Publicado em número 138 - (pp. 2-14)
A escravidão que fez e explica o Brasil
Por Pe. José Oscar Beozzo
“Sem negros, não há Pernambuco, e sem Angola, não há negros.”
Carta de Pe. Antônio Vieira, 1648.
Introdução
Pernambuco era, no século XVII, a capitania mais rica da colônia, pelos seus numerosos engenhos de açúcar, tocados por extensa escravaria. A frase de Vieira pode ser completada e generalizada pela de outro jesuíta que escreve ao rei de Portugal, dizendo: “Sem Angola, não há Brasil”, isto é, sem os carregamentos de escravos que chegavam continuamente de Angola, o Brasil deixaria de existir. Qual Brasil deixaria de existir? Justamente o Brasil, ao mesmo tempo colonial e escravista, produzindo ricas rendas para seus senhores aqui e, para o rei, lá em Portugal, às custas do trabalho dos escravos.
Mudaram-se as metrópoles e também os esquemas de exploração do trabalho, mas não mudou muito a substância das coisas. Continuamos dependentes, antes de ontem de Portugal, ontem da Inglaterra, hoje dos Estados Unidos e dos países do capitalismo central. Açúcar, ouro e café materializavam o tributo pago às metrópoles e a transferência de renda da periferia para o centro. Hoje o tributo se paga com minérios exportados abaixo do preço de extração, açúcar, calçados ou carros, vendidos muitas vezes abaixo do custo de produção e, sobretudo, com o mecanismo da dívida externa, a forma moderna e invisível de transferência de renda. A simples subida de um ponto percentual na taxa de juros interbancária de Nova Iorque ou de Londres pode acrescentar um bilhão de dólares à dívida externa brasileira, sem que nenhum tostão desse dinheiro tenha entrado no país. A dívida é fabricada unilateralmente e compulsoriamente, sem que o pretenso endividado possa protestar. Assim se fazia com os quintos de ouro e as “derramas” decretadas em Minas Gerais, no século XVIII, para se aumentar a arrecadação dos tributos reais.
Para se extrair do trabalhador o seu suor e roubar-lhe o fruto do seu trabalho, usou-se no passado a escravidão, depois o colonato, o boia-fria e sobretudo o salário mínimo, que é cada vez menos salário e cada vez mais mínimo. Hoje no Brasil a população economicamente ativa que ganha menos de meio salário mínimo e de meio a um salário, alcança um terço do total. Se ao somarmos aos que estão sem rendimentos, por desemprego ou por outras razões, alcançamos 42% dos trabalhadores: temos aí a grande massa dos que são ao mesmo tempo trabalhadores e párias, pois não recebem, pelo trabalho, remuneração que lhes permita, ao menos, sobreviver.
1. Situação da trabalhadora e do trabalhador negro
Se não olharmos apenas para a situação do trabalhador em geral, mas nos detivermos um momento diante da situação do trabalhador negro e, ainda mais, da mulher negra, vamos ter uma segunda surpresa: a enorme desigualdade existente na remuneração paga, mesmo para trabalhos iguais.
Damos abaixo um pequeno quadro elucidativo do que estamos afirmando:
Algumas características da população branca e negra — 1976
Em milhares de pessoas, cruzeiros e em salários mínimos (SM)
População | Branca | Preta | Parda |
Renda média mensal — pessoa ocup. (Cr$)
Índice |
2.541,7 100 |
890,5 35 |
1.145,7 45 |
Renda média do chefe de família
Homens Mulheres |
4,8 SM 2,0 SM |
1,7 SM 0,7 SM |
2,5 SM 0,8 SM |
Empregados com carteira assinada
Homens Mulheres |
71,8% 60,4% |
51,9% 34,0% |
57,5% 42,5% |
Fonte: PNAD, 1976, FIBGE, citado por IBASE, Dados da Realidade Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1982, pp. 51-55.
Comentemos cada um destes indicadores econômicos e sociais:
Renda média mensal: Se convertermos a remuneração num índice, tomando por base a remuneração da população branca, vamos ver que a renda recebida pelo conjunto dos trabalhadores negros, mulheres ou homens, é quase três vezes menor (do índice 100 para o índice 35) do que a recebida pelos trabalhadores brancos, homens e mulheres conjuntamente.
Renda média do chefe de família: Quando o chefe de família é branco, a renda média é de 4,8 salários mínimos, mas não passa de 1,7 quando o chefe de família é negro. Quando a mulher é chefe de família — situação hoje cada dia mais comum — a diferença de remuneração em relação ao homem é muito grande. Dos quase 25 milhões de famílias existentes no país em 1980, dois milhões, duzentos e setenta e três mil eram constituídas por mulheres chefes de família, vivendo sem cônjuge e com filhos, seja por viuvez, seja por abandono do marido ou por serem mães solteiras. Outro meio milhão de mulheres viviam sem cônjuge, com os filhos e mais algum parente em casa, sendo elas as chefes da família. Acontece que a renda destas famílias dirigidas só por mulheres é sempre muito baixa. Das mulheres vivendo sozinhas, sem parentes, 27,9% ganhava até um salário mínimo; 22,8% ganhava mais de 1 a 2 salários mínimos, ou seja, mais da metade delas (50,7%) tinha que se sustentar e sustentar seus filhos com até dois salários mínimos.[1]
Voltando ao nosso quadro estatístico, verificaremos que as mulheres brancas, chefes de família, recebem apenas 2,0 SM em média, quando os homens brancos, chefes de família, recebem 4,8 SM. Mas se considerarmos as mulheres negras, chefes de família, aí então a diferença é dramática. Elas recebem, para sustentar a família, em média 0,7 SM, quase três vezes menos do que as mulheres brancas na mesma situação, e sete vezes menos do que os homens brancos. Aqui cabem ainda duas considerações: a média significa que muitas mulheres negras recebem bem menos do que 0,7 SM, e a situação da mulher sozinha, cabeça da casa, é muito mais generalizada precisamente entre as mulheres negras. É entre elas que se concentra o maior número de mães solteiras e de mulheres abandonadas pelo companheiro ou marido.
A entrada crescente da mulher no mercado de trabalho carrega pelo menos três significações:
a) a da emancipação feminina, ligada em boa parte ao ingresso da mulher no mercado de trabalho, ganhando status profissional e independência financeira;
b) a da necessidade que constrange a mulher a trabalhar fora de casa para ajudar a família enquanto solteira, ao marido enquanto casada, a da urgência extrema quando a mulher solteira fica sozinha e sem renda ou com filhos e sem marido, companheiro ou parente;
c) finalmente a dos mecanismos do capital para superar a crise.
Uma das saídas clássicas do capitalismo, quando cai o lucro e diminui a acumulação, é dispensar os adultos e explorar crianças, despedir os homens e contratar mulheres, cujos salários são sempre mais baixos, para trabalhos iguais. O ingresso maciço de mulheres no mercado de trabalho no Brasil vem carregado destas ambiguidades: emancipação, necessidade, sobre-exploração por parte do capital. Basta acrescentar que o salário médio feminino, que na década de 1970 equivalia a 60% da remuneração do homem, na década de 1980 declinava para 45% do que é pago aos homens.
População economicamente ativa (PEA), de mais de 10 anos, por sexo, 1950-1985
1950 |
1960 |
1970 |
1980 |
1985 |
|
Pop. mais de 10 anos (milhões) |
nº %
36,5 — |
nº %
48,8 — |
nº %
65,8 — |
nº %
87,8 |
nº %
98,2 — |
PEA — total (milhões) | 17,1 100 | 22,7 100 | 29,5 100 | 43,2 100 | 55,0 100 |
Homens Mulheres |
14,6 85,4 2,5 14,6 |
18,6 82,4 4,0 17,6 |
23,3 78,9 6,1 21,1 |
31,3 72,4 11,8 27,6 |
36,6 66,5 18,4 33,5 |
Fonte: REGE – Anuário Estatístico 1986, pp. 102-103. Porcentagens do autor.
É fácil observar o ingresso crescente de mulheres no mercado de trabalho. Nos últimos 35 anos, as mulheres trabalhando fora de casa passaram de 2,5 para 18,4 milhões, percentualmente de 14,6% da população economicamente ativa, para 33,5% desta população. Em cidades como São Paulo, na idade entre 15 e 17 anos, a proporção entre rapazes e moças, trabalhando, é quase igual. Conjuga-se então o recurso ao trabalho de quase-crianças e da mão de obra feminina, para se deprimir os salários e obter taxas de acumulação do capital mais elevadas. Nestes mecanismos, a mão de obra feminina negra é sempre a mais explorada e a que recebe menor remuneração.
Carteira assinada. Ela é uma garantia para o trabalhador. Primeiro, o único atestado de que ele está empregado, livrando-o da pecha de “vadiagem”, figura jurídica que permite à Polícia, nas batidas e nas operações “pente fino”, realizadas nas favelas e bairros populares, levar cidadãos honestos, trabalhadores, pobres e geralmente negros, mas sem carteira assinada, para a cadeia. Um boa parte da população pobre sobrevive de biscates, expedientes, trabalhos avulsos, por causa da grande taxa de desemprego na economia. Trabalha, mas não tem como provar que trabalha. Outra está empregada, mas os patrões se recusam a assinar suas carteiras, para fugir aos encargos sociais. Estão nessa situação grande parte das empregadas domésticas, das empregadas do comércio e dos operários em oficinas e fábricas de fundo de quintal, os chamados “menores aprendizes”, os boias-frias, mulheres e crianças nas fazendas. A carteira assinada garante acesso ao INSS em caso de doença, de acidente de trabalho, além de garantir aposentadoria na velhice. Indica o recolhimento do fundo de garantia e permite, em determinados casos, o recebimento do salário desemprego. A situação neste particular não é boa para ninguém, nem mesmo nas grandes cidades. Pesquisa de dezembro de 1986, para a cidade de São Paulo, a que se encontra em melhor situação no país, revela que de todos os trabalhadores empregados com mais de 15 anos, somente 62,8% tinham sua carteira de trabalho assinada. No Recife, essa proporção caía para 50%.[2] Se olharmos, porém, como se dá essa distribuição pela cor de pele (voltamos ao quadro estatístico acima), verificaremos que, enquanto os homens brancos têm carteira assinada numa proporção de 71,8%, os homens negros alcançam apenas 51,9%; enquanto apenas 60,4% das mulheres brancas têm carteira assinada, esta proporção despenca para 34% quando se trata das mulheres negras.
Se destes dados relativos ao trabalho passarmos a dados indicativos da escolaridade, reaparecem as mesmas desproporções. A taxa de analfabetismo entre a população de 10 anos e mais é de 15,5% para a população branca e de 42,4% para a população negra. A população com 11 ou mais anos de estudos, isto é, que cursou colegial ou algo mais numa escola superior, é de 9,1% entre os brancos e de apenas 1,1% entre os negros.[3]
De tudo o que vimos acima não basta concluir que o Brasil é um país de profundas desigualdades sociais, com uma das piores escalas de distribuição de renda em todo mundo, ou seja, com uma pequena camada de ricos muito ricos, e uma grande massa de miseráveis, mas é necessário acrescentar também que as desigualdades de salário, escolaridade etc. estão coladas a essa outra variável que é a cor de pele. Gostaríamos de assinalar que a concentração da renda no Brasil agravou-se nos últimos anos, que a renda dos mais pobres só tem declinado e a dos mais ricos só tem aumentado. Em 1981 os 10% mais pobres detinham 1,0% da renda nacional e os 10% mais ricos, 45,5%. A renda dos 50% mais pobres era ligeiramente superior à dos 1% mais ricos: 14,2% para 13%. Em 1985 a renda dos 10% mais pobres estava reduzida a 0,8% da renda nacional, e a dos 10% mais ricos havia crescido para 47,7%; a dos 50% mais pobres já era inferior à dos 1% mais ricos: 13% para 14,4%.
2. Raça e cor, explicações para a desigualdade?
Há muitas explicações correntes e até com aparência de científicas para esses fenômenos que são complexos e combinam diferentes causas econômicas, sociais, políticas e históricas. Muitas delas, porém, são parciais, simplistas e mesmo inteiramente falsas.
Não falta quem diga que o Brasil é um país subdesenvolvido porque foi colonizado por Portugal; e acrescenta-se sonhando: “Tivéssemos sido explorados pelos holandeses e hoje seríamos um país desenvolvido e próspero”.
A Indonésia foi ocupada e colonizada pela Holanda (1596) antes mesmo de ocupar Pernambuco (1625). Nem por isso ela saiu menos espoliada e empobrecida da exploração colonial.
Outros dizem que a causa do atraso é que fomos explorados na América Latina por nações católicas, Espanha e Portugal, enquanto a América do Norte tornou-se próspera por ter sido colônia de uma nação protestante, a Inglaterra. Isto se encaixa numa teoria mais geral de que o protestantismo, sobretudo calvinista, foi a matriz ética para o desenvolvimento do capitalismo, obstaculado, por outro lado, pela moral medieval católica que condenava os juros e a usura. Ora, a Inglaterra colonizou também a Guiana Inglesa, Barbados e Jamaica, hoje países empobrecidos, lutando igualmente contra profundas desigualdades sociais e dificuldades para se libertarem da herança colonial. O mesmo pode-se dizer das colônias inglesas na África e na Ásia. Doutro lado, países como a Bélgica, de tradição católica, nem por isso deixaram de conhecer forte desenvolvimento industrial a partir do século XIX. Do mesmo modo a Alemanha, com metade da população católica e a outra metade protestante, não deixou de se desenvolver por igual. E um país como o Japão, nem branco, nem europeu, nem católico, nem protestante, realizou sua revolução industrial a partir de 1868, e hoje encontra-se na ponta do desenvolvimento tecnológico e científico mundial.
Mas não faltaram ainda os que encontraram uma explicação brilhante para as dificuldades do Brasil: todas as nossas desgraças teriam uma única explicação: a população negra e mestiça aqui presente. A solução seria o “branqueamento” da população, pelo incentivo à vinda de imigrantes europeus, de preferência bem claros, como os alemães. Compartilhava a mesma opinião o Presidente Roosevelt, dos Estados Unidos, depois de uma visita ao Brasil, em 1914: “No Brasil… o ideal principal é o desenvolvimento da questão negra pelo desaparecimento do próprio negro, gradualmente absorvido pela raça branca… a enorme imigração europeia tende, década a década, a tornar o sangue preto um elemento insignificante no sangue de toda a nação”[4].
Esta não era apenas uma opinião, mas uma política deliberadamente traçada pelas classes dominantes e pelo Governo brasileiro. O decreto de 28 de junho de 1890 dispunha que a imigração era totalmente livre, mas acrescentava uma cláusula restritiva: “Excetuados os indígenas da Ásia e da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos…”[5]. Ainda em 1945, Getúlio Vargas, um mês antes de ser deposto pelos militares, assinou importante decreto-lei (nº 7.967, de 18 de setembro de 1945) estipulando que os imigrantes seriam admitidos de conformidade com “a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência europeia” (o grifo é nosso)[6].
Outros, porém, se desesperavam, indagando quanto tempo iria ser preciso para concluir o processo de branqueamento: “Trezentos anos, talvez, levaremos para mudar de alma e alvejar a pele, e se não brancos, ao menos disfarçados, perdermos o caráter mestiço”[7]. Afrânio Peixoto, invocando até mesmo o nome de Deus, concluía: “Quantos séculos serão precisos para depurar todo esse mascavo humano? Teremos albumina bastante para refinar toda essa escória… Deus nos acuda, se é brasileiro”[8].
Raça e cor de pele como explicações de processos econômicos, sociais e culturais, funcionam como parte de teorias racistas que nunca faltaram entre os círculos acadêmicos europeus e entre intelectuais brasileiros.
A teoria racista é o passo necessário, seja para justificar a dominação e colonização de um povo sobre outro, seja para instaurar e legitimar o processo de escravização de grupos étnicos. As teorias racistas de Gobineau foram largamente apreciadas na Europa do século XIX como prelúdio e complemento da expansão colonial da Inglaterra, França, Bélgica, Alemanha em direção à África e à Ásia. Do mesmo modo, no século XVI, ressuscitaram-se em Espanha e Portugal as teorias de Aristóteles sobre a escravidão para justificar a escravização de índios e negros. Aristóteles dividia os povos e as pessoas entre os que eram livres por “natureza” e os que a natureza destinava a ser escravos. Nessa representação, os índios seriam todos “naturalmente” destinados a ser escravos, como dizia Ginés de Sepúlveda, já que eram “bárbaros”, “sem lei, sem rei, sem Deus”, ou seja, sem vida civil (lei), vida política (rei e Estado) e sem vida religiosa (Deus)[9].
Talvez pudéssemos responder à interrogação inicial sobre raça e cor de pele, como explicação para a desigualdade, dizendo que ambas as explicações são o complemento ideológico indispensável do processo mais profundo que é a justificativa da escravidão. Benci, jesuíta italiano que prega na Bahia no ano de 1700, nos alertava, entretanto, para o fato de que racismo e escravidão acabam se entrelaçando e reforçando-se mutuamente: “Todos os escravos, só por serem escravos, são tidos em pouco e tratados com o desprezo que acabamos de ver; mas ainda é mais vil e abatido o trato que se dá aos escravos pretos, só por serem pretos”[10].
3. Dependência ou escravidão
No passado, e ainda hoje, sempre impressionou a historiadores e economistas a dura lei da dependência externa, que nos fez apenas mudar de metrópoles, sem alterar a subordinação ao mercado externo e aos seus ditames. Pareceria, pois, que nossa história podia ser seguida através desse fio condutor inalterável, de ciclos econômicos, expressão da dependência ao mercado externo, na sua face mercantil, industrial, tecnológica ou financeira.
Outros, entretanto, voltando-se para dentro, toparam com a realidade incontrolável do latifúndio, presente nas primeiras doações de terras, nas plantações de cana e nos engenhos, nas fazendas de gado, algodão, café e nas vastas extensões de terra incultas, mesmo abandonadas, mas sempre com “dono” e que marcam a paisagem brasileira. Do começo até hoje, num país de tantas terras aparentemente “livres”, a realidade dominante é de grandes maiorias de trabalhadores “sem-terra”. Aos índios sempre se lhes roubaram as terras, e até hoje o Estado brasileiro recusa-se a demarcar as poucas que lhes restam; aos escravos e aos seus descendentes sempre se negou a terra; ao imigrante europeu, com pequenas exceções no sul do país, deu-se o destino de “colono” sem terra nas fazendas de café. A história dos posseiros é a de abrirem terras virgens, serem expulsos pela chegada do latifúndio, abrirem novas terras mais adiante e serem novamente expropriados por alguém que “comprou” aquelas terras. No regime jurídico da terra, sob a forma do latifúndio, estaria a continuidade mais relevante da história brasileira. O regime de capitanias hereditárias, o de sesmarias, a lei de terras de 1850, a lei dos incentivos fiscais para a área da Amazônia Legal, com a SUDAM, em 1967, os entraves todos colocados para a realização de qualquer tipo de reforma agrária seriam apenas manifestações cambiantes da mesma orientação: a manutenção, expansão e multiplicação do latifúndio como forma de manter a mesma dominação de poucos sobre muitos, iniciada com a história colonial.
Uma indicação no início da encíclica “Laborem Exercens” do Papa João Paulo II (1981) talvez nos ajude a buscar explicações em outra direção que, sem negar a realidade do caráter colonial de nossa economia, sem desconhecer o peso cruel e violento do latifúndio, nos faça colher o lado humano de toda história. A “Laborem Exercens” diz: “… o TRABALHO humano é uma chave, provavelmente a chave essencial de toda a questão social…”[11].
Talvez devamos concluir com Caio Prado Júnior que a história da formação social brasileira é o resultado de uma combinação onde entra o seu caráter colonial de economia subordinado a uma metrópole e submetido às leis do mercado externo, organizado na base da grande propriedade especializada num único produto de exportação e tocado na base do trabalho escravo. Escravidão, monocultura de exportação, latifúndio e caráter colonial comporiam o quadro mais completo da realidade brasileira. Caio Prado coloca, porém, a chave de tudo nos impulsos que essa economia recebe do mercado externo, organizando-se como economia para produzir e exportar gêneros tropicais, açúcar, algodão, tabaco e café para os mercados europeus.[12]
Para nós a chave da compreensão da nossa formação social estaria no regime de produção, realizado debaixo de relações escravistas que modelaram o caráter mais profundo da realidade social brasileira. Neste particular seguimos a posição de Jacob Gorender, no seu “Escravismo Colonial”[13].
4. Relações escravistas de produção
A primeira observação do Pe. Nóbrega ao tocar as terras brasileiras em 1549 é a de que ali não se encontrava uma pessoa sequer cujos serviços pudessem ser contratados. Todo o trabalho se fazia com escravos. Para “fabricar” escravos entre as populações indígenas tudo era válido e permitido: enganos, assaltos, violências, guerra justa ou injusta. Nóbrega e os primeiros jesuítas empenham-se a fundo contra a injustiça da escravização dos índios: pregam do púlpito, negam a absolvição aos que mantêm cativos a indígenas, denunciam ao rei a situação e a conivência de governadores, capitães e clérigos na instauração e manutenção desse estado de coisas. Colhem apenas o que cem anos depois experimentou o Pe. Vieira no Maranhão, ao enfrentar situação semelhante. Vieira escreve ao seu amigo, o rei D. João IV, em 1655, queixando-se amargamente: “Temos contra nós o povo, as religiões, os donatários das Capitanias mores, e igualmente todos os que nesse Reino e neste Estado (do Maranhão) são interessados no sangue e no suor dos Índios cuja menoridade nós só, defendemos”[14].
Mas a escravidão já era tão estrutural à chegada dos primeiros jesuítas que Nóbrega, ao fundar em 1551 o primeiro colégio dos órfãos, na Bahia, não tem outro remédio senão escrever ao rei pedindo entre outras coisas necessárias (vacas, instrumentos de ferro e uma dotação), também “… alguns escravos da Guiné… para fazerem mantimentos…”[15].
A única diferença em relação aos outros moradores é que não quer escravos ilícitos, nem “negros da terra”, e para tanto solicita ao rei que sejam enviadas “peças da Guiné”, ou seja, escravos negros importados da África.
O peso da escravidão era tanto que até mesmo a defesa dos jesuítas em relação aos índios vai se afrouxar; e encontramos o mesmo Nóbrega, anos mais tarde, recomendando ao rei que, para aquietar as consciências (daqueles que tinham escravos ilícitos) e para obter a mão de obra necessária para as lavouras, decretasse licença de mover guerra aos índios, abrindo o caminho para a obtenção de escravos indígenas: “Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque serão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa, e terão serviço e vassalagem dos índios e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e Vossa Alteza terá muita renda nesta terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos, já que não haja ouro e prata”[16].
No Brasil a escravidão deixa de ser uma instituição ao lado de outras instituições dentro da sociedade, para tornar-se a alma e o eixo de todo o sistema não só econômico, mas também jurídico, social e religioso, contaminando e moldando todas as outras instituições.
5. Escravidão: economia e sociedade
Para melhor compreendermos a escravidão e sua repercussão sobre outras instituições, damos aqui alguns dos seus traços fundamentais:
— Em todas as sociedades há trabalhos que ninguém quer fazer, pois são pesados, mal remunerados, desprezados ou humilhantes, desprotegidos pela legislação trabalhista, desconsiderados socialmente. Por toda parte encontramos, no passado e hoje, pessoas exploradas no trabalho: milhões de turcos, marroquinos e portugueses desempenham na Alemanha, França e Holanda os trabalhos “sujos” e pesados: minas de carvão, limpeza pública, construção civil; milhões de mexicanos atravessam as fronteiras dos Estados Unidos para colher as safras de laranja, tomate, frutas, lavar pratos nos restaurantes ou empregarem-se como “ilegais” e “indocumentados” nos serviços domésticos e nas construções. No interior de todo o Brasil, homens, mulheres e crianças madrugam para pegar os caminhões de boias-frias, cortarem cana, colherem algodão, amendoim e laranja, sem carteira de trabalho, sem assistência à saúde, sem responsáveis pelos acidentes de trabalho e sem perspectiva de aposentadoria depois de 40 ou 50 anos de labuta diária. Qual a diferença entre essa exploração do trabalho e a exploração própria da escravidão?
— A escravidão é uma forma extrema de exploração do trabalho que, para melhor alcançar seu objetivo, transforma a pessoa em propriedade absoluta do seu dono. Ela entra no rol das coisas, é comprada e vendida como qualquer outra mercadoria.
— A escravidão era imposta normalmente a pessoas estranhas a uma determinada sociedade, negando-se-lhes os direitos e privilégios dos cidadãos daquele lugar, que podiam por isso mesmo explorá-las para fins econômicos, políticos e/ou sociais. É o estrangeiro pela língua, pela raça, pela cultura, pela religião, pela cor, que é reduzido à escravidão. As prescrições da Bíblia vão na mesma direção: “Os escravos e as escravas que tiveres, deverão vir das nações que vos circundam; delas podereis adquirir servos e servas” (Lv 25,44). Impõe-se ao mesmo tempo penas severas aos que intentam escravizar seus irmãos de raça e religião e vendê-los: “Se alguém for pego em flagrante sequestrando um dos irmãos, entre os filhos de Israel — para explorá-lo ou vendê-lo — tal sequestrador será morto” (Dt 24,7).
A forma mais desenvolvida de escravidão ocorre quando os escravizados são removidos a uma considerável distância do seu local de nascimento, de sua família e de sua pátria, praticamente sem possibilidade de retorno, enfatizando-se assim sua origem estrangeira. Foi o que se fez, transportando-se africanos para o mundo árabe através do deserto do Saara ou, num corte mais radical, africanos para a América, através do Atlântico.
— Na África, quando um escravo ia aprendendo a língua do seu dono, adaptando-se aos novos costumes, aceitando a religião do seu senhor, casando-se no interior do grupo que o adquiriu, ia deixando lentamente de ser escravo. Para os europeus, ainda que o escravo aprendesse a língua, se convertesse ao cristianismo, deixando-se batizar, continuava como escravo porque racialmente distinto e de outra cor.
— A escravização se processou sempre através da violência, com a qual uma pessoa ou todo um grupo passava de sua condição de livres para a condição de escravizados. De início escravos eram normalmente prisioneiros, resultantes de alguma guerra entre tribos ou povos vizinhos. Depois a guerra era mais e mais organizada, com a finalidade exclusiva de escravizar pessoas para encaminhá-las ao mercado de escravos, suprindo à demanda externa.
— A escravidão envolve sempre algum tipo de coerção, aberta ou disfarçada. A mais visível de todas é o trabalho sob a vigilância do feitor e do chicote, os castigos, chegando até à tortura e à morte. O nosso já conhecido Pe. Benci dizia em sua pregação aos senhores de engenho do Recôncavo baiano: “Para trazer bem domados e disciplinados os escravos, é necessário que o senhor lhes não falte com o castigo, quando eles se desmandam e fazem por onde o merecer”[17]. Castigar com bolos, chicotadas, tronco ou pelourinho não era considerado crueldade, mas obra de misericórdia, a fim de corrigir o escravo. O castigo dado na frente dos outros escravos cumpria função pedagógica: incutir-lhes o medo e o terror de serem, por sua vez, castigados.
— A escravidão está vinculada fundamentalmente ao trabalho. Os escravos eram obrigados às tarefas duras e difíceis e às de maior risco para a vida e saúde. Eram considerados instrumentos de trabalho, com a diferença de que eram animados. Por isso eram muitas vezes tratados como bestas de carga. O Código Filipino ou Ordenações do Reino de Portugal (1603) trata do escravo no livro IV, título XVII, junto com a legislação relativa às bestas: “Quando os que compram escravos, ou bestas, os poderão enjeitar por doenças ou manqueiras”[18]. Eram obrigados a executar o que se lhes mandava. Doutra forma eram punidos. Pelo seu trabalho não tinham direito a nenhuma recompensa ou remuneração. Diz o mesmo Pe. Benci: “Trabalha o livre e colhe do que trabalha: trabalha o servo e o fruto do que trabalha, colhe-o o seu senhor”[19].
— O escravo estava submetido a absoluta falta de escolha. Podia ser despachado daqui para lá, vendido e revendido, passar de um trabalho para outro, ser emprestado, alugado, sempre dependendo da boa vontade ou do bom humor do seu senhor, de sua prosperidade ou desgraça, do seu bom ou mau caráter. Não podia reclamar, na justiça, contra os maus tratos, e seu testemunho de nada valia juridicamente.
— Porque estava totalmente submetido ao seu senhor, este controlava sua sexualidade e sua força reprodutiva, assim como controlava sua força de trabalho. As mulheres e, por vezes, os homens, eram tratados pelos senhores como objetos sexuais, sujeitos a seus caprichos e perversões. Ter ou não ter família dependia do bel-prazer ou do interesse do senhor. Na maior parte das vezes, nem mesmo desta boa ou má vontade, mas sim de razões estruturais, pois nas minas e em certas plantações eram concentrados centenas de homens, escravos, sem nenhuma mulher. Ter uma família, gozar de certa estabilidade, ter momentos de intimidade, estabelecer laços de afeição e de parentesco, sempre foi privilégio raro, concedido, por vezes, a escravos domésticos. As crianças nascidas de uniões estáveis ou fortuitas eram sempre propriedade do senhor que podia vendê-las na hora que bem quisesse, separando pais dos filhos e também marido de mulher. A primeira proteção legal à família do escravo, proibindo a separação entre cônjuges e a separação da mãe dos filhos menores, só foi votada no Brasil a dezenove anos do término da escravidão, no artigo 4% § 7% da Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871).
— Homem ou mulher, uma vez arrancados de sua liberdade e reduzidos à escravidão, passavam a transmitir essa sua nova condição hereditariamente e para sempre, seguindo a regra do direito romano: “Partus sequitur ventrem”. A prole segue a condição do ventre materno. Se a mãe era escrava, o filho sempre era escravo. Isto levava muitas escravas a abortarem para não condenarem o fruto de seus ventres à mesma maldição da escravidão. Antonil (em Cultura e opulência do Brasil) recomenda aos senhores dar o que sobra de sua mesa aos filhos pequenos de suas escravas, para que elas “… os sirvam de boa vontade e que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas. Pelo contrário, algumas escravas procuram de propósito aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem”[20].
No mais das vezes as crianças morriam, pois a mãe era obrigada a retornar muito cedo ao trabalho, sem tempo para amamentar a criança ou ficar cuidando da mesma. Os senhores não tinham muita paciência para esperar oito, dez anos, até que as crianças começassem a ser produtivas. Não queriam também correr o risco de sustentá-las e depois morrerem, dando-lhes prejuízo. Era preferível comprar um escravo jovem e forte, pronto para o trabalho, e já colocá-lo imediatamente no eito. Dava também mais lucro alugar a escrava como ama de leite de crianças brancas, do que deixá-la amamentando o próprio filho[21].
Qual o peso da escravidão na vida do Brasil colônia e do Brasil império?
Duas frases, em tempos diferentes, podem bem ilustrar o lugar e o peso do escravo na estrutura de produção do país:
“Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”[22].
O que era verdade para a Bahia na passagem do século XVII para o XVIII, continuava sendo válido no século XIX para o sul do Brasil, no claro aforismo atribuído ao Senador Silveira Martins: “O Brasil é o café e o café é o negro”[23].
Por isso mesmo a importância dos escravos e o volume das importações só foram crescendo ao longo dos séculos. De uma importação anual de 50.000 escravos no século XVI, passou-se para 560.000 no século XVII, 1.801.400 no século XVIII, 1.145.400 em apenas quarenta anos do século XIX. As médias anuais foram sempre num crescendo até a interrupção do tráfico:
500 (século XVI)
5.600 (século XVII)
17.194 (século XVIII)
29.266 (século XIX)[24].
Longe de ir declinando, o tráfico só fez crescer ao longo da história, exacerbando-se a importação, nos anos finais, em que era não apenas condenado pela opinião pública, proibido por tratados internacionais firmados pelo governo brasileiro, mas constantemente reprimido pelos navios do almirantado britânico. Os últimos anos do tráfico conheceram as mais altas importações anuais de toda a história brasileira:
1846 — 50.324
1847 — 56.172
1848 — 60.000
1849 — 54.000
1850 — 23.000 (ano da Lei Eusébio Queiroz, proibindo novamente o tráfico)[25].
O Brasil, além disso, foi o país que mais escravos africanos recebeu em toda a América e o lugar onde por mais tempo prosseguiu a escravidão como a mola-mestra da economia e a instituição central da sociedade. Enquanto a escravidão foi liquidada no Haiti, em 1791, através de uma rebelião dos escravos, em muitas ex-colônias espanholas, com a independência, entre 1810 e 1824, nas Antilhas inglesas em 1834, nas colônias francesas em 1848, nos Estados Unidos, com a sangrenta guerra da secessão, 1860-1865, em Cuba, com o fim da guerra dos dez anos, em 1880, no Brasil a escravidão conseguiu manter-se até 1888.
Nenhuma outra sociedade do novo mundo envolveu-se tão extensa e profundamente e por tão longo tempo, em relações escravistas, como a brasileira. Estabeleceu-se também um consenso pesado e quase unânime nas suas classes dirigentes em favor da escravidão: dos senhores de engenho aos fazendeiros de café, mas também do clero secular às ordens religiosas todas. Os escravos não ficaram por sua vez confinados a um setor da sociedade brasileira ou destinados à produção de um único produto, como foi o açúcar nas ilhas do Caribe. Os escravos estavam nos engenhos de açúcar do Nordeste, da Amazônia, do Rio de Janeiro, plantando, cortando, carreando e moendo cana, cozendo o mel e depurando o açúcar, mas iam também, para as roças de mandioca e para as fazendas de gado. Estavam no plantio do algodão do Maranhão, do cacau e do fumo na Bahia, nas roças de mantimentos, por todas as partes. Eram utilizados nas minas de ouro de Minas, Goiás e Mato Grosso, e na faiscagem dos diamantes em Minas e na Bahia. Tocavam as charqueadas do Rio Grande do Sul e a pesca da baleia e o fabrico do óleo em Santa Catarina. Eram os remeiros das canoas paulistas que levavam ferramentas, pólvora, panos e escravos para as minas de ouro de Cuiabá. Tocavam as tropas de mulas que subiam do Rio Grande do Sul e movimentavam todo o sistema de transportes pelo interior do país. Formavam a maioria dos marinheiros da navegação costeira. Dos portos do Rio de Janeiro e da Bahia partiam como tripulação dos navios tumbeiros que iam buscar mais escravos na África. Na cidade carregavam água para as casas, levavam para o mar os dejetos noturnos, transportavam as mercadorias que chegavam ao porto ou eram entregues das casas comerciais para as residenciais, construíam casas, igrejas, conventos. Eram músicos, artistas, oficiais de todas as profissões e ofícios: sapateiros, ferreiros, mestres carapinas. As mulheres estavam no plantio, na carpa e colheita do café, nas rodas e moendas de cana, em todos os serviços domésticos, como lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, passadeiras, quituteiras, costureiras, rendeiras. Eram as amas de leite, as babás e as enfermeiras. Eram exploradas nas casas de prostituição e serviam aos caprichos sexuais dos senhores e dos seus filhos. Ao surgirem as primeiras fábricas de tecidos, lá estavam elas como fiandeiras e tecelãs. O comércio de frutas, doces e comidas nas ruas e praças era também movimentado pelas “baianas”. Nem uma palha se movia neste país, nas fazendas, cidades, portos, rios e estradas; nas casas, igrejas e conventos, sem o braço, as mãos e os pés dos escravos.
Nenhuma sociedade passa impunemente durante quase quatrocentos anos por um sistema econômico e social, onde um grupo, o dos senhores, não fazia absolutamente nada, mas gozava de todos os direitos e privilégios, enquanto outro grupo, majoritário, trabalhava sem ser remunerado e debaixo da violência institucionalizada da escravidão, sendo-lhe negado todo e qualquer direito.
Por isso mesmo os traços que a escravidão imprimiu, na sociedade brasileira ainda não se apagaram.
6. As sequelas da escravidão
Entre as sequelas de ordem mais geral, ficaram no Brasil o desprezo pelo trabalho e o menosprezo pela vida e dignidade das pessoas, sobretudo das negras e pobres.
O desprezo ao trabalho era tal que chegava a ser proibido aos clérigos o exercício de qualquer ofício taxado de baixo e vil. Entre estes se arrolavam: cavar, roçar, cortar canas e outros semelhantes, ainda que o fizessem em sua própria fazenda.[26]
O costume de não se remunerar o trabalho, durante todo o tempo da escravidão, reflete-se na facilidade com que, no país, se deixa de pagar o trabalho realizado, atrasa-se o pagamento e impõe-se à população um dos salários mínimos mais baixos do mundo. Mesmo depois de defini-lo como mínimo, a mesma lei estabelece que se pague ao trabalhador rural que se aposenta a metade desse montante considerado o mínimo para sobreviver! No campo que foi o reduto final e último da escravidão, sobretudo nas fazendas de café do vale do Paraíba fluminense e paulista e nas grandes lavouras do oeste paulista, foi muito difícil introduzir-se qualquer legislação de proteção ao trabalhador. Os fazendeiros sempre resistiram a qualquer lei que impusesse algum limite à sua discrição pessoal, limitando, de alguma forma, o poder absoluto de patrão, juiz, polícia e patriarca, que julgavam possuir, da porteira para dentro de suas propriedades. Os direitos trabalhistas no campo brasileiro só foram estabelecidos durante o Governo Goulart (1963) com o Estatuto do Trabalhador Rural. Quão difícil continua, porém, sua aplicação nos interiores do país. Comprovam-no denúncias constantes de trabalho escravo nas fazendas do Pará, Mato Grosso, Goiás e até São Paulo.
Antonil já assinalava em 1711 a grande incidência de acidentes de trabalho durante o período da safra de cana e da produção do açúcar. Vale a pena transcrever suas observações: “O lugar de maior perigo que há no engenho é o da moenda, porque, se por desgraça a escrava que mete a cana entre os eixos, ou por força do sono, ou por cansada, ou qualquer outro descuido, meteu desatentadamente a mão mais adiante do que devia, arrisca-se a passar moída entre os eixos, se lhe não cortarem logo a mão ou o braço apanhado, tendo para isso junto à moenda um facão, ou não forem tão ligeiros em fazer parar a moenda, divertindo com o pejador a água que fere os cubos da roda, de sorte que deem depressa a quem padece, de algum modo, o remédio. E este perigo é ainda maior no tempo da noite, em que se mói igualmente como de dia, posto que se revezem as que metem a cana por suas esquipações, particularmente se as que andem nesta ocupação forem boçais ou costumadas a se emborracharem”[27].
Antonil descreve, na primeira parte, a trágica rotina dos acidentes de trabalho, por cansaço e sono, devida a um trabalho contínuo de dia e de noite, sem sábados e domingos, já que os engenhos, durante a safra, moíam redondo, isto é, sem dia de descanso, sem atentar se é dia ouse é noite. Do mesmo modo hoje as usinas de açúcar e álcool da região noroeste de São Paulo, moem redondo, dia e noite. Os motoristas dos caminhões que carreiam cana das plantações para a usina trabalham, sem parar, por 12 horas seguidas e a semana toda, sem descanso no sábado ou domingo. Trabalham 15 dias de dia e outros 15 dias de noite. Quando passam do turno para o noturno, dobram a jornada de trabalho, dirigindo ininterruptamente por 24 horas. Enquanto se discute na Constituinte a diminuição das horas semanais de trabalho, de 48 para 40 horas, estes motoristas estão obrigados a jornadas de até 96 horas semanais, como nos velhos tempos da escravidão!
Nos engenhos cubanos a situação era a mesma. Um diplomata inglês, James Kennedy, observava, referindo-se aos efeitos do trabalho extensivo de 18 horas diárias: “… durante a safra, parecem seres idiotizados, extenuados, totalmente esgotados”[28]. Robert Scott, outro inglês, proprietário de engenho na região de Cienfuegos, observava: “Trabalham sonolentos durante toda a safra”[29]. Um outro observador inglês assinalava, friamente, o que já havia constatado Antonil no Brasil: como os negros perdiam seus braços, quando “vencidos pelo sono seguem o movimento de suas canas que vão metendo no trapiche e as moendas lhes trituram os membros”[30].
Esse descaso pela integridade física do trabalhador reflete-se nos índices incríveis de acidentes de trabalho, no campo e nas fábricas, fazendo do Brasil um campeão mundial neste setor.
As mesmas sequelas da escravidão podiam ser apontadas na esfera da religião católica no Brasil, com irmandades e estruturas devocionais, seguindo os nítidos contornos da escravidão: santos e irmandades para escravos — São Benedito, N. Sra. do Rosário dos Pretos, Santa Efigênia — e, santos e irmandades para os “homens bons” — N. Sra. do Carmo, São Francisco — deixando-se a de São Miguel e das Almas para os índios; N. Sra. da Boa Morte para os homens pardos, e assim por diante. Essa sequela estava na proibição de entrarem nos seminários e conventos pessoais de “sangue infecto”: judeu, mouro, africano; no descaso pela instrução e atendimento religioso da grande massa escrava que fazia o Pe. Benci exclamar: “Fostes constituídos pastores apenas dos livres ou também dos escravos? Ou não cuidais destes últimos, só porque não podem pagar?”.
As sequelas da escravidão estão também patentes no sistema familiar, onde se podia chegar a casos tão extremos, como no distrito neutro, a cidade do Rio de Janeiro, onde, ao final da escravidão, apenas 0,8% dos escravos estavam casados. A família foi instituição negada aos escravos ao longo de todo o período escravista, e ainda hoje, casar, ter moradia, um salário que permita sustentar mulher e filhos, é privilégio inacessível às camadas populares. Ter família estável e bem constituída, assim como ter terra para trabalhar, são realidades negadas, no passado, aos escravos e que continuam sendo, estruturalmente, negadas para as grandes maiorias, em nossos dias.
Os exemplos podiam seguir no sistema político, onde cidadania é ainda privilégio de poucos; no sistema jurídico, onde os pobres não têm acesso à justiça; no sistema educacional, e assim por diante. A escravidão é uma pesada herança que ainda não acabamos de eliminar das estruturas, mentalidades e práticas de nosso país.
[1] FIBGE, Anuário Estatístico de 1986, Dados do Censo de 1980, p. 99.
[2] FIBGE, Censo de 1986, p. 118.
[3] FIBGE-PNAD, 1976, citado por IBASE, Dados da realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1982, pp. 51-55.
[4] Thomas Skidmore, Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 85.
[5] Ibidem, p. 155.
[6] Ibidem, p. 219.
[7] Afrânio Peixoto, “Carta a Fidelis Reis”, apud Bruno Lobo, Japoneses no Japão, no Brasil. Rio de Janeiro, 1923, pp. 140-142, citado por Skidmore, op. cit., p. 215.
[8] Ibidem, p. 215.
[9] Silvio Zavala. Servidumbre natural y libertad cristiana segura tos tratadistas españoles de tos siglos XVI y XVII. México: Editorial Porrua, 1975.
[10] Benci. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977, p. 217.
[11] João Paulo II, Laborem Exercens, n. 3.
[12] Caio Prado Júnior. Formação do Brasil contemporâneo-colônia. 16ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1979, pp. 119ss.
[13] Jacob Gorender. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
[14] Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, vol. III, p. 54.
[15] Pe. Manuel da Nóbrega. “Carta a D. João III, Rei de Portugal”, Olinda, 14 de setembro de 1551, apud Serafim Leite. Carta dos primeiros jesuítas. São Paulo, 1954, tomo 1, p. 293.
[16] Serafim Leite, op. cit., vol. II, p. 117.
[17] Benci, op. cit., p. 126.
[18] Apud Décio Freitas. Escravidão de índios e negros no Brasil. Porto Alegre: EST — Instituto Cultural Português, 1980, p. 25.
[19] Benci, op. cit., pp. 214-215.
[20] André João Antonil. Cultura e opulência no Brasil (texto da ed. de 1711). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 164.
[21] Paul Lovejoy. Transformations in slavery — A history of slavery in Africa. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, pp. 1-18.
[22] Antonil, op. cit., p. 159.
[23] Robert Conrad. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, INIMEC, Brasília, 1975, p. 63.
[24] José Oscar Beozzo. “As Américas Negras e a História da Igreja na América Latina, questões metodológicas”, in: Escravidão Negra e a História da Igreja na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 27-64.
[25] Maurício Goulart. A escravidão africana no Brasil — Das origens à extinção do trafico. 3ª ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1975, p. 270.
[26] Cf. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, n. 478.
[27] Antonil, op. cit., p. 190.
[28] Manuel Moreno Fraginals. El ingenio, complejo económico social cubano dei azucar. La Habana, 1975, p. 33.
[29] Ibidem, p. 33.
[30] Ibdem, p. 33.
Pe. José Oscar Beozzo