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Publicado em março-abril de 2013 - ano 54 - número 289

Inculturação da fé cristã na religiosidade popular

Por Gilbraz Aragão*

Conhecer os valores, perspectivas e limites da fé popular, inculturar-se nela e aprofundar sua catequese colabora para o enfrentamento da dificuldade que sentimos em nossa Igreja católica, no sentido de articular, entre si e com a fé popular, as duas espécies de testemunho profético que podemos oferecer ao mundo: o de tendência mais sociopolítica e o de tendência mais mística.

1. Colocando o problema

Como é a cultura – e religiosidade – do povo brasileiro e quais os caminhos para dar continuidade à inculturação da fé cristã em seu meio? As religiosidades do nosso povo, engendradas de sincretismos com base católica, condensam a sua cultura oprimida. Elas formulam experiências de cunho místico e com uma exuberância de ritos, não obstante a estrutura singela de crença: a devoção de cada um a determinado santo, de quem se recebe proteção divina.

No cotidiano do pobre, confundem-se a vida do corpo e a vida do grupo, o trabalho manual e as crenças religiosas. O que caracteriza a cultura popular é o fato de ser muito grupal, mas resguardar um espaço privatizado para a fé, de valorizar tanto materialismo como animismo, possuindo uma visão cíclica da existência que remonta à vida rural e interpreta tudo pelos ciclos da natureza. De forma que o homem pobre, no interior ou no subúrbio, conhece o uso da matéria, mexe com a terra ou com instrumentos mecânicos que são seu meio de sobrevivência. Por isso ele é realista, prático, sabe até onde pode agir, mas, ao mesmo tempo, recorre a uma força superior que se desdobra em entidades carregadas de energia (os santos e espíritos).

Conjuga-se, assim, o realismo material com um universo mágico, ora benéfico, ora maléfico, cheio de azares e sortes, simpatias e maus-olhados, concretizando-se em imagens e fitas e amuletos.

Como evangelizar esse “espírito religioso” brasileiro? Sua base psicossocial é a matriz familiar e maternal e, para além das formas religiosas institucionais e dos santos católicos, ele pede sempre soluções extraordinárias e privatizadas para problemas individuais ou familiares, aposta no transcendente diante das ameaças que o aconchego vital do povo sofre da natureza e, principalmente, da sociedade dominante. Nossas comunidades cristãs devem se aproximar solidariamente dos pobres, descobrindo então essa sua fé, seu núcleo cultural de valores e sentidos, para aí mostrar a presença do Espírito de Deus, as “sementes do Verbo”, e depois ir catequizando o que vem de encontro ao mandamento cristão da fraternidade humana e da abertura mística para um Deus maior.

A felicidade e autonomia de um grupo humano são sempre uma conquista sua, mas podem encontrar um polo dinamizador da própria emancipação no diálogo missionário calcado em relações de simetria sociocultural e de respeito teológico. A fé popular em um Deus criador e sustentador da vida e do mundo, através dos seus espíritos e santos, é um alento à necessidade que o povo tem de recriar a existência, e cabe ao próprio povo cuidar e/ou transformar esse patrimônio religioso; mas a tradição cristã, com a sua teologia, pode ajudar, no processo de inculturação, a redimensionar a fé popular e desenvolver a sua antropologia teologal no sentido de uma maior integração entre as dimensões de matéria e espírito – tornando, assim, mais integrada a experiência de Deus e a vida mesma do povo.

Esse processo pode colaborar, ao mesmo tempo, para o enfrentamento da dificuldade que sentimos em nossa Igreja católica, no sentido de articular, entre si e com a fé popular, as duas espécies de testemunho profético que podemos oferecer ao mundo: o de tendência mais sociopolítica e o de tendência mais mística.

Frente à religiosidade tradicional teocêntrica (que aponta para seres intermediários, santos, na busca das bênçãos de um Deus – “Pai” – por vezes distante, para corpos alquebrados num “mundo perdido”), o cristianismo de renovação, mais antropocêntrico, cria Comunidades Carismáticas e Movimentos Espirituais que visam a uma experiência psicológica e íntima do Espírito de Deus na própria pessoa, atestando, pois, os dons da presença vivificante do Deus vivo no mundo. Por sua vez, o cristianismo de libertação, mais historiocêntrico, criou as Comunidades Eclesiais de Base e as Pastorais engajadas: elas criam uma espiritualidade em torno do seguimento do Senhor Jesus na práxis histórica libertária, questionando assim os senhores deste mundo injusto e militando gratuita e vigorosamente por um mundo melhor.

Essas tendências dos grupos de renovação e de libertação excluem-se mutuamente com frequência – quando o que deveriam fazer é interpelarem-se criativamente, para que a Igreja seja mais trinitária e consiga uma penetração mais evangélica na religiosidade popular.

2. Recuperando a história

Encontra-se por dentro das expressões religiosas populares a experiência de submissão a um Deus transcendente, criador e recriador da vida, cujo poder se manifesta nas “leis eternas” da natureza e da sociedade – que é vista como que naturalizada e se encontra igualmente sob a proteção e controle dos “santos”. Por outro lado, mostra-se também, e paradoxalmente, a reivindicação de dignidade por parte de um homem que clama “Deus é Pai, não é padrasto!”.

Como ajudar a fé popular a ativar os seus conteúdos teologais, a desenvolver os melhores sentidos cristãos que o Espírito plantou – através, apesar e para além da Igreja, certamente – ao longo da história do nosso povo? É certo que, a partir do catolicismo popular, o recurso mágico ao santo pode também ser seguimento da sua vida exemplar e libertadora, levando a uma experiência religiosa mais rica e salvífica, a uma abertura para um Deus maior e mais próximo, mais animador e esclarecedor do compromisso com a fraternidade humana cada vez mais ampla.

Como tocar o povo, que muitas vezes vem apenas querendo saber o que Deus tem para lhe dar, no sentido de perceber que pode muito mais é dar-se a Deus, comprometendo-se na realização do seu Governo sobre o mundo?

É possível passar da dependência simbólica do milagre extraordinário e “sobrenatural” que traz benefício do “santo” para a crença – simbolicamente ativada – na possibilidade de sermos igualmente “santos” e capazes de fazermos das nossas vidas um milagre, “mais-que-natural”, para a vida dos outros – pelo amor, que é (de) Deus! Mas antes de recuperar e desenvolver essa fé popular, dentro do processo de inculturação do cristianismo, vamos realizar um levantamento histórico-descritivo desse catolicismo sincretizado no meio do povo (cf. Azzi, 1978; Oliveira, 1985).

As irmandades e confrarias, voltadas para a celebração do culto e das devoções aos santos e almas, foram o principal suporte da religião no Brasil. Eram grupos de leigos, autônomos em sua atividade religiosa, que organizavam e abrilhantavam as festas nas quais o padre era convidado, para dizer missa e fazer “desobriga”.

Nos outros dias do ano, até fins do século XIX, as práticas religiosas eram de âmbito familiar ou pessoal: os oratórios domésticos e os velórios, os cruzeiros para mortos, as curas dos benzedores. Nesses momentos, as pessoas com mais qualificação dirigiam as celebrações e as romarias (e, às vezes, as bruxarias e blasfêmias), que os portugueses trouxeram da sua Idade Média.

E as correspondências simbólicas eram grandes entre o culto aos santos e o prestado às divindades intermediárias dos escravos africanos, além do que os indígenas também acreditavam na existência de espíritos, em um culto de santidade. De forma que esse conjunto de práticas e crenças luso-afro-brasileiras é ainda patrimônio de 10% a 20% dos católicos.

O catolicismo caracterizado pela paróquia com a missa dominical cheia de gente, pelas associações pias e festas do mês de maio e do padroeiro, pelas procissões e pelo vigário de batina, enfatizando a piedade e a moralidade, é um catolicismo implantado no Brasil a partir da segunda metade do século XIX.

A estratégia dos bispos reformadores e do seu clero era desvalorizar os leigos, principalmente substituindo as devoções aos santos tradicionais por outras que na Europa combatiam o liberalismo anticlerical: Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa Senhora Auxiliadora e o Sagrado Coração de Jesus. Daí surgiu o Apostolado da Oração, que estatutariamente coloca o vigário na diretoria, a exemplo das demais associações para leigos fundadas na época (Filhas de Maria, Liga Católica, Cruzada Eucarística). Até as antigas Irmandades foram passando para o controle paroquial, como as do Santíssimo; reduzindo-se à beneficência para os próprios membros, como as Ordens Terceiras; ou transformando-se em entidades mantenedoras, como as Irmandades de Misericórdia.

Ao mesmo tempo, festas como a da Coroação de Nossa Senhora vieram substituir as Folias de Reis e do Divino, Procissão das Almas e as Festas Juninas. Trazendo as imagens dos oratórios para os templos paroquiais, o clero tornou-se o principal festeiro, dirigindo os cantos, as novenas e rezas, além da administração. Para isso, os vigários contaram com a força das “missões populares” e com a ajuda de congregações, como os redentoristas e salesianos, que substituíram ermitães dos centros de romaria. Mas se tal “romanização” (cf. Teixeira, 1988, p. 53s) chegou a estabelecer novas estruturas eclesiásticas, contudo, as escolas, sacramentos paroquiais e associações piedosas só atingiram 10% a 20% por cento dos católicos.

A maioria da população, conservando elementos da tradição antiga, reinterpretou o catolicismo romanizado. Assim, entre 70% e 80% dos católicos brasileiros praticam sua religião de modo privatizado e/ou em comunidades de “cura divina”, muito inconstantes e abertas ao sincretismo. O núcleo é a devoção aos santos, não somente os canonizados, mas também as denominações locais e familiares (crianças assassinadas) e santos anônimos (almas vaqueiras ou benditas). Além do que, em cada imagem, ainda que do mesmo santo, há um santo diferente: carregado com outros poderes de intermediação para o Deus, criador, todo-poderoso.

As relações entre o fiel e os santos podem assumir uma modalidade devocional, através de uma aliança estabelecida pela consagração no batismo ou por um voto, em que o santo se apresenta como padrinho celeste e o fiel expressa sua devoção de acordo com as particularidades do santo (pão de Santo Antônio, velas para as almas, terço para Nossa Senhora). Outra relação é a contratual, onde o santo concede uma graça e o fiel paga uma promessa.

Em todo caso, a característica comum é o relacionamento direto e pessoal: o santo está ao alcance imediato da pessoa. Esse catolicismo privatizado, todavia, é suplementado pelas práticas sacramentais do catolicismo romano, como o batismo, primeira comunhão, casamento e os funerais, além das festas dos santos e da semana-santa. Ou então, ele recebe suporte nos pentecostalismos urbanos modernos, sintetizando toda a santidade em Jesus Cristo ou no seu Espírito, substituindo a promessa pelo “voto”, mas recorrendo às bênçãos e aos exorcismos, como antigamente.

A espiritualidade resultante, de todo modo, é milagrosa e penitencial, perdura mesmo na vida secularizada das periferias urbanas, para onde migra a maioria do povo, muito embora exista dificuldades em ser socializada entre as novas gerações. Ela continua marcada pela mística ibérica do século XVI, de forma que há um sentido forte da ação de Deus (Providência) em todos os momentos e um apreço pela humanidade empobrecida e humilhada – principalmente no presépio e na paixão – do santo maior, Cristo, que se liga à aceitação do sofrimento humano e da morte.

Quer dizer, encontra-se sentido para a morte e para a pobreza como manifestações do pecado e apelos à amizade. Mas existe também a valorização dos símbolos, do emotivo e afetivo na existência cotidiana de famílias desfeitas pelas migrações – donde as tantas devoções, principalmente à Virgem Maria. É uma linguagem que sacraliza a nostalgia maternal e antecipa a recriação da vida que se deseja e espera.

O catolicismo popular se espalhou sobretudo pelo interior e na periferia das grandes cidades. No fundo, é uma herança religiosa dos índios com seus animismos e superstições, dos portugueses com seu culto aos santos e às almas, dos africanos com suas divindades, orixás, e seu culto aos ancestrais. Essa religiosidade sincretiza uma recorrência ao sagrado sustentador do cosmos, a que todos acorrem por meio dos “santos” – sejam eles padroeiros, orixás, espíritos de luz, Espírito Santo carismático ou o Jesus pentecostal, Nossa Senhora da Conceição… (Oliveira, 1985, p. 56).

3. Refletindo teologicamente

O que configura uma cultura é a linha de descontinuidade em relação a outro conjunto de padrões de comportamentos e sentidos. Cultura é a maneira particular como, num povo, são estabelecidas relações com a natureza, entre as pessoas e com o divino. Entende-se por cultura a totalidade da vida de um povo, regida pelo conjunto de valores que o animam e de contravalores que o debilitam. Transmite-se pelas gerações, de modo que todos estamos afetados, e mesmo condicionados pela cultura. Mas a cultura não é imutável, ela se forma e deforma continuamente. Podemos definir cultura como:

O conjunto de sentidos e significados, de valores e padrões, incorporados e subjacente aos fenômenos perceptíveis de ação e comunicação da vida de um grupo ou sociedade concreta; conjunto que, consciente ou inconscientemente, é vivido e assumido pelo grupo, como expressão própria de sua realidade humana, e se transmite de geração em geração, conservado tal como foi recebido, ou transformado quer em forma pretendida, quer em forma efetiva, pelo próprio grupo (Azevedo, 1986, p. 336).

E uma dimensão central da cultura é a religião. Pois se a cultura acaba oferecendo uma rede de significados, uma visão global e coerente do mundo e da realidade, a religião propõe aquilo que declara ser mais importante e definitivo para a vida das pessoas e da sociedade. De maneira que estão sempre se relacionando, positiva ou conflitantemente, a cultura e a religião.

A ligação entre religião e cultura é intrínseca. Por conseguinte, o fenômeno da inculturação de uma nova religião deve ser considerado problemático, dado que a religião e a cultura não existem abstrata e isoladamente. Pelo contrário, da união de uma nova religião e uma velha cultura deveria nascer em realidade uma cultura nova e diversa (Pastor, 1982, p. 92).

Ocorre que muitas vezes a religião chega a depender absolutamente da cultura. Essa tendência de acomodação, aliás, que acaba comum a todo grupo religioso, explica por que muitas religiões têm se mostrado conservadoras através dos tempos, apesar da força reordenadora das suas intuições originais.

Numa religião cultural, um grupo humano reconhece a consagração da sua cultura. Esse grupo pede apenas à religião que ela ratifique, de modo solene e sagrado, os valores da cultura. Projeta-se na religião tudo aquilo que se deseja do projeto cultural. A religião torna-se então apenas um meio de absolutizar a cultura, com seus componentes econômicos e políticos (VVAA, 1979, p. 19).

A religião formaliza e socializa a experiência da fé de cada grupo. A fé envolve com símbolos sagrados uma aposta antropológica em valores e significações, oferecidos por um grupo de testemunhas. Enquanto as tradições religiosas transmitidas como cultura buscam primeiro o reconhecimento do sagrado como sobrenaturalmente eficaz e passam depois a adotar os valores implícitos nesse sagrado, a fé autêntica leva a aceitar valores humanos e a reconhecer depois seu sentido sagrado, absoluto.

A fé evangélica, por exemplo, não se fundamenta senão sobre a fraternidade humana inaugurada pelo testemunho da vida, morte e ressurreição de Jesus, reconhecido como o Senhor. O cerne da fé cristã está em aceitar que nesse evento, Jesus Cristo, o mistério de Deus irrompeu na história e provoca em cada momento o compromisso com a vida dos irmãos.

Contudo, não existe uma fé, um sistema de significações e valores, que não engendre um outro sistema, ideológico ou mais ou menos científico, para construir relações sociais de acordo com esses valores. Assim, a fé cristã também gera sempre uma dimensão religiosa e cultural, da qual deve se livrar o mais possível para vir a ser comunicada aos outros, nas suas culturas e religiões.

A fé religiosa, ao ser compartilhada, deve ser capaz de tomar de sua tradição os elementos que libertam, de maneira que a tradição cultural e religiosa do outro possa ir sendo pouco a pouco transformada, à medida que seus elementos forem devolvidos em forma de equações energéticas mais ricas: “Não precisamente dando-nos por herança respostas feitas, e sim assumindo a tradição como um processo em que se aprende a aprender” (Segundo, 1985, p. 432).

A condição básica para um processo de inculturação religiosa, portanto, é reconhecer a necessária separação e a mútua influência entre fé e cultura e, ao mesmo tempo, admitir que o cristianismo não possui outra identidade senão o Espírito de Jesus Cristo e o sinal do amor fraterno moldado sobre o amor de Cristo, a ponto de se morrer pelos outros. Tudo o mais deve ser abandonado em vista de uma nova inculturação – e não há pregação do evangelho sem inculturação, sem diálogo entre a fé dos evangelizadores e aquela da cultura destinatária.

Se a revelação vai se “desvelando” num processo histórico de interpretação, podemos concluir que a inculturação da fé irá trazer novos elementos para a mesma, irá enriquecê-la com intuições e práticas novas. Não só toda a revelação cristã é inculturada, mas o próprio processo de inculturação aciona o desdobramento da revelação. Apenas cumpre lembrar aqui que o sujeito da inculturação é a comunidade de fé que vive num mesmo contexto sociocultural suas experiências salvíficas e que cria para exprimi-las uma linguagem própria (Miranda, 2000, p. 22).

Visto isso, e como em uma sociedade complexa existe o conflito entre várias culturas pela tentativa de se impor uma, a da classe dominante, sobre as demais, então a evangelização das classes populares e dos grupos alternativos, da religiosidade popular, enfim, passa também, obrigatoriamente, pelo despojamento cultural da fé e pela reinvenção religiosa – e práxica – do evangelho, consoante as alteridades populares.

A Igreja se identifica frequentemente com a cultura ocidental ou com a cultura das elites ou dos privilegiados quando está ausente a inculturação ou, se está, não tem compromisso libertador. Não basta inculturar ou indigenizar a liturgia, catequese ou teologia. É necessário examinar os mecanismos de dominação para participar na vida do povo e em sua luta por uma ordem social justa. A melhor maneira de estimular o processo de inculturação é a participação no combate dos deserdados por sua libertação (Floristán, 1986, p. 240).

O que caracteriza fundamentalmente a experiência religiosa popular é a aposta na solidariedade de Deus, através dos seus tantos santos. Cabe à evangelização popular, portanto, valorizar a sabedoria das devoções e costumes do povo, em sua cultura intuitiva e plástica, mística e, paradoxalmente, realista; dando-lhe ao mesmo tempo a motivação evangélica da humanidade vivida por Jesus entre o “Menino Jesus” e o “Senhor Morto” – que já estão presentes na sua sensibilidade. E com isso deixar o povo ir ampliando a sua solidariedade para com próximo, as suas estruturas de vida e de religião.

No processo de inculturação da fé cristã na cultura e religiosidade do povo, no diálogo com a fé popular, há um aspecto delicado no tocante à antropologia religiosa – e daí na imagem de Deus – para o qual queremos chamar atenção e oferecer uma pista de enfrentamento e superação. Trata-se do dualismo entre matéria e espírito, da divisão entre corpo e alma no entendimento do ser humano, com as suas repercussões religiosas, teologais.

Ainda há pouco, em um ambulatório médico de periferia, notamos que se permitiu colocar um anúncio de certo “concorrente” nos seguintes termos:

Clínica da Alma: Médico responsável: Dr. Jesus Cristo; Graduação: Filho de Deus; Médico auxiliar: o Espírito Santo; Campo de atuação: o coração; Sua experiência: infalível; Sua especialidade: o impossível; Sala de cirurgia: o altar; Seu hospital: a Igreja; Horários de consulta: 24 horas por dia.[1]

O cartaz resume bem o senso popular religioso, onde, para além da verdadeira origem comum entre medicina e meditação, saúde e salvação, faz-se um reducionismo do campo religioso à cura da alma ou do “coração” – como se as questões de saúde pública não interessassem à missão religiosa, como se as condições materiais de sobrevivência não interessassem a Deus. Jesus Cristo, de fato, é muitas vezes tido como um médico espiritual que, com a assistência do Espírito Santo na qualidade de “médico auxiliar”, opera nos altares das igrejas, subvertendo de modo extraordinário a ordem natural em milagres objetivos, ou ao menos alterando a percepção subjetiva do coração sobre a realidade.

Quando se fala em “espírito” nesses meios, a ideia é de algo substancial, porém invisível, capaz de vida própria, em oposição à matéria e ao corpo. Essa atitude afeta a antropologia religiosa, visto que divide o ser humano, criado integralmente à imagem e à semelhança de Deus, numa entidade dupla, composta de corpo e alma, destinado a transcender o mundo material e, portanto, o corpo, na direção de um outro mundo, puramente espiritual. Acredita-se que, quando as pessoas morrem, o “espírito” ou alma sai do corpo e fica vagando por aí até encontrar o seu lugar, nem sempre definitivo, na economia “sobrenatural”.

Quando se aplica a essa metafísica popular o conceito cristão de salvação, a mensagem do evangelho fica reduzida à ordem “salva a tua alma”. Não entra a dimensão da sociedade e da política. Não existe geralmente nessa mística a percepção da unidade entre a forma material do humano e o divino e espiritual “hálito de vida”.

Mas as Escrituras nos mostram a pessoa de Jesus, o Cristo, na mais plena humanidade. Sua ressurreição não é a sobrevivência de um “espírito” ou de uma “alma”, mas a ressurreição do corpo. A referência à Igreja no Credo apostólico é feita precisamente no capítulo do Espírito Santo: “Crês no Espírito Santo, (presente) na santa Igreja para a ressurreição da carne?”. Quer dizer: o Espírito existe, especialmente na Igreja, para espiritualizar e ressuscitar a carne, o mundo, os nossos corpos. Ele não é contra a nossa humanidade e sim a favor da nossa divinização. E se os nossos corpos são para a ressurreição, deve haver neles as marcas da alegria criada por Deus.

A teologia da criação, aliás, pode ser o melhor fundamento para o avanço da práxis de inculturação da fé cristã, mormente no seio da religiosidade popular. Primeiro, somente uma correta e adequada teologia da criação pode desfazer o dualismo existente para muitos entre fé e cultura:

É fundamental que apareça desde o início a profunda relação entre essas duas realidades, devido à fonte comum de onde provêm. Grande parte das dificuldades que hoje experimentamos para aproximar fé e cultura tem sua origem numa noção ontológica da criação como realidade neutra, à qual se acrescenta a oferta salvífica de Deus. Evidentemente, carece tal visão de uma fundamentação bíblica (Miranda, 2000, p. 6).

Quer dizer, todas as culturas, também as culturas populares, e dentro delas as religiões do povo, dispõem de uma base comum que possibilita e desperta o encontro e o diálogo de fé. Deus criou – e cria! – gratuitamente o mundo para o seu amor, as criaturas todas existem e agem possibilitadas por Deus. A ação humana, que organiza cultura para defender e criar vida, é portanto mediação para a ação de Deus, de sorte que as culturas todas devem ser tomadas como locais da fala de Deus, da atuação do Espírito Santo, dos “sinais dos tempos”. Por mais desfigurada que esteja, a cultura tem a ver com o desejo de Deus, deve-se considerar nela uma Palavra de Deus.

Porém, a teologia da criação pode inspirar mais do que essa consideração positiva, de dimensão salvífica das culturas, que o evangelizador deve desenvolver. Ela pode ser também um caminho para a recuperação e o desenvolvimento da antropologia – e “metafísica” – do meio popular. A teologia da criação desenvolvida pela tradição cristã questiona e corrige na fé popular a sua imagem dualista do humano e a sua imagem de Deus “desconhecido” e distante.

A fé cristã oferece uma possibilidade de resposta à necessidade existencial de sentido para a vida (Forte, 1998, p. 11-64). Ela reconhece a origem da vida como mistério transcendente, colocado por um Outro, anterior e exterior ao mundo, e portanto causa da vida do mundo, fonte de inspiração e orientação para a defesa da integridade do mundo criado. A teologia da criação cristã nos impede de separar (dualismo) ou de misturar (monismo) o divino e o mundano, impede-nos de pessimismo diante do mundo e de presunção da razão, convidando-nos a ajardinar o mundo conforme os projetos (o “éden” bíblico) de Deus.

Sem confusão e sem separação, ama-se em Deus e Deus ama o mundo. Daí que a transcendência de Deus, enquanto revelado como amor, não implica em desprezo pelo mundo e pelo corpo, que ficam implicados no mistério da encarnação e da ressurreição.

Por fim, o ser de Deus não deve ser buscado em essência, porque ele se revela desde o ato criador, como liberdade amorosa. Podemos perceber a Deus nos atos criadores do mundo, nas criaturas do mundo, sobretudo no Cristo encarnado em Jesus – para recriar todas as coisas. De maneira que o mistério das criaturas remete ao mistério de Deus, porque em todas elas age o Espírito Santo de Deus. O Deus da revelação cristã não é essência abstrata, mas comunhão de pessoas, que se manifesta no mundo, em alteridade amorosa – mesmo quando  não é amado pelas criaturas, o que dá origem ao mal. Daí que interessa à fé cristã não somente as questões tidas como “espirituais”, da religião – e da nossa religião –, mas a dinâmica econômico-política, familiar e interpretativa da cultura como um todo – também das outras culturas.

4. Concluindo pastoralmente

A inculturação é um processo de abertura e emancipação da cultura pelo diálogo, que lhe permite continuar sendo ela mesma, mas em relação a outras. Nesse processo, tanto a cultura destinatária quanto a cultura do grupo de evangelizadores (re)descobrem o sentido profundo da oração, em nível individual ou comunitário, além do alcance humano – também ético e religioso – de problemas e desafios no plano social, político e econômico: “… Sobre o substrato mesmo oferecido pela cultura e numa evolução dialogal e dialética a partir dela mesma, ajuda-se a cultura a superar-se ou reorientar-se, numa fidelidade ao melhor de si mesma e numa encarnação e incorporação orgânica da mensagem evangélica” (Azevedo, 1986, p. 307).

O processo de inculturação pode ser descrito (Azevedo, 1986, p. 255-378) em quatro níveis. O ponto de partida é identificar a cultura, assumindo o que já é evangélico nela. Ou seja, os significados que defendem a vida humana e remetem à prática de Jesus Cristo. Outro nível é verificar o filão de pecado que emerge no mais profundo da cultura, questionando ou reorientando os valores incompatíveis com o Evangelho, numa linha coerente com a teleologia já implícita na cultura, com os fins que ela mesma se pautou. E existem basicamente dois critérios para distinguir o que é incompatível com o Evangelho: toda estrutura que destrói o homem e toda relação que o fecha à comunicação de Deus.

Um lance que vem a seguir é o da proclamação explícita da novidade da mensagem: as dimensões da História da Salvação que a cultura ainda não traz. Dá-se então acento ao anúncio de Jesus Cristo, com o que ele revela sobre o homem e sobre Deus, sobre a relação entre ambos. Por fim, a Igreja deve anunciar-se também a si mesma, aceitando o convite à coerência que lhe coloca a face do outro, acolhendo o surgimento de uma vivência cultural da fé – seja na ordem da prática social, da expressão simbólica ou da organização institucional. Surge assim a comunidade, fruto do anúncio e anunciadora.

Nos meios populares, aperfeiçoa-se essa metodologia de evangelização, pela inculturação libertadora da fé, principalmente através das Comunidades Eclesiais de Base e do seu jeito de fazer missão entre os pobres (cf. Azevedo, 1991; Brighenti, 1998). As Comunidades de Base representam a passagem do catolicismo popular privatizado para o catolicismo popular eclesial. As CEBs transformam o catolicismo popular, dando um sentido novo às suas festas e atitudes, projetando socialmente as exigências da fé. Ao mesmo tempo, são redescobertas antigas raízes do catolicismo popular, tipo a liderança leiga, a organização de base local e a ideia de que religião tem a ver com os movimentos sociais (cf. Comblin, 1980, p. 41s).

O projeto de inculturação popular da fé cristã já avançou bastante na dimensão interpessoal e na dimensão grupal, mas na dimensão massiva resta descompassado. A pastoral de massa cria eventos coletivos e emocionais, onde se reafirmam as convicções do povo, através de símbolos, atos ou gestos. Uma ação de massa supõe, por um lado, a conquista da confiança das pessoas, através do testemunho efetivo de afinidade de interesses; por outro lado, exige também o bom uso dos símbolos, pela atribuição de novos significados ou incorporação de novos elementos (Oliveira, 1988, p. 127).

O elemento central do catolicismo popular é a devoção aos santos. As CEBs abandonaram o culto privatizado aos santos protetores e enfatizaram a Bíblia numa perspectiva cristocêntrica, ligada ao engajamento social a partir dos grupos e comunidades. Precisam agora, como fermento, propor à massa católica uma devoção aos santos que se realize comunitariamente e que tenha como referência santos companheiros de caminhada ou companheiros de caminhada e luta pela vida em quem se reconhece santidade.

Se as CEBs não conseguirem apresentar ao povo um modelo de santidade encarnado e socialmente engajado e não conseguirem equilibrar a sua referência a Deus, incluindo e relacionando, junto ao seguimento de Jesus Cristo, a abertura contemplativa e afetiva ao Espírito Santo, então a religiosidade popular certamente ficará entregue a uma cooptação nada evangélica do seu potencial. A religião popular, ganhando na cidade um contorno mais subjetivista de busca sensível e sentimental de força vivificante (visto que o Deus objetivo da natureza resta aí mais distante), acaba presa fácil do projeto religioso que é ensaiado pelos shows de padres, nos quais tem se transformado a memória de Nosso Senhor.

Esse tipo de evangelização pelo marketing simplesmente, no qual o show, especialmente o televisivo, substitui a procissão de ontem, e figuras de padres cantores surgem como um frei Damião para a cidade, parece à primeira vista sinal de inculturação, de diálogo entre a Igreja e a religião popular na sua face urbana atual. De fato, aí, Deus parece manifestar-se nas emoções do povo: “Jesus está aqui e me ama, me salva, me reconduz à saúde e apaga todos os temores”. Porém, esse êxtase espiritual, também utilizado pelos neopentecostais, é o caso de uma forma religiosa dependente da cultura dominante, pós-moderna e neoliberal, que funciona sob medida para dominar o povo. Esses shows não questionam em nada nenhum aspecto do rosto tradicional na Igreja e da dominação social:

 

E o evangelho em tudo isso? E a evangelização? O evangelho é outra coisa. Porém, parece que já não é mais a prioridade. A prioridade é a experiência natural de Deus, a renovação do sentimento religioso, a redescoberta do prestígio sobrenatural do padre e do prestígio social da Igreja. O evangelho é outra coisa. Menciona-se com muita complacência na teoria, porém, na hora da prática, é outra coisa. De uma preocupação pelo evangelho estamos passando para uma preocupação pela religião natural, pela simples experiência religiosa (Comblin, 2001).

Referências

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TEIXEIRA, Faustino C. A gênese das CEBs no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1988.

VVAA. As culturas, a Igreja e a fé. São Paulo: Paulinas, 1979.



[1] Anotação de cartaz, de autor desconhecido, afixado no ambulatório médico da Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, abril de 2000.

Gilbraz Aragão*

* Doutor em Teologia pela PUC-RJ, mestre pela PUC-SP, graduado em Filosofia e Teologia e professor da Universidade Católica de Pernambuco, onde atua na área de Teologia e Ciências da Religião – cujo mestrado coordena.
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