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Publicado em número 229 - (pp. 8-13)

A pessoa idosa na racionalidade da cooperação Estendendo o olhar sobre a CF 2003

Por Maurício Abdalla

1. A Campanha da Fraternidade

Já faz parte da rotina da Igreja católica no Brasil a realização das Campanhas da Fraternidade, que, a cada ano, procuram concretizar a fraternidade cristã, direcionando-a para algum aspecto específico de nossa realidade. É claro que o exercício concreto da fraternidade não se resume a um único campo. Contudo, ao privilegiar um tema central a cada ano, as campanhas contribuem para que a boa intenção dos cristãos não se dissolva em discursos genéricos — que muitas vezes acabam não se traduzindo em ações — e tornam os problemas mais próximos de nosso cotidiano.

Ao optar por uma temática, a CNBB não pretende apenas chamar a atenção para um problema grave vivido por nossa sociedade. O objetivo é trazer esse problema para as preocupações cotidianas do cristão de hoje. Ou seja, a partir do momento em que a temática é sobrelevada em uma campanha, ela deve tornar-se parte do conjunto de ações e discussões dos diversos grupos, pastorais, movimentos e comunidades que com­põem a Igreja, assim como da prática evangelizadora dos agentes de pastoral, religiosos, clero e magistério eclesiástico.

Isso mantém a Igreja sempre vinculada ao mundo, dando concretude à proposição da constituição pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, segundo a qual “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1).

Portanto, não se trata de uma ação pontual e de duração determinada. As diversas temáticas das campanhas anteriores passam a se incorporar em nossas preocupações cotidianas. Este é um primeiro aspecto a ser considerado, se pretendemos compreender a eficácia das Campanhas da Fraternidade.

 

2. A fraternidade da Campanha

Outro aspecto sobre o qual se deve refletir é a significação do conceito de fraternidade. Aqui é oportuno fazer breve reflexão que irá nos mostrar que esse conceito assume características diferentes de acordo com a concepção de mundo mais ampla que estiver presente em nossa subjetividade. Ou seja, conforme a concepção que temos da realidade, damos sentidos diferentes aos conceitos. Vejamos isso melhor.

 

a) O aspecto comum da fraternidade

A palavra fraternidade está relacionada a um sentimento de irmandade. Frater, no latim, quer dizer irmão. Estimular a fraternidade, portanto, é despertar o sentimento de que toda a humanidade está irmanada. Do mais rico e poderoso empresário ao mais pobre e humilde flagelado da seca, todos pertencemos a uma só família: a humanidade. Não há como não ter pelo irmão um sentimento de amor. Sentir-se irmão é sentir-se unido nas alegrias e nos sofrimentos. É alegrar-se junto e sofrer junto, ou seja, co-memorar e com-padecer.

Quanto mais desenvolvemos em nós o espírito da fraternidade, mais insuportáveis se tornam as dores dos outros e mais desejável se torna uma realidade em que todos tenham vida, e a tenham em abundância. A fraternidade só tem sentido quando provoca em nós esses sentimentos.

Quando nos acostumamos com o sofrimento do outro e perdemos a indignação com as injustiças cometidas contra outro ser humano, perdemos o espírito fraternal. Se a dor de um ser humano, provocada pela fome, pela miséria, pelo crime (organizado ou não), pelo desemprego e por qualquer forma de exclusão social, só consegue retirar de nós um leve suspiro de “dó”, isso é um sintoma de perda da fraternidade.

Esse é o aspecto comum do conceito de fraternidade. Qualquer outra coisa que não seja isso foge à essência do sentimento fraternal.

 

b) Os diferentes sentidos da ação fraternal

No entanto, essa noção comum de fraternidade adquire sentido diferenciado, ao encaixar-se em concepções de mundo distintas, e traduz-se em práticas também diferenciadas. Creio ser possível, antes de discutir este ponto, tratá-lo com um exemplo.

Imagine que seu irmão esteja se afogando em um rio de forte correnteza e que você esteja vendo um barco ancorado na margem. A primeira coisa que certamente lhe virá à cabeça é a preocupação com o desespero do irmão em via de afogar-se. Todo irmão de verdade seria acometido por esse sentimento, pois isso é uma manifestação da fraternidade.

Agora, pensemos em duas situações distintas para esse mesmo caso: 1ª) você está na beira do rio, próximo ao barco; 2ª) você está vendo tudo a quilômetros de distância, através de uma filmagem ao vivo.

Na primeira situação, o seu com-padecer irá traduzir-se em um co-operar, pois certamente você irá pegar o barco e tentar ajudar o irmão a vencer a correnteza e safar-se da fúria do rio. A possibilidade concreta de ação leva-nos a transformar o sentimento fraternal em uma prática fraternal. A com-paixão (sentir com) torna-se co-operação (agir com).

Na segunda situação, o máximo que lhe é possível fazer é sentir profundamente a dor de seu irmão, rezar para que ele se safe do perigo e, finalmente, chorar a sua morte, fruto de uma fatalidade. Nesse caso, a compaixão, advinda da fraternidade, não se traduz em ação, por causa do sentimento de impotência, devido à distância e à impossibilidade de pôr em prática uma forma de ajudar.

Esse exemplo mostra que, em contextos diferenciados, a fraternidade assume dimensões também distintas.

Pois bem, reflitamos agora sobre uma coisa: de acordo com a forma como entendemos o mundo, pomo-nos em diferentes “posições” em relação ao que se passa ao nosso redor. Na vida real, o que nos põe na primeira ou na segunda condição do exemplo acima é a forma como compreendemos o mundo.

Se achamos que o mundo é determinado por fatores que estão longe de nossa capacidade de controle e intervenção; se concebemos a história e a sociedade como uma realidade autônoma, que não depende da vontade dos seres humanos; se achamos que nossa relação com os problemas do mundo é mera relação de espectadores, nós nos pomos na segunda condição do exemplo. Nosso sentimento fraternal irá se tornar mera manifestação de compaixão, sem traduzir-se em ações de cooperação.

O limite da ação fraternal, nesse caso, será a preocupação, a reza, a tristeza e, no máximo, ações pontuais, de cunho assistencialista — que apenas minimizem o sofrimento inevitável.

No entanto, se compreendemos que o mundo é determinado pelo desejo e pelas ações da própria humanidade; quando percebemos que a história e a sociedade são construídas pela ação concreta do ser humano; se nos vemos inseridos no mundo como sujeitos de sua manutenção ou transformação, pomo-nos na primeira condição do exemplo. Somos, assim, motivados pela possibilidade de transformar a compaixão em cooperação, pois percebemos as condições necessárias para salvar a humanidade da destruição.

A ação fraternal torna-se, assim, uma ação transformadora das estruturas da sociedade, que procura atacar as causas dos problemas, e não somente as consequências. A prática caritativa emergencial, que visa reduzir o sofrimento por ações localizadas, passa a carregar consigo um desejo de autodestruição. Ela não pode querer perpetuar-se, mas acabar com os motivos que a tornam necessária. O objetivo maior é a destruição das condições que fazem as pessoas necessitarem de ajuda. Conforme o decreto Apostolicam Actuositatem, do Concílio Vaticano II, é preciso satisfazer “em primeiro lugar as exigências da justiça, para que não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça; eliminem-se as causas dos males, não só os efeitos” (AA 8).

Tudo depende, portanto, de como está organizado o conjunto de ideias, valores, crenças e sentimentos que temos na mente. Isso, então, justifica a afirmação que fiz acima de que o conceito de fraternidade adquire sentido diferenciado ao encaixar-se em concepções de mundo distintas, resultando em práticas também diferenciadas.

A CF também deve ser pensada sob esse aspecto, donde decorre a necessidade de não só refletirmos especificamente sobre o tema proposto, mas, além disso, sobre o mundo no qual esse problema se insere.

Dessa forma, como compreender a temática da CF 2003, que tem como tema: “A fraternidade e as pessoas idosas”?

 

3. A pessoa idosa na racionalidade da troca competitiva

Em meu livro O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade (Editora Paulus, 2002), tive a oportunidade de refletir sobre a forma geral de conceber subjetivamente a nossa relação com os outros seres humanos e com a natureza, o que chamei de “racionalidade”. Cada civilização traz consigo uma racionalidade que orienta a maioria das pessoas na sua inserção no mundo.

Vivemos sob a hegemonia da racionalidade da troca competitiva, orientada pela supremacia do mercado na economia e, por extensão, em todas as dimensões de nossa existência. Competir, do latim competere, significa dirigir-se para ou procurar atingir de forma violenta um mesmo objetivo que outro, donde advém a noção de disputa aguerrida por uma mesma coisa. Segundo a doutrina liberal, a sociedade é um conjunto de “indivíduos que competem entre si pela posse dos recursos disponíveis”[1]. Ou seja, a racionalidade que fundamenta o modelo econômico chamado capitalismo não aceita a ideia de compartilhar (dividir com) a sobrevivência, mas somente a de competir (disputar com) por ela.

A arena dessa disputa é o conjunto das relações de troca competitiva mediadas pelo dinheiro, conjunto esse chamado de mercado. Disputa-se a sobrevivência com base na capacidade de se sair bem na luta do mercado. Sobrevive quem tem a capacidade de inserir-se no mercado com condições de vencer o outro.

Contudo, o mercado só reconhece a existência de duas categorias de pessoas: as que produzem dinheiro e as que gastam dinheiro. Fora disso, ninguém mais tem direito à sobrevivência no mundo regido por suas normas. O ter algo para trocar, passível de converter-se em dinheiro, passa a ser o critério que autorizará ou não a existência dos seres humanos. Quem se enquadra em uma das duas categorias tem direito à vida, ainda que a uma vida limitada pela escassez de recursos. Quem não se enquadra perde o direito à existência e é tido como um nada na racionalidade da troca competitiva.

A compreensão dessa forma de conceber o mundo (dessa racionalidade) explica por que a morte lenta e dolorosa de bilhões de pessoas no planeta — pela fome, pela guerra, pela falta de água, pelas doenças tratáveis, pelo desamparo etc. — não é motivo suficiente para comover as nações, ao passo que a morte de 3.000 pessoas nos EUA (nos ataques de 11 de setembro de 2001) ou o sequestro de um empresário são causas suficientes para comoções nacionais e ações duras por parte do conjunto das nações.

É nessa ótica que devemos perceber o problema das pessoas idosas. Em idade que não lhes permite mais trabalhar, ou após terem dedicado o tempo legal de esforços com o trabalho, essas pessoas passam a não ser mais consideradas “produtivas”. Acabam se afastando da disputa essencial da racionalidade da troca competitiva. Primeiro, por não produzirem mais dinheiro e, segundo, por já não estarem tão dispostas aos modismos consumistas que induzem as pessoas a gastar descomedidamente seu dinheiro. Não sendo mais força de trabalho nem um “nicho de mercado” (como dizem os publicitários), elas passam a integrar um local que está além dos limites que definem o que tem direito a ser.

Toda racionalidade delimita seu limite ontológico. Isso significa que há um espaço delimitado dentro do qual as pessoas e coisas adquirem direito à existência, ou seja, o direito de ser. A palavra ser, no grego, é ontos, de onde provém a palavra ontológico. O que delimita o espaço ontológico na racionalidade do mercado é a capacidade de competir, e esta capacidade é dada pela quantidade de dinheiro que somos capazes de produzir ou de gastar. Como vimos, a pessoa idosa, não sendo mais portadora dessa capacidade, cruza as fronteiras do espaço ontológico definido pelo mercado e jaz no limbo do não ser.

Mas este não ser não é mero conceito. São pessoas vivas. Cruzamos com elas nas ruas, habitamos com elas, ouvimos suas vozes e temos por elas um sentimento íntimo de respeito que não permite à sociedade deixá-las totalmente à míngua. Não fosse por esse sentimento e pela existência viva dos idosos, restar-lhes-ia o total abandono e o esquecimento definitivo, pois a sociedade regida pela racionalidade da troca competitiva não lhes reconhece o direito à existência. Está fora de suas possibilidades lógicas pensar a pessoa idosa como portadora de direitos.

Por isso temos os asilos e algum investimento público no amparo à terceira idade. No entanto, o estado em que esses asilos se encontram e o volume cada vez menor de recursos públicos destinados ao atendimento a pessoas idosas mostram que a força da lógica do mercado vem superando o sentimento de respeito residual que ainda nutrimos pelos idosos.

Muitos dos que querem minimizar o problema buscam soluções que não contradigam nem questionem a racionalidade do mercado. Ao contrário, tentam encaixar o idoso nos limites definidos pela lógica da troca competitiva. Em outras palavras, tentam ajudar os idosos, resgatando-os do limbo nadificante onde habitam os excluídos do mercado e reintegrando-os à arena da troca competitiva.

Essa intenção se manifesta nas propostas que tentam reintegrar o idoso ao mercado de trabalho ou transformar a terceira idade em um público consumidor de produtos específicos. Vejamos exemplos dessas duas proposições.

Algumas empresas têm contratado pessoas idosas no lugar de office-boys, como empacotadores de mercadorias ou em outra atividade que não exija esforço físico. Aparentemente é uma boa solução, se nos dermos por satisfeitos com a redução discreta do problema e não nos importarmos em prolongar mais ainda o tempo de vida das pessoas dedicado ao trabalho.

Se, porém, pensarmos que a população com mais de 60 anos (limite que convencionalmente caracteriza a terceira idade), no Brasil, subiu de 7.403.121 para 14.536.029 habitantes de 1991 a 2000[2], número que tende a aumentar mais ainda nas próximas décadas, chegaremos à conclusão de que a maioria dos idosos ainda ficará fora do círculo que divide o ser do nada. A perspectiva é que em 2025 a população idosa esteja 16 vezes maior do que a de 1950, para um crescimento populacional de cinco vezes.

Um agravante é que aquelas medidas só são tomadas por dois motivos: servem de marketing para a empresa que os contrata e reduzem os seus custos, pois idosos não pagam passagem de ônibus e não precisam de vale-transporte. Resta-nos perguntar se seriam tomadas se não produzissem resultados vantajosos para a empresa.

A outra solução proposta para reduzir a exclusão total dos idosos é descobri-los como consumidores potenciais. Cria-se uma série de produtos e serviços destinados à terceira idade e vincula-se a valorização do idoso aos apelos publicitários para o consumo de algo. As faculdades particulares criam cursos e os bancos oferecem cartões e serviços especiais para a terceira idade, os alimentos são produzidos sem produtos prejudiciais à velhice, os sabonetes e cremes tratam da pele enrugada, as academias criam ginásticas e danças especializadas etc. É a oportunidade de os idosos retornarem ao círculo da existência pela capacidade de gastar dinheiro com esses produtos e serviços. O que é preciso pensar é que, para se gastar dinheiro, se necessita tê-lo. Esse detalhe óbvio exclui a maioria da população idosa, submetida ao recebimento de uma aposentadoria irrisória, que nem sequer lhe permite comprar os remédios necessários para manter a saúde, quanto mais consumir esses produtos ou contratar esses serviços!

Portanto, essas não são soluções globais, mas atingem apenas pequena parcela de idosos. Esse é o limite das soluções na lógica do mercado: os idosos ou produzem, ou gastam, ou continuam sendo totalmente desconsiderados e mantidos no abandono.

Tal situação não quer dizer que devamos abrir mão de todas as ações emergenciais para reduzir o sofrimento dos que são desamparados por causa da idade. Só não podemos nos limitar a isso, pois essas ações jamais resolverão o problema, apenas contribuem para amenizá-lo. Limitando-nos a elas, contribuímos para manter incólume a estrutura racional que sustenta a sociedade de mercado, além de deixarmos a maioria dos idosos no desamparo.

A racionalidade da troca competitiva orientou o governo federal nos últimos oito anos. A proposta de reforma da previdência é uma exigência do FMI, com base nas proposições do Consenso de Washington. Contudo, a reforma que se quer implantar visa apenas desonerar o Estado do pagamento dos aposentados e pensionistas, transferindo essa responsabilidade para empresas privadas. A lógica do mercado concebe os recursos públicos destinados ao pagamento de aposentadorias e pensões como “gasto” ou “desperdício”. Eles não podem ser considerados como “investimento”, visto que não produzem um retorno para o desenvolvimento econômico neoliberal. E, ainda mais, não podem ser utilizados pelo Estado para remunerar os altos juros concedidos ao capital dos especuladores e para “investir” na ajuda ao sistema bancário.

Para conceber os gastos previdenciais como investimento, é preciso refundamentar a lógica do desenvolvimento econômico, como veremos mais adiante. Na lógica predominante, o atendimento à velhice desamparada é gasto desnecessário. Isso é tão certo, que, na crise do Real de 1998, para o FMI liberar US$ 48 bilhões solicitados pelo governo Fernando Henrique, foi exigido um corte de gastos para gerar o superávit que permitisse ao governo continuar cumprindo seus compromissos com a dívida pública. Uma das medidas tomadas foi cortar R$ 2,04 bilhões da parte do orçamento destinada, entre outras coisas, a atender as pessoas idosas.

Portanto, a problemática do idoso não é apenas uma questão de ação imediata ou que se resolva com atitudes pontuais.

 

4. Reconstruindo a racionalidade sobre o princípio da cooperação

Ainda em meu livro, apresentei a sugestão de que os problemas que enfrentamos na atualidade são crises que só se resolvem se reconstruirmos a racionalidade que orienta a nossa vida em sociedade e a nossa relação com a natureza. Ao contrário da racionalidade que hoje predomina, fundamentada na troca competitiva, uma nova racionalidade deveria erigir-se sobre o princípio da cooperação.

Essa reorientação implica uma ação voltada para a destruição da atual estrutura econômica, política e social e para sua reconstrução com base em outros eixos, fundados não na competição, mas na cooperatividade. Trata-se de um processo de luta histórica pela afirmação de uma nova civilização.

Esse princípio vem, de certa forma, sendo materializado em experiências econômicas (no campo da produção, do consumo e da oferta de serviços) organizadas de forma cooperativa e autogestionária. No entanto, não basta construir alternativas no campo econômico ou produtivo. Precisamos revolucionar a nossa subjetividade, ou seja, a forma como compreendemos o mundo e agimos nele. O princípio da cooperação deve regular o nosso olhar, a nossa concepção sobre o mundo, para que reinterpretemos seus problemas e busquemos soluções que não estejam limitadas pela estreiteza da lógica do mercado. Só assim poderemos vislumbrar alternativas e nos sentir como o irmão à beira do rio, aquele que tem condições concretas de agir para salvar o outro, e não apenas lamentar o seu destino.

Devemos perceber o ser humano como uma espécie que sobreviveu não porque disputou a sobrevivência, mas porque lutou junto, de forma cooperativa, por ela. O que nos fez superar os perigos da natureza foi a capacidade de nos inter-relacionar de forma cooperativa mediante a linguagem. Quando o ser humano quebrou essa ligação cooperativa, deu-se início à exploração e aos problemas que culminaram com a atual ameaça de extinção que paira sobre a humanidade.

Diz Leonardo Boff: “A Terra está doente, muito doente. E como somos, enquanto humanos, também Terra (…) nos sentimos todos, de certa forma, doentes. A percepção que temos é de que não podemos continuar neste caminho, pois nos levará a um abismo. (…) Os destinos da Terra e da humanidade coincidem: ou nos salvamos juntos ou sucumbimos juntos”[3].

Com relação aos problemas vividos pelas pessoas idosas, é preciso construir outra concepção de mundo para dar-lhe outra significação e podermos concretizar a fraternidade de uma forma mais efetiva. Sua dignidade só será recuperada se formos capazes de edificar outra ordem econômica e social.

Numa racionalidade fundada sobre o princípio da cooperação, o ser humano não é concebido como um ser que disputa com o semelhante pela sobrevivência, mas como manifestação individual de uma totalidade que não pode ser concebida apenas como uma soma de partes. A humanidade não é uma soma de indivíduos, mas um composto em que as partes só se tornam humanas por pertencerem a ele. Isoladas dessa totalidade, as partes não têm sentido e não se humanizam. Não foram indivíduos (os mais fortes) que ganharam a luta pela sobrevivência, mas a humanidade toda.

Se o espaço antológico da racionalidade da troca competitiva é delimitado pelo ter, na racionalidade cooperativa esse espaço se estende a toda a humanidade e à natureza. O “eu” e o “outro” são diferentes em sua individualidade, mas compõem um mesmo conjunto, que só se sustenta pela integração cooperativa de todas as individualidades.

Portanto, em uma sociedade construída sobre outro modelo econômico (fundado na cooperação e na autogestão) e portadora de outra racionalidade, a pessoa idosa deixaria de ser concebida como uma coisa que habita o limbo ontológico do mercado, para ser compreendida como um ser que compõe a humanidade e, como tal, possui o mesmo direito à existência que todos os outros — direitos a uma existência com dignidade. A população idosa seria apenas a parte mais velha da totalidade e, por isso, portadora do direito a um tratamento diferenciado de acordo com as especificidades de sua condição. Manter a totalidade saudável implica manter todos os seus membros com vida digna. Se uma parte dela se encontrar prejudicada, a sociedade toda perde. O mal do outro é o mal de todos.

Com base nessa nova visão, conceberíamos os gastos com atendimento à terceira idade como investimento, e não desperdício. Um investimento que manteria toda a sociedade em equilíbrio e traria como retorno a convivência equilibrada dos diversos seres humanos que a compõem. Não seria preciso perguntar o que o idoso produz. Sua condição de humano bastaria para torná-lo portador de todos os direitos necessários à vida com dignidade.

Tudo isso só será possível se nos dispusermos a agir de forma organizada e convertermos a nossa boa vontade em ação política. Se conseguirmos combinar a ação caritativa e assistencial com uma participação na luta dos movimentos sociais e uma intervenção nas disputas políticas do país, tornaremos possível a concretização da utopia.

Por isso, se quisermos realmente resolver o problema destacado na CF 2003, precisamos destruir a racionalidade da troca competitiva e as estruturas nela fundamentadas (a economia capitalista, os governos neoliberais, a ética da competição etc.) e substituí-la, em um processo de luta histórica, por uma racionalidade fundamentada no princípio da cooperação. Se as ações pontuais servem como exercício de caridade e recuperam a dignidade de pequena parcela da população, a ação de reconstrução dos fundamentos da sociedade e de nossa concepção geral de mundo pode edificar, em um futuro próximo, um mundo em que “todos tenham vida, e vida em abundância”.

 



[1] HAYEK, Friedriche von, O caminho da servidão, Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1990, p. 76.

[2] Dados do Censo do IBGE de 1991 e 2000, respectivamente.

[3] Apresentação do meu livro O princípio da cooperação, São Paulo, Paulus, 2002.

Maurício Abdalla