos doentes, mas é para devolver-lhes a saúde e alegrar-se pelo milagre, mostrando que todos os males têm saída. Evocam os conflitos, mas é para celebrar a reconciliação. As novas religiões querem que todos sejam felizes e não aceitam considerar fatos que poderiam pôr em dúvida a felicidade universal. Negam o sofrimento, exatamente como a cultura dominante de hoje.
Já que são religiões de felicidade, o ato principal é o louvor. Precisa-se louvar porque tudo é tão bom! Tais religiões encontram sustentação em grande quantidade de material de apoio, como, por exemplo, nas obras de Paulo Coelho — que vendeu mais de 27 milhões de exemplares dos seus livros no mundo inteiro.
Diante dessa mudança da religião, os sobreviventes da fase anterior ficam desconcertados. Na América Latina um cristianismo “progressista” teve prioridade entre 1965 e 1985, embora em meio a forças de resistência. A teologia da libertação veio sofrendo múltiplos ataques desde 1984, e vários de seus líderes reduzidos ao silêncio.
O mais importante é que a nova Igreja não precisa de teologia e desconfia de toda a teologia. Os pentecostais não precisam de teologia e não querem tê-la. À medida que a teologia diz racionalidade, os novos cristãos têm medo de que a racionalidade venha a tirar-lhes a fé que redescobriram. Mais do que rejeição da teologia da libertação há uma rejeição de qualquer teologia que não seja simplesmente catequese acrítica, é uma rejeição de qualquer espírito crítico na área da religião. Até os mais críticos na sua vida científica ou tecnológica, querem ser ingênuos na religião.
As comunidades eclesiais de base estão sendo abandonadas pelo novo clero. As que subsistem estão sendo invadidas pelo movimento carismático. De modo geral foram recuperadas pela paróquia e reproduzem a pastoral definida pela diocese ou pela paróquia, onde entra pouco de social. Algumas comunidades subsistem, mas estão sendo marginalizadas. Não estão no sentido da história e perguntam-se sobre o seu futuro.
O movimento bíblico enfraqueceu. Durante 30 anos veio sendo feita uma leitura histórica tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Isso deixa de interessar. A Bíblia torna-se sinal de identidade. O que importa é mostrá-la. Não há mais necessidade de estudar interpretações. A Bíblia diz sempre a mesma coisa. Aliás, não há mais necessidade de buscar Jesus na Bíblia, porque “Jesus está no meu coração”.
Em meio à sociedade atual, o movimento social carece de metas claras. Fica esmagado pela repetição do discurso oficial que afirma que o novo modelo de sociedade neoliberal é o único possível, racional e vencedor.
Não obstante tudo isso, ainda há em alguns países da América Latina alguns bispos, sacerdotes e agentes de pastoral fiéis aos ideais de transformação social e de missão profética da Igreja na sociedade. São membros de grupos marginalizados que perseveram, apesar de tudo, na espera de tempos melhores. Acham que o triunfo atual da nova religião e da nova cultura não durará sempre, e que os desafios da sociedade radicalmente injusta da América Latina vão reaparecer.
3. A utopia da nova cristandade na cultura atual
A orientação atual da Igreja católica está fundada numa utopia. Essa utopia está implícita ou explicitamente presente tanto nos setores dominantes da Cúria romana, sobretudo no lobby latino-americano, que é cada vez mais poderoso, como nos setores mais conservadores da Igreja católica latino-americana, que alimentam a nostalgia do passado colonial.
Roma está cada vez mais consciente de que os católicos latino-americanos representam mais ou menos a metade dos católicos do mundo, tendendo a aumentar numericamente. Por outro lado, na Europa a Igreja católica está em crise. Está em choque com a cultura dominante. Está sendo atacada de modo mais corrosivo pela cultura capitalista neoliberal do que ocorreu com o comunismo. Os católicos estão perdendo toda a credibilidade, até nos países em que foram colunas do catolicismo tradicional, como na Polônia. Na América Latina, ao invés, a Igreja católica está otimista. Experimenta triunfos e enxerga com entusiasmo o futuro. Na Europa a Igreja católica tem psicologia de vencidos, na América Latina de vencedores.
Isso explica porque cresce em Roma a influência do lobby latino-americano.
Na América Latina há um setor conservador que nunca se resignou com a entrada da modernidade, e sonha com uma renovação da sociedade cristã que alcançou o auge entre 1650 e 1750. Não aceita a secularização da sociedade civil e acha que as circunstâncias são favoráveis a uma reconquista da estrutura de cristandade, identificada por esse setor com a cultura nacional.
É verdade que a tentativa utópica de formar nova sociedade católica entra em choque com a realidade da forte minoria pentecostal ainda em crescimento. No entanto, o pentecostalismo desenvolve-se quase exclusivamente nas classes pobres, ou seja, as classes sem importância cultural, política ou econômica. Parece improvável que os pentecostais convertam as classes dirigentes. Pode, aqui e ali, fazer um presidente — como na Guatemala com Rios Montt. Mas esses serão fatos excepcionais, que não mudam a situação global das classes dirigentes da sociedade.
Como seria essa nova cultura católica dominante? Seria uma volta à glória e ao triunfo do “barroco” católico dos séculos XVII e XVIII?
A “religião barroca” é essencialmente religião exteriorizada, objetivada, em que todos os membros da sociedade estão envolvidos como participantes de uma grande festa. A Igreja do século XVII não se dirige à consciência individual. É realidade coletiva. Ela é festa. A vida eclesiástica consta de sucessão de festas. A “religião barroca” é um grande espetáculo em que todos são atores. Não participam pela consciência pessoal, e sim pelos atos exteriores.
A Igreja poderia reconquistar os povos envolvendo-os numa festa contínua. Seria voltar a uma antiga tradição. Os povos latino-americanos vivem de festas. As festas têm muito mais importância do que a produção ou o conhecimento.
Claro que a Igreja terá de competir com toda uma rede de festas secularizadas — a maioria delas derivando da cultura dos Estados Unidos. No entanto, há fortes indícios sugerindo que expressiva parcela da Igreja sonha cooptar todo o mundo festivo profano e fazer com que sirva às festas religiosas.
No passado a Igreja católica evangelizou a América Latina integrando os povos nas suas cerimônias — principalmente nas festas. Os atos católicos eram atos de multidões. Pouco interesse foi dado à consciência individual. Entrar na Igreja era participar das grandes liturgias populares.
Seria essa a meta privilegiada de “visibilidade” pretendida por tantas autoridades eclesiásticas hoje?
4. O futuro da democracia
Na década de 80, por vários motivos, os regimes militares começaram a se esgotar. Entre esses motivos estava a retirada do apoio dos Estados Unidos, que já não precisavam mais deles. Apareceram grandes campanhas populares para o retorno da democracia. Durante alguns anos de utopia, a democracia parecia ser a porta de libertação completa. A democracia apresentava-se como o ideal social ao alcance dos povos. Todas as esperanças populares concentravam-se na volta à democracia.
A desilusão foi rápida. Demorou menos do que a ilusão anterior. Bem depressa percebeu-se que com a democracia nada mudava na estrutura social. Não houve melhora na condição de vida da maioria pobre, ao contrário, as democracias optaram pelo sistema neoliberal, fazendo com que a distância entre os pobres e os ricos aumentasse ainda mais.
Houve eleições para a presidência e o congresso, novas constituições garantindo os direitos humanos e proclamando a participação popular em todas as instâncias da vida social. Porém, na realidade, o poder permaneceu nas mãos de sempre. As elites que haviam apoiado os regimes militares continuaram controlando os poderes no sistema democrático. Nas assembleias legislativas, a maioria conservadora passou a impedir qualquer reforma séria da estrutura social.
Os constituintes latino-americanos copiaram as instituições dos Estados Unidos. Porém, na prática, essas instituições não funcionam aqui, e produzem o resultado inverso do esperado. Foi implantada uma democracia formal, feita para impedir que o povo possa interferir. Achou-se que a democracia ia mudar tudo, mas não mudou.
As instituições formalmente democráticas não combatem as formas de dominação de sempre. Os ricos não pagam os impostos devidos. A violência contra os pequenos da cidade e do campo continua. Há até traficantes de drogas elegendo-se deputados para escapar da polícia e gozar de imunidade parlamentar. As grandes empresas recebem privilégios. Tudo feito sob o amparo da lei. Raramente as leis são aplicadas quando poderosos estão envolvidos.
O clientelismo continua dando suporte à estrutura social. O que importa é ter um padrinho poderoso, que pode conseguir emprego, ajudar na saúde e na escola, dar proteção.
A modernização da economia não muda essencialmente as regras do jogo. A economia adapta-se às estruturas sociais já existentes.
Na hora da eleição, os pobres e excluídos em geral elegem quem os oprime, pois estes sabem organizar a campanha e dispõem de muito dinheiro para montar o espetáculo. Em geral ganha quem sabe fazer muitas promessas, mesmo sabendo que não terá como cumpri-las depois. O sistema está montado para que os poderosos continuem ficando onde estão. É bastante improvável, por exemplo, que, se houvesse o perdão da dívida externa, os pobres seriam promovidos. Se isso se desse, provavelmente ocorreria o que se deu com a venda das empresas públicas: o dinheiro desapareceu. Essa situação vem gerando grande desilusão e generalizado ceticismo na política. O caminho mais seguro para um candidato que procura eleger-se é afirmar que não é político — políticos são os outros. Nas pesquisas que procuram detectar as preferências da população, os políticos aparecem sempre em último lugar.
Na verdade, ao longo da histórica latino-americana, somente ditadores populistas fizeram reformas que beneficiaram os pobres. Os governos democráticos, com raríssimas exceções, sempre governaram em favor dos ricos. Eis a razão dos povos latino-americanos não estarem tão apegados à democracia. Aspiram a ela no final de uma época de ditadura, mas logo depois ficam desiludidos e pensam num novo salvador da pátria. Somente os intelectuais permanecem fiéis ao ideal democrático, porque querem ganhar o respeito das democracias do Primeiro Mundo. Mais do que a realidade da democracia, querem a fama de ser democracia. Os poderosos aceitam a democracia quando podem controlá-la.
Por isso, o futuro mais provável para a América Latina será nova onda de ditaduras populistas. O contexto vem favorecendo isso. A população não lutará para defender o regime democrático que aí está. Em cada país, elegerá com entusiasmo um homem forte que dê a impressão de ser capaz de mudar as coisas.
5. Os desafios sociais
A década de 80 foi chamada de “década perdida”. A década de 90 já mereceu o nome de “década vergonhosa”. Iniciou com promessas maravilhosas dos economistas neoliberais recém-chegados ao poder. Terminou com uma imensa desilusão. A distância entre ricos e pobres aprofundou-se, o crescimento foi insignificante e a ameaça de crise financeira ronda a todo o instante — com o sentimento de que os países latino-americanos perderam sua soberania, devendo submeter-se às instâncias econômicas do mundo globalizado.
A propósito: Por que não há mais perturbação social? Por que há tanta calma nas relações sociais? Socialmente a situação é pior do que na década de 60. Por que não aparecem os mesmos movimentos revolucionários?
A primeira explicação é a da ausência atual de uma classe intelectual que se dedique a suscitar e dirigir movimentos revolucionários. Somente há fragmentos, essencialmente no mundo rural, tais como o Movimento dos Sem Terra no Brasil e o exército zapatista no México. Hoje a imensa maioria da população mora nas cidades, não havendo aí movimentos revolucionários. A massa dos estudantes e intelectuais não está interessada nisso. Ora, sobretudo na América Latina os intelectuais estão na origem de todos os movimentos revolucionários.
Outra explicação pode ser encontrada no interior das próprias massas populares. Os pobres têm a impressão de estar melhor e mantêm a esperança de melhorar. Na realidade, enquanto os ricos melhoram 100%, os pobres chegam no máximo a 10%. Mas os pobres não percebem o que acontece na sociedade global e do crescente distanciamento. Somente percebem alguma melhora. Não percebem, no entanto, que estão sendo cada vez mais excluídos por uma sociedade que não conhecem.
Outra explicação: a pobreza latino-americana é pobreza tropical, pobreza com sol. Isso é muito importante e diferente da que ocorre em países com inverno rigoroso. É uma pobreza acompanhada de mais alegria. Qualquer festa, música ou dança faz esquecer a miséria. A religião também pode ajudar a não lembrar da pobreza.
Outra explicação: os povos esquecem-se depressa dos males do passado, recordando apenas as coisas boas. Esquecem-se dos sofrimentos. Cada dia recomeça como se fosse o primeiro, com esperança renovada. O esquecimento ajuda muito a enfrentar a vida.
Outra explicação: a atuação da TV, repetindo infindavelmente que os problemas estão sendo superados, que as dificuldades são passageiras e que os outros países têm problemas piores do que os nossos. O discurso da TV é otimista. Deixa a impressão de que estamos no melhor dos mundos. Se há problemas é por culpa do clima, dos outros países, das leis econômicas sagradas etc.
Enfim, para os pobres torna-se cada vez mais difícil entender o que está acontecendo. Daí o sentimento de desconhecimento e de impotência. O discurso dos economistas e dos políticos é cada vez menos compreensível, deixando atrás de si o desânimo: as coisas são tão complicadas que não dá para entender nada.
No entanto, apesar de tantos fatores desfavoráveis, há alguns movimentos de oposição que começam a se articular. Os efeitos negativos da globalização são tantos que haverão de suscitar reação. No futuro aparecerá nova geração de economistas críticos do sistema. Será inevitável o renascimento do nacionalismo e do populismo — embora ao longo do século XXI as nações latino-americanas, com grande probabilidade, continuarão dependentes dos Estados Unidos. A vontade das elites latino-americanas é a de estarem integradas ao Império e não vêm a dependência como um mal. Provavelmente, diante disso, a instabilidade será a regra.
O que podem fazer as Igrejas cristãs nesse contexto? Antes de mais nada, vimos que as forças dominantes nas Igrejas estão indiferentes à realidade social, e, não raro, manifestam alergia a tudo o que faz referência à problemática social. O período atual é o de rejeição à fase anterior na qual a Igreja comprometia-se com a libertação dos pobres. Tanto as Igrejas pentecostais quanto os movimentos integristas que influenciam a Igreja católica defendem objetivamente a ordem vigente. Não cogitam mudanças sociais. Não entendem ser esse assunto para a religião.
Para a Igreja católica esta situação é, em grande parte, resultado de uma política sistematicamente implantada nos últimos vinte anos. Como será o futuro? É difícil prever, mas tudo indica que não será fácil reverter a tendência atual. Grande parte de católicos que não concordaram com essa política, afastaram-se ou caíram na indiferença.
No entanto, quem quer traduzir o evangelho em formas de trabalho de libertação social deve pensar que pertence a uma minoria. E são as minorias ativas de hoje que preparam as mudanças de amanhã. Os fundamentalismos não têm projetos, a não ser o imobilismo. Um dia deverão ceder diante de novos movimentos que tenham projetos. Até lá o trabalho de profetismo e de promoção popular serão combatidos e abraçados por uma minoria. Vai ser preciso aguentar com muita paciência até a chegada de novos tempos.
Neste momento o problema maior é a carência de projetos alternativos visíveis. Há experiências de vida evangélica e de compromissos ativos na sociedade. Mas ainda são bem poucos, pequeninos, inseguros e de fraca visibilidade.
Estamos numa época que exige criatividade, ousadia para enfrentar a sociedade estabelecida que se acha onipotente. O sistema pratica a intimidação. Abre todas as portas a um cristianismo espiritualizado e inofensivo no plano material. Fecha todas as portas a qualquer implicação social de relevo.
Exteriormente o cristianismo triunfa. Está cada vez mais unido às forças sociais e políticas que dominam a América Latina. Disso emergem algumas questões: Existe relação entre essas Igrejas e Jesus Cristo? Jesus não será um simples instrumento usado para conquistar as almas e, com elas, o poder (alguns acrescentarão: e o dinheiro)? As Igrejas acreditam em Jesus ou em si próprias, tomando Jesus como pretexto?
De qualquer modo, o desafio principal é a fidelidade ao evangelho de Jesus Cristo. Esse desafio não é novo, mas torna-se cada vez mais urgente, uma vez que os desvios da religião estão sempre mais sofisticados, graças ao avanço das ciências humanas.
Como ser cristão no mundo de hoje, num continente em que o cristianismo triunfa? Questão semelhante apareceu no século IV e reapareceu várias vezes na história.
No fundo, o desafio para as instituições eclesiásticas sempre é o mesmo: Como ser cristão sem viver o evangelho? Como pregar o evangelho sem praticá-lo?
Para fazer sucesso, a escolha acertada não é o evangelho. Quem quer anunciar o evangelho, condena-se a ficar marginalizado. É preciso escolher: ser cristão ou ter êxito? Hoje, na América Latina, o problema a se resolver é esse.
Pe. José Comblin