Publicado em março-abril de 2014 - ano 55 - número 295
A Bíblia e o tráfico humano na atualidade
Por Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj
A ação de Deus de libertar os escravos do Egito aparece como situação privilegiada para entender o tema da escravidão, tal como foi tratada pela Bíblia, e qual posicionamento se deve ter ao ler esse texto. A história de José no Egito, como narrativa exemplar, é o coroamento da reflexão bíblica sobre o tema da escravidão e nos motiva a uma ação eficaz de combate ao tráfico humano na atualidade.
Milhares de pessoas, todos os anos, são traficadas por máfias que as exploram na prostituição e no trabalho escravo. Esse diagnóstico aterrador de nossa época mobiliza ONGs, polícias federais de vários países e a ONU e até foi tema de filmes no exterior e de novela no Brasil. Já era tempo de a Igreja propor uma Campanha da Fraternidade que denunciasse essa situação.
A antiguidade do tráfico humano é atestada pela Bíblia e, não obstante a maior parte dessa literatura ter sido escrita em um contexto no qual a escravidão era tratada com normalidade, as Escrituras o denunciam em um relato amplo (Gn 37-50). Trata-se da história de José do Egito, a qual tem, coincidentemente, o mesmo enredo dos dias atuais. Por isso, esse relato bíblico servirá de base para nossa reflexão e poderá iluminar nossas ações no contexto hodierno.
1. Uma história antiga e nova
A finalidade do relato sobre José, o filho de Jacó vendido como escravo ao Egito, é mostrar como um jovem hebreu deve permanecer fiel a Deus em qualquer situação e como o Deus da aliança pode agir discretamente nos grandes dramas da vida humana. Tudo isso com um realismo impressionante e desprovido de manifestações teofânicas ou de menções a grandes prodígios.
As narrativas bíblicas sobre os patriarcas mais antigos estão marcadas pelo culto, pela guerra santa, pelo carisma de pessoas especialmente eleitas e por manifestações extraordinárias do poder de Deus. O relato de José do Egito, ao contrário, é a história de uma pessoa comum, igual a tantas outras, que cultiva sonhos e anseios de uma vida melhor, que almeja a realização plena de seus carismas e capacidades pessoais. É uma história bem diferente das narrativas bíblicas anteriores, pois foi escrita em um ambiente intelectual e religioso bem diverso, a saber, a época da monarquia salomônica.
Naquele novo contexto histórico, houve um contato mais intenso entre os povos, maior trânsito de pessoas de um país a outro, considerável desenvolvimento do comércio ambulante por meio de caravanas, pois no reinado de Salomão foram realizadas muitas alianças de paz com os povos da região. Naquele ambiente também, por causa desses fatores, as pessoas estavam mais conscientes de suas capacidades intelectuais e havia quem sonhasse com uma vida melhor, com algo mais que cuidar dos rebanhos da família.
O relato bíblico sobre José do Egito é sui generis na Torá (Pentateuco). É uma narrativa que descreve a tempestade íntima dos personagens, seus dramas internos. Está focado mais nas situações psicológicas das pessoas que em ações extraordinárias realizadas por alguns escolhidos de Deus. Não menciona a vingança, a justiça feita com as próprias mãos, embora isso não signifique que a culpabilidade seja subestimada, e sim que há mais serenidade diante dela.
A narrativa de José do Egito é uma história de sofrimento, na qual Deus, de forma discreta, escondida, vai agindo por meio da inspiração e da criatividade, ordenando todas as coisas ruins para o bem e para a salvação.
É a história sobre um jovem que foi traficado como escravo para um país estrangeiro e ali vivenciou muitos sofrimentos, mas com o qual Deus estava, inspirando-o de modo que transformasse os acontecimentos ruins em algum bem a favor daqueles com quem compartilhava a mesma situação. Nesse relato não se menciona um fatalismo do destino, mas os eventos históricos são interpretados como consequência das ações boas ou más praticadas pelas pessoas.
Além de descrever as situações psicológicas de José, o relato se preocupa em expor o drama moral da família dele, responsável pelo desencadeamento dos fatos desastrosos vivenciados por aquele que fora vendido como escravo.
A narrativa sobre José do Egito não é tão diferente das histórias atuais. As circunstâncias nas quais nasceu são marcadas pela competição: primeiramente o pai, Jacó, competiu com o irmão, Esaú, pela primogenitura, e a mãe, Raquel, competiu com a irmã, Lia, pelo amor do marido. Influenciado por essa situação familiar, José logo aprendeu a competir com os irmãos dele (STEVENS, 2006, p. 107; 172).
A grande tentação de José era ser o arquiteto da própria realização pessoal numa oposição aos demais irmãos, os filhos de Jacó. Essas pretensões se traduziam externamente em boas roupas e sonhos de grandeza (cf. Gn 37,2).
A situação familiar teve como consequência uma hostilidade tal, que levou José a ser sequestrado pelos próprios irmãos e vendido como escravo ao Egito. Durante o tempo em que foi escravo, sofreu assédio sexual e calúnia que puseram sua vida em perigo.
José, longe de seus parentes, precisa construir novas relações sociais, as quais, a princípio, são desastrosas, já não por causa da inveja, mas porque a esposa de seu senhor se apaixona por ele e o assedia. Esse episódio provoca o desenvolvimento da trama (Gn 39-41), fazendo que José, na prisão, construa novos relacionamentos sociais: com o copeiro-mor e o padeiro-mor da corte do faraó.
Por causa do assédio e das armadilhas montadas por essa pessoa rica e influente – a mulher de Putifar –, José é tirado de um ambiente onde já estava estabelecido e é colocado na prisão. Mas, em meio aos sofrimentos, que vão se acumulando cada vez mais, ele não está abandonado por Deus, que age discretamente na história, fazendo o copeiro-mor e o padeiro-mor ter sonhos que seriam interpretados por José. Os sonhos de ambos são o que favorece o desenvolvimento da trama, forçando a situação para que José seja libertado.
Outra situação que mostra o agir discreto de Deus na história é a forma como José se reuniu com sua família (Gn 42,1-47,26). Houve um período de escassez, e os irmãos de José foram ao Egito para comprar alimentos. Os irmãos são forçados a encarar sua culpa, mas também são perdoados por José. O ápice da trama é o clímax da pressão psicológica e da liberação de todos os sentimentos. O pranto compulsivo mostra essa realidade.
2. As Escrituras mencionam, mas não aprovam, a escravidão
A Bíblia foi escrita num tempo em que a escravidão era aceita com naturalidade. Mas isso não significa que a Bíblia a aprove. O Deus revelado nas Sagradas Escrituras é o criador e o libertador. Os dois eventos bíblicos, criação e libertação, destacam a ação exclusiva de Deus. São os fundamentos da fé judaica. Todo o sistema de bênçãos, orações, festas e rituais está alicerçado na fé em Deus criador e na memória do êxodo do Egito.
Esses dois eventos servem como fundamento das relações interpessoais e da ética. Se Deus é o criador, então todos os seres humanos são irmãos. E, sendo Deus o libertador, não há nenhuma justificativa para qualquer tipo de escravidão. Portanto, a Bíblia jamais justificou essa prática e, mesmo quando não a rejeitou explicitamente, o fez indiretamente por meio de várias leis.
Em nada a escravidão mencionada nas Escrituras se parece com a escravidão dos povos africanos nas Américas. Na Bíblia, é muito severa a punição por sequestrar, manter ou vender alguém, em outras palavras, por promover a escravidão sistemática, como a que aconteceu durante séculos nas Américas. Da mesma forma, as condições atuais de subempregos, trabalhos forçados, trabalho infantil, tráfico humano, tudo isso se enquadra naquilo que está previsto no texto bíblico como crime hediondo, punido com a pena capital (cf. Ex 21,16). Esse tipo de escravidão era praticada pelo Egito, e contra isso o próprio Deus se posicionou a favor dos escravos, libertando-os e condenando a escravidão para sempre.
Quando o Antigo Testamento menciona a existência de escravos na terra de Israel promovida pelo povo da aliança, principalmente durante o período da monarquia, está referindo-se à escravidão por dívidas. Em uma época na qual não havia projetos e organizações de ajuda social e humanitária, nem seguros de vida ou de patrimônio, nem previdências sociais, e em que era usual a imposição de altos impostos para manter a corte real, facilmente alguém podia cair na escravidão por dívidas.
O escravo mais comum era alguém que se tinha oferecido voluntariamente, ou tinha sido vendido por seus pais, para pagar uma dívida. Em alguns casos, o trabalho de um devedor era necessário para a sobrevivência da família, então escolhas difíceis tinham de ser feitas. Se um pai se tornasse escravo para pagar uma dívida, seria incapaz de sustentar a própria família; então, diante do risco de toda a família passar fome, muitas vezes um adolescente era dado ao credor em pagamento da dívida. A família iria sobreviver, e o menor oferecido como escravo teria ao menos suas necessidades básicas atendidas (cf. 2Rs 4,1).
Essa terrível situação é condenada por Deus por meio dos profetas:
Vendem por prata o justo, e por um par de sandálias o pobre.
Pisam a cabeça dos necessitados como pisam o pó da terra,
e negam justiça ao oprimido (Am 2,6b-7).
A mesma condenação está no Pentateuco, que traz diversas leis a serem cumpridas pelos proprietários de escravos, um avanço para aquela época (cf. Dt 15,12-15; Lv 25,39-46). A Lei mosaica deu aos escravos o direito ao sábado (Ex 23,12), exigiu uma indenização significativa para o abuso (Ex 21,20.26-27.32), deu proteção específica para mulheres (Ex 21,7-11) e ordenou que todos os escravos fossem libertados no Ano do Jubileu (Lv 25,39-41). Muitas vezes, se um homem não tinha herdeiro, a sua propriedade passava para um escravo (Gn 15,2-3). Nessas concessões se observa a intolerância com a prática de um ser humano ser proprietário de outro.
As bases lançadas pela antiga aliança tiveram seu desfecho no Novo Testamento. Paulo de Tarso escreveu uma epístola com o propósito de restaurar o relacionamento de Filemon com seu escravo fugitivo, Onésimo, a quem aquele deveria receber “como companheiro e irmão no Senhor” (Fm 16). Se essa foi a instrução aos cristãos que viviam no contexto do império romano, numa época em que se via a escravidão com naturalidade, quanto mais severa não é a instrução aos cristãos de hoje, depois de toda a conscientização a respeito dos direitos humanos.
3. O tráfico humano na atualidade
A história do tráfico de pessoas é tão antiga quanto nova. Mas causa perplexidade o número altíssimo de vítimas que, apesar de grande conscientização a respeito dos direitos humanos, ainda são traficadas na atualidade.
O tráfico internacional de pessoas é a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas, havia, em 2010, 140 mil mulheres traficadas na Europa e exploradas sexualmente. Juntas, elas fariam cerca de 50 milhões de programas sexuais por ano, a um valor médio de 50 euros cada, o que representa um lucro anual de 2,5 bilhões de euros, ou 6,5 bilhões de reais (SANCHES, 2012).
Conforme a maioria dos depoimentos de pessoas resgatadas da escravidão (SEVERO, 2012), geralmente o início de tudo está nos sonhos de grandeza alimentados pelas vítimas, no modo como a família delas está envolvida nesses sonhos, unindo-se a isso a falta de escrúpulos de pessoas oportunistas e gananciosas que se utilizam desses fatores para enriquecimento ilícito por meio do tráfico humano.
A oportunidade do traficante de pessoas para a escravidão surge pela porta dos sonhos das vítimas. A cada ano, grande número de pessoas são traficadas para a exploração de sua força de trabalho ou para a prostituição.
(…) as vítimas são homens, mulheres e crianças mantidos em condições análogas à escravidão, normalmente, em trabalho agrícola ou fabril (…). “Tem aumentado também a frequência do tráfico internacional de jogadores de futebol, modelos e até de cozinheiros de restaurantes étnicos”, afirma a ministra Luiza Lopes, diretora do Departamento Consular e de Brasileiros no Exterior (…) (SANCHES, 2012).
As vítimas, geralmente, compartilham um mesmo tipo de situação familiar e econômica. São adultos que moram com os pais, estão desempregados ou em um subemprego. Essa situação gera acusações a respeito de despesas, cobranças de uma colaboração mais efetiva na renda familiar e extravasamento das tensões psicológicas pela procura frequente de ambientes de diversão, como boates e bares.
Tal situação econômica e familiar é responsável pelo surgimento de sonhos de uma mudança de vida. As futuras vítimas da escravidão se sentem capacitadas para uma vida melhor, sentem que o futuro lhes reserva uma oportunidade ideal, que surgirá como num passe de mágica. Seus anseios por uma vida melhor são o tema principal de suas conversas nos ambientes que frequentam. E então surge o traficante, que será considerado como o Mágico de Oz,[1] alguém que com sua varinha de condão transformará radicalmente o espantalho em ser humano.
O traficante[2] se aproxima para fazer amizade. Narra a vida difícil que tinha e como a situação mudou radicalmente quando foi trabalhar no estrangeiro. Antes era pobre e sofrido, a família o humilhava, e agora tem casa, carro e dinheiro para se divertir à vontade. Tem o respeito das pessoas e desperta paixões.
A vítima não desconfia desse relato de enriquecimento fácil e rápido; fica hipnotizada com a narrativa. Seu pensamento está fixo na possibilidade de realizar seu sonho. O traficante dá provas de que está falando a verdade. A vítima tem acesso ao carro e à casa do traficante. Pessoas do círculo de amizade do traficante confirmam a história, para que a vítima se certifique de que tudo o que foi contado é verdade.
4. O papel solidário e profético da comunidade de Jesus
Atualmente, a maioria dos cristãos ainda ignora a situação do tráfico humano ou lhe é indiferente. Hoje o tráfico de pessoas é tão perverso quanto no tempo em que as Américas estavam sendo colonizadas. Há suspeitas de que as receitas provenientes do tráfico humano superem as do comércio ilegal de armas e de que, em breve, esse crime ultrapassará o tráfico de drogas para chegar ao topo das atividades ilegais no mundo.
É tarefa dos cristãos, em nome de Jesus de Nazaré, que deu a própria vida na cruz para nos resgatar do pior tipo de escravidão que é o pecado, empenhar esforços para que os milhões de vítimas do tráfico sexual sejam libertados e as vítimas do tráfico de mão de obra voltem para junto de suas famílias.
Nos tempos bíblicos, a escravidão se instaurou por causa do pagamento de dívidas familiares. Hoje, a “necessidade” que gera a escravidão é muito mais ilusória e vil: a fabricação de produtos com baixo custo – para lucrar cada vez mais – e o sexo barato. A Bíblia se preocupa em promover práticas trabalhistas justas (1Tm 5,18) e relações sexuais saudáveis, sem exploração da pessoa humana (1Cor 7,2).
Apesar disso, há o silêncio da maioria dos cristãos que dizem praticar as Escrituras. Há conivência com a adoção ilegal, sem que se perguntem de onde a criança veio e se não teria sido raptada de seus pais. A maioria dos cristãos se cala quando se trata de multinacionais que usam mão de obra em condições de escravidão. Essa postura é uma antítese do cuidado bíblico para com os servos. Os cristãos, alicerçados na lei do amor (1Jo 3,16), são convocados a gastar suas energias em favor daqueles que estão escravizados; devem ajudar a levar vida plena, pois todos já foram libertados em Cristo.
E não podemos concluir este artigo sem uma palavra de esperança para as pessoas traficadas e para as famílias das vítimas. No fim da narrativa, José faz uma leitura positiva dos acontecimentos dolorosos pelos quais passou (Gn 50), Deus havia convertido o mal em grande bem. Esse final convida as famílias de hoje, mesmo quando há vítimas fatais, a ver a ação discreta de Deus como companhia nos sofrimentos, como presença eficaz ao lado de quem sofre, na certeza de que a vítima não foi abandonada por ele em nenhum momento.
O Senhor disse: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores, pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel (…). Agora, o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei ao Faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os filhos de Israel” (Ex 3,7-10).
Os verbos empregados indicam a presença constante de Deus junto ao povo: eu vi, eu ouvi, eu conheço as angústias dele, eu desci, eu te envio. Que os seguidores de Jesus não desconsiderem esse apelo do Senhor, que conta conosco para novamente tirar seu povo da escravidão e da mão do opressor.
BIBLIOGRAFIA
SANCHES, Adriana. Tráfico humano: histórias reais que inspiraram a novela Salve Jorge. Marie Claire, Rio de Janeiro, n. 260, nov. 2012. Disponível em: <http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2012/11/trafico-humano-historias-reais-que-inspiraram-novela-salve-jorgex.html>. Acesso em: 22. ago. 2013.
SEVERO, Julio. Tráfico sexual humano: a moderna escravidão que não foi abolida. Disponível em: <juliosevero.blogspot.com.br/2012/01/trafico-sexual-humano-moderna.html>. Acesso em: 9 jul. 2013.
STEVENS, R. Paul. A espiritualidade na prática: encontrando Deus nas coisas simples e comuns da vida. Viçosa: Ultimato, 2006.
[1] No romance homônimo de L. Frank Baum, os personagens procuram o falso mágico achando que ele vai realizar seus sonhos, mas, na verdade, os personagens já têm dentro de si mesmos aquilo que mais procuram e não o sabem, pois acham que sua realização pessoal está em algo extraordinário e fora de si.
[2] Homem, mulher ou homossexual.
Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).E-mail: [email protected]