Publicado em número 169 - (pp. 29-32)
Para um programa de pastoral urbana
Por Pe. Alberto Antoniazzi
Optamos por propor não princípios teológicos gerais, mas orientações pastorais práticas, indicando — quando possível — sua justificativa teológica. Naturalmente não pretendemos traçar um programa exaustivo, mas apenas indicar as grandes linhas para um debate sobre o objetivo proposto.
Distinguiremos três níveis da ação pastoral da Igreja, como fazem as Diretrizes gerais da ação pastoral da Igreja no Brasil para 1991-1994, e indicaremos no fim uma perspectiva de articulação dos mesmos níveis, que são de fato inter-relacionados entre si no plano objetivo, mesmo quando são subjetivamente vividos como distintos ou separados.
1. No nível da pessoa
A realidade urbana contemporânea exige que a pastoral leve em conta, antes de tudo, a emergência da subjetividade e valorize a participação da pessoa. Isso traz uma inversão de enfoque para a pastoral “tridentina”, centrada na “objetividade da fé” (na apresentação da “reta doutrina” e da “disciplina legítima”). Em outras palavras, a pastoral tradicional punha o acento sobre o “emissor” (logo, sobre a ação do pastor ou do clero); a pastoral urbana deverá colocar o acento sobre o “receptor” ou, ainda melhor, deverá substituir, a um processo de comunicação vertical ou unidirecional (pastor Þ fiéis), um diálogo ou uma intercomunicação (pastores Û fiéis).
A partir dessa indicação muito geral, podemos tentar explicitar algumas exigências específicas (de novo, sem a pretensão de esgotá-las nem de sistematizá-las).
Deve-se levar a sério a experiência religiosa subjetiva dos fiéis, mesmo que ela possa se manifestar em formas bastante afastadas dos conteúdos objetivos da experiência cristã. Deve-se levá-la a sério ao menos como busca, como procura, como ponto de partida. O fiel poderá apresentar uma exigência religiosa aparentemente superficial ou rígida. O pastor poderá sofrer a tentação de recusar ou corrigir logo tal exigência. Somente a paciência de um diálogo autenticamente pastoral poderá ajudar a fazer emergir o sentido profundo da busca religiosa do fiel e uma resposta, ao mesmo tempo acolhedora e crítica, do pastor.
Em particular, deve-se assinalar uma dificuldade frequente hoje no campo moral, onde a distância entre as diretrizes do Magistério eclesial e a consciência dos fiéis leigos é, em muitos casos, grande. Cabe ao pastor procurar explicitar o sentido das orientações da Igreja, mas também deixar claro o primado da consciência (nos termos da Declaração conciliar “Dignitatis Humanae”).
• A pastoral — em suas diversas dimensões (litúrgica, catequética, social…) — deve estar atenta à pessoa em sua integridade ou totalidade, evitando acentuar demasiadamente um aspecto em prejuízo dos outros. Por exemplo, a pastoral tridentina acentuou demasiadamente aspectos jurídicos e intelectuais, em prejuízo da dimensão simbólica e da dimensão afetiva. Isso deveria ser corrigido.
A atitude de abertura à pessoa pode se traduzir, antes de tudo, na disposição à acolhida e, na medida do possível, no acompanhamento e aconselhamento, sem, contudo, perder de vista o risco de certa “psicologização” da atividade pastoral.
• A pastoral deve oferecer ao indivíduo uma ajuda para estabelecer uma ligação entre sua fé e sua vida cotidiana. Trata-se de um desafio particularmente grave na sociedade moderna urbana, onde se acentuou a distância entre a fé e a “cultura” (o mundo vital das pessoas). O fenômeno deve ser atribuído, em parte, a um defeito da própria ação pastoral, que se afastou da vida cotidiana dos fiéis, por diversas razões históricas (catolicismo devocional, separando as práticas de piedade do comportamento ético; inexistência de uma espiritualidade laical, inclusive pelo excessivo clericalismo etc.). Por outro lado, o fenômeno é consequência da própria estruturação da vida moderna, que tende a separar as diversas esferas da atividade humana, afastando a religião e a ética da economia, da política, da ciência, das profissões…
• Uma das consequências relevantes dessa situação é a própria fragmentação da vida do indivíduo, que dificulta a definição de sua própria identidade pessoal. A isso se acrescenta a “crise das instituições” (família, escola, Estado, Igreja…), o que incide particularmente sobre a educação da pessoa. Abre-se aqui, para a pastoral, o desafio de contribuir para que a família seja, apesar das adversidades, lugar de “personalização” e de iniciação à fé cristã ou, alternativamente, de assumir um eficaz trabalho pedagógico de educação à fé, lá onde a família não pode ou não quer desempenhar seu papel.
• A pessoa, até aqui considerada abstratamente, não se realiza a não ser no relacionamento com outras pessoas. De que forma a ação pastoral deve promover esse relacionamento, levando em conta a realidade social da cidade, a crise das instituições, a fragmentação das relações? Como a comunidade eclesial, que na civilização tradicional se identificava com a paróquia, deve configurar-se concretamente no mundo urbano de hoje?
2. No nível do grupo
A proposta de formas comunitárias de vida cristã, no atual contexto urbano, deve levar em conta não apenas a estrutura social, mas também o pluralismo cultural e o diverso comportamento dos fiéis no plano religioso. A título de exemplo, pode-se lembrar aqui a tipologia sugerida por Marcelo C. de Azevedo, sj, distinguindo cinco “faixas” na população brasileira:
— os que seguem a religiosidade popular (basicamente católica, mas com elementos sincréticos);
— os que seguem o catolicismo tradicional, com prática sacramental, mas rejeitando as inovações ou desconfiando delas;
— os que entraram na “modernidade” e pertencem aos meios técnicos e de comunicação social mais avançados; geralmente não têm uma perspectiva religiosa marcante;
— os que procuram viver a fé cristã de modo crítico, mais através de um compromisso ético do que pelo culto;
— os que estão marginalizados religiosa e socialmente, vítimas da miséria e da violência.
A consideração de uma tipologia como essa (ou de outra semelhante) imediatamente impõe que se pense a ação pastoral segundo um modelo diversificado, pluralista.
Considerando especificamente a questão da “comunidade eclesial” ou das formas de agregação e pertença à Igreja, podemos discernir vários modelos, de fato já existentes, que se apresentam como resposta ao problema (a nosso ver, como respostas parciais, que podem coexistir e se completar mutuamente).
Há comunidades e movimentos que procuram orientar toda a vida dos seus membros (como, aliás, fazem as comunidades pentecostais clássicas, como a Assembleia de Deus ou a Congregação Cristã do Brasil). Às vezes, ao lado de atividades “religiosas”, oferecem serviços ou obras complementares (por exemplo: escola, lazer, pensionatos…). Essas comunidades e movimentos substituem, de algum modo, a sociedade tradicional e, especificamente, o sistema religioso tridentino. Geralmente comportam também uma recusa do mundo moderno e de sua ideologia individualista.
No outro extremo, situam-se aqueles católicos que, tendo aderido ou não à modernidade, de fato estão afastados da prática religiosa e de qualquer comunidade eclesial. No máximo, mantêm alguns contatos em raras ocasiões (batizados, casamentos, missa de sétimo dia…).
Entre os dois extremos, além de outros grupos específicos, está a grande massa dos praticantes, que reduzem seu contato com a comunidade eclesial à Missa dominical. Aliás, a própria paróquia urbana não oferece, à maioria, se não essa possibilidade de experiência religiosa comunitária. Diante do grande número desses católicos (cerca de 20% da população adulta), parece que a pastoral urbana está desafiada a:
— melhorar a qualidade das celebrações litúrgicas e das homilias dominicais (não há razão para desprezar essa única oportunidade de contato semanal, que já existe, tanto mais que ele se situa no centro da experiência religiosa cristã, na celebração eucarística, em que Palavra e Sacramento têm sua mais alta expressão);
— levar o maior número possível de católicos a acrescentar, à Missa dominical, ao menos um encontro semanal de reflexão e partilha da experiência de vida, em que com um pequeno grupo cada um possa confrontar a palavra do Evangelho com a existência cotidiana;
— transformar os encontros em “grupos de vivência”, com momentos de oração e solidariedade, sustentando de modo específico a experiência cristã de seus membros e articulando-os com a vida paroquial e com algum momento de comunicação com a vida da Igreja urbana ou diocesana.
Para os mais afastados, que, contudo, procuram ainda certos sacramentos, impõe-se uma revisão da pastoral sacramental, seja para tentar estabelecer, a partir dessa prática sacramental reduzida e intermitente, um laço mais sólido de comunhão com a comunidade eclesial, seja para superar a ameaçadora “secularização” da própria prática sacramental (casamentos reduzidos a “pompas” mundanas; primeiras comunhões como “festas de passagem”; missas de sétimo dia como ritos civis…).
A paróquia, lugar de encontro da maioria dos católicos e centro das celebrações litúrgicas, é questionada por todas essas exigências, no sentido de uma transformação profunda. Ela não deve apenas, de um lado, diversificar-se internamente, para abrir espaço a grupos, pequenas comunidades, movimentos, e, de outro lado, abrir-se externamente, dirigindo-se aos que estão afastados, assumindo seu papel de comunidade evangelizadora. Para ter condições de fazer isso, terá que passar por outras mudanças, como:
— redescobrir a capacidade de relacionar suas atividades institucionais e rotineiras com a fé dos paroquianos e a vida cotidiana que conduzem, dentro de uma espiritualidade laical, moderna, que valorize o empenho cristão do leigo nas “realidades terrestres”;
— reformular as relações pároco-fiéis (ou clero/lacaito) e incentivar a comunicação interpessoal, num autêntico diálogo, entre cristãos adultos e corresponsáveis, sem autoritarismo ou monopólio da palavra; aliás, a paróquia deve ser “comunidade de pessoas” e não predominantemente estrutura burocrática;
— restabelecer o equilíbrio e a unidade entre as diversas dimensões da vida cristã, superando a redução da paróquia quase exclusivamente à pastoral sacramental, em prejuízo da evangelização e, ainda mais, da vida fraterna, da caridade, do serviço, do empenho social.
3. Presença pública na cidade
O maior desafio da pastoral urbana está em tornar “pública” a presença da Igreja na cidade. A sociedade atual, como vimos, abre espaço para uma profissão de fé cristã ou uma prática religiosa no âmbito “privado” ou íntimo. Mas tende, como “sistema”, a eliminar toda referência à religião.
Essa tendência, contudo, não deixa de provocar uma reação, porque tende a rejeitar a ação do sujeito, o espaço da liberdade, tudo submetendo aos cegos mecanismos do dinheiro e do poder. O desafio, portanto, não só para os cristãos, é “reconstruir a cidade”. Reconstruir não apenas a sociedade ou a pessoa, mas a cidade enquanto mediação de nossa concepção de vida e da nossa prática. Não apenas reconstruir materialmente a cidade, redistribuindo o espaço, os serviços, a renda, para que todos tenham moradia, trabalho e saúde, mas também reconstruir a “cidade subjetiva”, o modo de pensar a si mesmos e a cultura, a solidariedade, o sentido das coisas e das relações humanas.
Diante de tal desafio, a Igreja tem uma responsabilidade, uma tarefa? Certamente sim, se se trata, como vimos, de reconstruir a “cidade subjetiva”, a cultura, o modo de viver. A fé cristã tem um lugar em tudo isso. Mais especificamente, o desafio moderno é superar a dicotomia entre “sistema” e “mundo vital” e reintroduzir a ética (a consideração das finalidades humanas, do sentido) nas atividades sistêmicas, autônomas, desligadas, sem referência a não ser a si mesmas (ao poder pelo poder, ao lucro pelo lucro, ao conhecimento pelo conhecimento).
Com que meios a Igreja pode expressar sua presença? A escolha dos meios supõe a escolha de uma estratégia ou, ao menos, de um estilo de presença. O pós-Concílio foi rico de debates teológicos a esse respeito. Houve um movimento, inspirado pelo Vaticano II, no sentido de um diálogo com o mundo ou mesmo de uma “encarnação” ou “inculturação” na modernidade. Muitos denunciaram os perigos do “mimetismo” ou até da idolatria do mundo, de ajoelhar-se diante dele (J. Maritain, L. Kolakowski). Mais recentemente, discutiu-se uma presença religiosa x presença política, ou ainda presença x mediação. Alguns enxergam uma superação da antinomia numa presença “leve”, de acompanhamento da sociedade (presença de proximidade e de diálogo, mas que não anula ou disfarça a “alteridade” da Igreja). Pessoalmente, gostaria de retomar o termo neotestamentário de “testemunho”, que deveria ser preferido à atitude de magistério” ou mesmo de anúncio.
O testemunho cristão supõe a solidariedade com os seres humanos e a nossa época, a começar pelos marginalizados e excluídos. A encarnação cristã não é triunfalista, mas kenótica. A Igreja é um “sinal” do Reino e do futuro da humanidade; não uma força política a mais.
Com essas premissas, ficará mais claro decidir os meios. O testemunho cristão exige “meios pobres”, não utilização ambígua do poder. Os monumentos, que há séculos expressaram a centralidade da Igreja na cidade e na sociedade, poderão deixar o lugar a outras expressões de presença: mais crítica, mais espiritual (no sentido forte da palavra: reveladora do Espírito de Cristo). Os movimentos de massa, as concentrações, as passeatas deverão ser expressão de comunhão e solidariedade, não de manipulação. O uso dos meios de comunicação de massa não deverá ter prioridade sobre a comunicação interpessoal, maior riqueza da Igreja também hoje. E quando houver recurso aos “mass media”, é preciso cuidar para que as tomadas de posição da Igreja não pareçam estéreis, pouco confiáveis e distantes dos reais interesses dos habitantes da cidade.
A presença pública da Igreja numa sociedade pluralista depende, antes de tudo, da capacidade dos cristãos (pastores e leigos) produzirem e praticarem uma ética adequada, nos diversos campos da sociedade complexa em que vivemos. Suporte dessa reflexão e dessa prática deveriam ser as “pastorais ambientais”, que não temos?
4. A articulação dos diversos níveis
Os três níveis da ação pastoral brevemente ilustrados estão inter-relacionados entre si. O desenvolvimento de um trará reflexos sobre os outros. Analogamente, o atraso num nível ameaça emperrar a ação nos outros também.
Como conceber, de forma positiva e fecunda, as relações entre os três? As numerosas sugestões recentes, apesar da diversidade das formulações, parecem todas apontar no mesmo sentido.
Sociólogos sugerem que, numa sociedade complexa, a Igreja deve se complexificar internamente. Ora, “complexidade indica que na sociedade contemporânea se reduziu o espaço dos comportamentos e das expectativas regulados pela necessidade ou pelo costume, e que — do outro lado — se amplia um espaço de indeterminação, ou seja, de liberdade, aberto à iniciativa de indivíduos e grupos. Complexidade é também a disponibilidade para a vida social de equivalências funcionais muito mais numerosas, de muito mais instrumentos de intervenção face aos desafios do ambiente, físico ou humano, que se torna sempre mais ativo, sempre mais heterogeneamente reativo em relação aos sistemas sociais. Complexidade é também crescimento de autonomias internas na organização social”.
Teólogos propõem que a Igreja adote um modelo “sinodal”, entendendo com isso um modo de organização em que diversos tipos de comunidades, grupos e movimentos caminham juntos e, embora conservando a sua fisionomia própria, encontram-se periodicamente para manifestar a recíproca comunhão em Cristo e reforçar a solidariedade de uns com os outros.
Em termos mais simples, pode-se dizer que a Igreja nas metrópoles do final do século XX ou início do século XXI deve, simultaneamente, incentivar a descentralização, a pluralidade, a subsidiariedade, e promover a solidariedade e a comunhão ao redor dos objetivos comuns e fundamentais, num espírito de serviço recíproco que facilite a intercomunicação, a troca, a circulação de informações e recursos.
Estruturas intermediárias e atuação dinâmica dos ministérios de coordenação e articulação tornarão efetivo e eficaz esse espírito.
Numa palavra: a Igreja, depois de séculos de ênfase sobre a instituição (ou sobre a instituição instituída, já feita), é desafiada a voltar a ser ação, movimento, instituição a ser permanentemente criada. “Ecclesia semper reformanda”, como a cidade de hoje e de amanhã. Uma Igreja sempre em construção…
Pe. Alberto Antoniazzi