Diante dos múltiplos desafios vividos nas cidades brasileiras hoje, quais as prioridades pastorais para este final de século, na ótica de um bispo profundamente sensível às necessidades de seu povo? (Vida Pastoral)
A cidade moderna, sobretudo a metrópole, é enorme produto da vitalidade e criatividade humanas. Convivemos, na cidade, com incrível mistura da vida com a morte. Valores e contravalores andam pelas calçadas, invadem lares e igrejas. Cresce a consciência do valor da pessoa humana em muitos grupos, enquanto outros se isolam e a dignidade da pessoa humana é esmagada. Em muitas janelas está plantada a bandeira da liberdade, da autonomia. Vivemos no coração dos conflitos, das mudanças rápidas nos comportamentos, maneira de pensar, de sentir… Os meios de comunicação social despejam, diariamente, toneladas de informações, notícias, comentários sobre a população, em sua maior parte indefesa, sem poder crítico para filtrar, comparar, verificar o que a imagem-som lhe impõe, arrombando a intimidade de suas casas. Pobres e ricos disputam a cidade marcada pela opulência de um lado e de outro pela fome, abandono, miséria. De maneira particular, o anseio de liberdade, a determinação de participar fazem parte da vida diária do habitante da cidade, do homem moderno.
No mundo religioso, a grande tendência é o individualismo e a busca de soluções imediatas para determinados problemas. Por outro lado, sente-se a fome de Deus, a procura de formas comunitárias de vida para defesa pessoal, familiar e expressão mais plena de vida.
Por último, para concluir estas breves e incompletas pinceladas que tentam descrever a cidade, podemos dizer que ela se caracteriza por borbulhante pluralismo; pelo cansaço advindo das condições de trabalho e consequente busca, necessidade, de lazer.
1. Evangelização nova
É neste carrossel de vida e morte, de liberdade-de-participação e opressão, de riqueza e miséria que somos, como Igreja de Jesus Cristo, chamados, consagrados, enviados para EVANGELIZAR.
A cidade é algo NOVO. É preciso entendermos que estamos diante da modernidade, com características próprias. Somente uma NOVA evangelização será capaz de comunicar VIDA, de ser captada pela cidade moderna.
Diante da complexidade da cidade que gera o homem moderno, o homem urbano, podemos assumir, na pastoral, três atitudes:
a) continuar do mesmo jeito de sempre, procurando dar respostas do século IV aos problemas do mundo, homem, moderno;
b) renovar aspectos de nossa pastoral, como, por exemplo, o canto nas assembleias litúrgicas, questões de vestes e coisas parecidas;
c) recriar, revolucionar, nossa pastoral em atitudes de verdadeira encarnação, olhando para o futuro com esperança e o presente sem temores.
No dia a dia, essas três atitudes convivem na pastoral urbana. É evidente que a Igreja Particular, através de séria pastoral de conjunto, precisa se encaminhar para a terceira atitude, sem o que estará colocando remendos novos em roupa velha, ou melhor, remendos velhos em vestes velhas, não realizando evangelização nova coisa alguma e caminhando à parte, ao lado, da história do homem moderno, urbano.
Não tenho receitas para prioridades pastorais. Essas devem ser encontradas, definidas, pela Assembleia de Igreja, convocada pelo bispo-seu-presbitério e Conselho de Pastoral. Tais prioridades nascem da realidade, buscadas no processo de planejamento participativo, envolvendo toda a Igreja, nas decisões.
Aqui, desejo tão somente apresentar, timidamente, algumas questões para debates, alguns sonhos que não mais querem ser sonhados isoladamente e, sim, com outros, para que possam ir se tornando realidade.
2. Prioridades, melhor, sonhos!
a) A Igreja precisa se deixar possuir pelo fenômeno da urbanização, da modernidade. Deixar-se penetrar, em sua globalidade, pela realidade da urbanização, modernidade. É urgente, nesse sentido, a máxima de santo Irineu: “O que não é assumido não é redimido”. Ela precisa armar sua tenda no meio da vida da cidade: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Estas memoráveis palavras do Vaticano II, na Gaudium et Spes precisam ser vida na vida da Igreja, na pastoral urbana: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1).
b) A Igreja não conseguirá realizara evangelização NOVA, tão querida por nosso amado papa João Paulo II, se não renascer de novo. Aos dois mil anos, é preciso nascer de novo, no deslumbramento por Jesus, pelo Ressuscitado, por sua Boa-Nova, pela causa do Reino. Novo e difícil parto realizado pela força do Espírito!
Os dois pontos que acabo de indicar são pré-requisitos para que possamos realizar pastoral urbana. Passo a discutir algumas questões, sugestões, que me parecem urgentes na pastoral urbana.
Antes, devo dizer que contemplo a cidade sob duplo aspecto:
a) sua face de intimidade: família, rua, prédio de apartamentos, vilas, bairros;
b) seus tentáculos que propriamente a constituem e a tornam, frequentemente, desumana: grandes meios de comunicação social, mundo do trabalho, da economia, políticas de saúde-educação-habitação, transportes coletivos…
Nas indicações que seguem, observo essas duas e misturadas faces da cidade, fazendo distinção sem dividir situações que, na verdade, repito, se interpenetram.
3. Intimidade da cidade
a) A primeira resposta pastoral aqui é a COMUNIDADE. A Igreja é a grande construtora de igrejas, do povo vivo de Deus! Pelo vigor da Palavra, somos chamados — bispo, presbíteros, religiosas(os), leigos — a formar comunidades, grupos de pessoas. Aqui, também, o pluralismo é urgente. Em geral, somos tremendamente sectários dentro da própria Igreja. A cidade é pluralista. Não sejamos estreitos na defesa de um só tipo de comunidade. Que as pessoas se agrupem, segundo as circunstâncias e possibilidades. Não temos o direito de enquadrar todas as pessoas em nossas formas. Que cessem, entre nós, as discussões que visam banir este ou aquele grupo! Uns defendem as CEBs, outros as atacam; aqueles são pró-movimentos, estes os excomungam! Pluralismo, minha gente! Que todos assumam o “objetivo geral da ação pastoral da Igreja”, as prioridades pastorais definidas em Assembleias (a que todos devem ser convocados) e que os caminhos sejam respeitados. Abaixo a mania de colocarmos pedras na estrada dos irmãos e esta mania maluca de pensarmos que os nossos caminhos são os únicos. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Ele nos diz, hoje: “Quem não é contra nós é a nosso favor” (Mc 9,40). Como exemplo a ser seguido pelas comunidades das mais diversas cores na cidade, o testemunho dos primeiros cristãos: “perseveravam na doutrina dos Apóstolos, nas reuniões em comum, na fração do pão e nas orações… todos os que criam estavam juntos e unidos e repartiam uns com os outros o que tinham…” (cf. At 2,42-47). Não estou falando aqui dos grupos meteoritos que não se unem aos outros, que se julgam os únicos salvos e santos, que não abraçam a pastoral de conjunto e o objetivo geral da pastoral da Igreja. Nem falo das Igrejas que não têm pastoral orgânica, nem prioridades, nem objetivo pastoral definido. Nesses casos, não estamos diante de pastoral urbana, nem de pastoral alguma.
Reporto-me, à esta altura, a textos de santo Inácio de Antioquia, aconselhando ao santo bispo Policarpo, em sua missão episcopal: “Que as reuniões sejam mais frequentes; convida os irmãos pelo nome. Não descuides das viúvas; depois de Deus, é a ti que cabe o encargo delas. Não desprezes os escravos-homens e senhoras” (Polic. IV, 1-2). Coisa alguma da vida comunitária de seu povo é estranha ao bispo. Para tanto, é necessário que o bispo, em sua caridade, abrace todo o povo. Inácio convida, para tanto, a Policarpo em termos admiráveis: “Justifica tua dignidade de bispo por uma solicitude total para com a carne e o espírito; preocupa-te com a união, pois nada melhor que ela. Suporta, com paciência, todos os irmãos, como Cristo suporta a ti; suporta-os a todos com caridade, como aliás estás fazendo. Dedica-te sem cessar à oração; pede uma sabedoria maior do que aquela que possuis… Se amas os bons discípulos, não tens mérito. Sobretudo os mais contaminados é que precisam ser submetidos com doçura… O momento atual reclama”.
b) E, por falar em comunidade, é urgente que o bispo faça comunidade com seu presbitério. A pastoral urbana exige também, o funcionamento efetivo dos Conselhos de Presbíteros, de Pastoral e de Administração.
c) De maneira especial, um dos grandes desafios na pastoral urbana reside na urgência da relativização de limites geográficos paroquiais. Quando limites nos separam, criam feudos, barreiras, dificultam a vida já tão complicada do povo, precisam ser ultrapassados. Vivência urgente: grupos, equipes de padres, com leigos, religiosas(os) assumindo, em conjunto, a evangelização de certa porção da cidade.
d) Em se tratando de metrópole, como é o caso de São Paulo, por exemplo, os bispos das diversas dioceses são chamados a verdadeiro colégio de irmãos, voltados para a comum evangelização da cidade. A Igreja Universal não tem ainda, a meu ver, resposta adequada para a presença episcopal na metrópole. Em tempos passados, por sugestão minha, a Assembleia Geral da CNBB aprovou a realização de encontros de bispos das grandes cidades brasileiras, para estudo sobre o governo episcopal a ser, nelas, estabelecido. Até o presente, temos soluções velhas que não resolvem novos problemas e até criam outros de ordem pastoral. É a mania de pretendermos que o homem moderno, o habitante da cidade, se conforme às nossas estruturas que foram boas no passado e que, hoje, são simplesmente caducas.
O Conselho Episcopal da Metrópole seria o primeiro responsável por pastoral de fato orgânica, voltada não só, nem prioritariamente, para os problemas das dioceses, mas às situações e complexidades da metrópole a ser evangelizada em e no seu conjunto.
e) Que tenhamos verdadeira fome e sede de comunhão na Igreja. Conversão urgente, permanente! Que nossa comunhão com o papa cresça! Que sejamos, adultos, vivendo em clima de confiança (há tanta desconfiança em nosso relacionamento mútuo com outras Igrejas, com a CNBB, Nunciatura e Cúria Romana). E claro que tal confiança deve também existir por parte da Nunciatura e Cúria Romana em relação a nossas Igrejas. Há necessidade de muita revisão, crescimento. Há muita coisa a ser mudada, melhorada, para diálogo adulto, transparente, fraterno, que nos leve, em conjunto, a enfrentar os problemas comuns e específicos de nossas cidades.
f) Nossa Igreja precisa conhecer verdadeira explosão ministerial. Neste campo, não obstante grandes e inegáveis avanços, nossa situação clama por novas e corajosas iniciativas. A pastoral urbana exige profunda revisão do ministério ordenado (bispos, padres e diáconos). Exige também que as leigas e os leigos, em função de seu batismo, possam exercer seu profetismo, sacerdócio, pastoreio em nossas comunidades, em grau e maneira diversos dos ministros ordenados, mas de forma adulta, participativa. O ministério ordenado, chamado a ser o ministério da síntese, passou a, ser, infelizmente, a síntese dos ministérios, na comunidade eclesial.
g) Que nossas Igrejas Particulares, Institutos Teológicos e Escolas de Fé se voltem à formação dos apóstolos leigos. Não iremos longe, se continuarmos com leigos que somente recebem a catequese para a primeira Eucaristia!
h) Que o bispo seja realmente o moderador da Liturgia em sua Igreja Particular. Sempre em comunhão com a CNBB e a Sé Apostólica, é claro! Questões relacionadas com a recepção dos sacramentos, particularmente batismo, crisma e matrimônio, devem ser revistas em profundidade. Basta citar os cursos de preparação e seus efeitos, para concluirmos que na pastoral urbana novos elementos devem ser descobertos neste campo.
i) Questões econômicas e administrativas sejam entregues a leigos. Voltemos aos Atos dos Apóstolos e constituamos diáconos para estes serviços na Igreja. Não tem sentido continuarmos, padres e bispos, amarrados às questões econômicas e administrativas de nossas igrejas. A Igreja, no Brasil, não tem coragem para enfrentar a difícil questão do dízimo.
j) Consideração especial deve merecer, na pastoral urbana, questões relacionadas à religiosidade popular, à piedade popular, na busca de novos símbolos e ritos.
4. Os “tentáculos” da cidade
Mons. Sérgio Conrado, ilustre coordenador do Secretariado Arquidiocesano de Pastoral de São Paulo, assim define a pastoral urbana: “É a ação global da Igreja Particular visando atingir, pela força do evangelho, não só territórios geográficos, mas critérios, valores, centros de decisão e modelos de vida da cidade que contrastam com o Plano da Salvação”.
“Saindo”, pois da “visão territorial”, aponto para algumas sugestões pastorais ao nível vasto, global, da cidade.
a) Urgência de formação de quadros, de agentes de pastoral, para marcar presença em ambientes específicos: meios de comunicação social, mundo do trabalho, da economia, da política, da arte…
A Igreja Particular deve montar Instituto de Formação para Leigos, a fim de capacitá-los para sua ação evangelizadora nos mais diversos e complexos ambientes. A Doutrina Social da Igreja deve ser particularmente conhecida e aprofundada. Investimos muito na construção de grandes templos na cidade. A prioridade agora é o corajoso investimento na formação dos construtores da civilização do amor; dos evangelizadores da família, do mundo do trabalho, da economia, das escolas, da política etc.
Achei decisivo o apelo que o grande Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo, dirigiu, não faz muito tempo, a numerosos grupos de presbíteros: “os que sentirem apelo para tal, deixem suas paróquias, para se dedicarem ao nível da evangelização da metrópole. Juntos, vamos conseguir meios, condições, para que o façam como ardorosos discípulos de Jesus”.
b) Marcar decisiva presença evangelizadora, missionária, “junto aos construtores da sociedade pluralista” (cf. Puebla 1.208 a 1.253), com atenção especial às pastorais do mundo do trabalho, das comunicações sociais, dos direitos humanos; à pastoral da fé e política, à pastoral da saúde-educação-moradia; para construção de cidade digna a todos os seus habitantes.
c) Mobilização da Igreja toda em pastoral que “defenda e promova os direitos dos pobres, marginalizados e oprimidos; dos velhos e crianças” (cf. Puebla 1.217). Uma Igreja sinal-instrumento de misericórdia; com fome e sede de justiça.
d) O mesmo se diga a respeito de pastoral voltada para os jovens, nos quais vemos “uma força transformadora da sociedade” (Puebla 1.218).
e) Valorizar a união, organização, articulação do povo: movimentos populares em sua ampla significação, movimentos de minorias, sindicatos, associações, formação de partidos políticos comprometidos com a construção de sociedade justa e fraterna.
f) Para que a evangelização da cidade possa ser levada avante, julgo urgente a formação de Conselho de Leigos que trabalhará organicamente com o Conselho de Pastoral. Como realizar esta articulação é tarefa que a caminhada irá evidenciar. Impossível, também, pensarmos na evangelização da cidade sem a mística da pastoral de conjunto, sem vivermos em constante processo de planejamento participativo, garantido por séria Coordenação Pastoral.
5. Concluindo
Percebo estar em verdadeiro matagal, em plena cidade. Muitas outras e melhores sugestões poderiam ser dadas. É preciso, sobretudo, sonharmos juntos. Não podemos nos satisfazer com coisas que deram certo no passado e hoje se manifestam vazias. (Atente-se, por exemplo, para o fato de os homens, na cidade, estarem se ausentando, cada vez mais, de nossas tradicionais formas comunitárias, de nossas celebrações litúrgicas. Eles estão numerosos nos campos de futebol e os jovens fazem longas filas para entrar, aos domingos, em locais dançantes. Os que têm carro vão para a praia. É preciso mudar, não há dúvida! Não eles somente, também nós!)
Somos, decididamente, convocados pelo Senhor da História para o grande mutirão evangelizador da cidade. Desafio semelhante feito por Jesus, aos Apóstolos, no começo: “Ide… eis que estou convosco todos os dias” (cf. Mt 28,19-20).
Que o Espírito nos faça cada vez mais santos, ardorosos discípulos de Jesus. Itinerantes! Anunciando, com vigor, a verdade plena sobre Jesus, a Igreja e o homem. Jamais amarrados a um templo, mesmo à Catedral, mas colocando nossa cátedra nos becos, nas ruas, nas famílias, nas escolas, nesta incansável procura dos abandonados de todas as condições, anunciando a todos o Senhor Jesus que nos liberta e nos salva. É o mutirão missionário de Deus integrado por esperançosos e alegres servidores da BOA-NOVA, para “que todos tenham vida e a tenham em plenitude” (Jo 10,10), em cidade NOVA porque habitável, justa e fraterna.
D. Angélico Sândalo Bernardino