Entrevista com D. José Rodrigues de Souza (Bispo de Juazeiro — BA)
VIDA PASTORAL (VP): D. José, apresente-nos a ficha de identidade de sua Diocese.
D. José: A Diocese de Juazeiro fica no Nordeste Brasileiro, no norte do Estado da Bahia, no Vale do São Francisco, no famigerado “Polígono das Secas”. A Diocese tem quase 60.000 quilômetros quadrados, com 359.000 habitantes, espalhados em 7 municípios: Juazeiro, Curaça, Casa Nova, Sento Sé, Remanso, Pilão Arcado e Campo Alegre de Lourdes. É uma das regiões mais secas, mais quentes e mais pobres do Brasil. Estamos saindo de 6 anos seguidos de seca.
VP: Fale-nos um pouco sobre o Nordeste.
D. José: O Nordeste tem 1.548.672 quilômetros quadrados, um quinto do território nacional, e tem 36 milhões de habitantes, um terço da população brasileira. O “Polígono das Secas” cobre uma área de 936.993 quilômetros quadrados, abrangendo quase todo o Nordeste e se estendendo até ao norte do Estado de Minas Gerais. O clima do “Polígono das Secas”, nas partes mais despidas de vegetação, é semiárido, nunca chegando a árido. Atravessa a área um enorme curso de água — o rio São Francisco — cuja bacia ocupa 389.900 quilômetros quadrados, ou quase a metade (44,3%) da área nordestina do “Polígono das Secas”. Existem amplas áreas propícias para irrigação, das quais só poucas estão sendo aproveitadas, e, ainda assim, de maneira que não favorece ao povo. Das 5 regiões brasileiras, o Nordeste é, certamente, a que conta com a maior quantidade de estudos, análises e interpretações.
VP: O que dizem esses estudos sobre a vida dos nordestinos?
D. José: “O povo nordestino está ameaçado de genocídio. A vida do povo, no Nordeste, está sendo destruída… no sertão, nos canaviais, no Vale do São Francisco, nas periferias urbanas”, assim começa, em tom dramático, o Documento da CNBB “Nordeste: desafio à missão da Igreja no Brasil”, publicado em 31/8/1984, e que recomendo vivamente aos leitores. Pela primeira vez, em 485 anos, os bispos do Brasil se debruçam sobre uma região de nossa Pátria, a mais sofrida e miserável, e se comprometem com ela.
VP: E os “doutores” concordam com o Documento da CNBB?
D. José: No ano passado, a Rede Globo lançou o projeto “Nordestinos: O Brasil em busca de soluções”, em convênio com as dez Universidades Federais do Nordeste. Pois bem, representantes das dez Universidades, com a equipe da TV Globo, em 50 dias de campo, percorreram 7.700 quilômetros e entrevistaram 6.320 pessoas de oito Estados do Nordeste. Ao final, produziram um documento contundente, intitulado “Relatório de viagem ao sertão”, de 26 páginas, em letras miúdas, que começa assim: “O quadro geral do Nordeste é de miséria absoluta. A miséria, a fome e o abandono foi o que mais impressionou a equipe do projeto ‘Nordestinos’”.
VP: Esse “Relatório” aponta as causas da miséria, da fome e do abandono dos nordestinos?
D. José: Convidado, participei, no Recife, nos dias 22 e 23 de agosto de 1984, do debate sobre esse projeto “Nordestinos”. O último capítulo do “Relatório de Viagem ao Sertão” provocou veemente discussão. Intitula-se “Exercício político e (in)justiça no sertão” e aponta as causas da situação do Nordeste. Prestem atenção os leitores:
Nos Municípios do sertão, a política se confunde com a politicagem e a justiça com a injustiça. A equipe impressionou-se com a dimensão quase ilimitada da corrupção, com a incompetência administrativa, com o estado de medo e de não participação política da população. A primeira observação da equipe é que existe um entrelaçamento estreito entre o poder político e o poder econômico. Os donos do poder político, quer exercendo cargos executivos ou legislativos, quer cargos técnicos, quer trabalhando nos bastidores, são exatamente aqueles que possuem grandes extensões de terra, monopolizando os recursos governamentais e bancários, decidindo a execução e a localização das obras. Nessas condições, famílias, grupos, facções são intencionalmente favorecidas, impedindo a implementação de uma economia social. A segunda observação é que a politicagem partidária, o favoritismo e o clientelismo invadem toda a vida dos municípios sertanejos: a saúde é “política”, a educação é “política”, a irrigação é “política”, o médico, a emergência, as distribuições de alimentos, são “políticos”, significando uma apropriação privada das verbas e dos recursos públicos. Aqui a corrupção grassa, impune (p. 25).
VP: Como se manifesta a fome na área da Diocese de Juazeiro?
D. José: A Assembleia Geral Diocesana, em fins de 1983, em plena seca, tinha por tema: “Como um povo faminto pode ser Igreja?” Levado o tema para a discussão das comunidades, elas chegaram a duas conclusões surpreendentes: as espécies de fome e as causas da fome.
VP: Quais as espécies de fome na Diocese de Juazeiro?
D. José: O povo respondeu: Fome de Pão, Fome de Saúde e Fome de Saber.
Fome de pão
“Fome” é conceito negativo. Denota a falta de alimento. Ao definirem a fome, os especialistas em nutrição falam da falta de calorias, proteínas, vitaminas e minerais. É a fome global e a fome parcial (Ricardo Abramovay. O que é fome. Brasiliense, 1983, pp. 11-16).
O sertanejo, que habitualmente passa fome, define a fome de modo mais realista: “É não ter o que comer e não saber quando, como e o que vai comer”. Veem os leitores que o sertanejo não fala de “pão”, alimento desconhecido no sertão, mas fala “do que comer”, que para ele é: feijão, farinha de mandioca, carne de bode, batata doce, abóbora. A ideia de que o “pão” é o alimento principal vem de arrivistas e colonizadores.
Fome de saúde
Mas fome é palavra amaldiçoada. O sertanejo tem pudor de dizer que passa fome ou que alguém morreu de fome. Ao saber da grande mortalidade infantil, no interior da Diocese, tenho perguntado às comunidades se as crianças morrem de fome. — “De fome, não, seu Bispo, elas morrem de sarampo, diarreia, febre…” Pelo registro de óbitos, não se morre de fome, na Diocese de Juazeiro, enquanto estou informado que, diariamente, morrem de fome duas crianças na periferia de Juazeiro. O que o sertanejo talvez não saiba é que o sarampo, a diarreia, a febre e outras doenças infecciosas são, na maior parte das vezes, consequência e não causa: consequência da falta de alimentação ou de alimentação insuficiente, na quantidade ou na qualidade. Uma comunidade, no entanto, teve a coragem de responder: “Nossa maior doença é a fome”.
Fome de saber
No interior da Diocese, o analfabetismo de adultos chega a 80%. Falta escola por toda a parte. As professoras leigas ganham entre Cr$ 5.000,00 e Cr$ 10.000,00 por mês. E 80% do ensino na Bahia está com as professoras leigas! Com facilidade, são demitidas: por razões políticas, por capricho de prepotentes ou pela simples razão de frequentarem as reuniões da comunidade. Com a chegada do rádio aos sertões, o sertanejo sente a falta de não saber ler, escrever, ter mais conhecimentos. O analfabeto, diz o povo, é um “caretado” (de “careta” ou “tapa” que se põe nos olhos dos animais para não se espantarem). O povo quer tirar a “careta”; quer ver as coisas; quer aumentar os conhecimentos a respeito do mundo, dos homens, de Deus.
VP: Para o povo quais as causas dessas 3 fomes?
D. José: Os seis anos seguidos de seca, se foram trágicos, levaram o povo a tomar consciência de sua situação. O povo foi descobrindo que a seca, antes de ser um fenômeno climático, é um fato político: “A seca para o pobre é chuva para o rico”. Quem tem a terra, tem a água. Quem tem a terra e a água, tem o poder político. O poder político se apoia no poder econômico. O poder político e o poder econômico têm sua ideologia, seus valores, sua cultura, que não são os do povo. O povo vai chegando, então, à conclusão de que é preciso mudar a política e a economia.
Essa descoberta do povo foi inserida no citado Documento da CNBB: “As causas da precariedade da situação do Nordeste devem ser procuradas, antes de mais nada, na história socioeconômico-política do Brasil, no contexto da economia mundial. Portanto, não é o resultado da fatalidade, do destino, da natureza, mas o resultado da ação ou omissão política dos homens e da forma através da qual se apropriam e usam dos recursos naturais e estabelecem relações entre si. Neste sentido, o seco e pobre Nordeste é, sobretudo, uma produção política” (Nordeste: Desafio à missão da Igreja no Brasil, 1984, n. 24).
VP: O que está fazendo o povo para vencer essas três espécies de fome?
D. José: Diante dessas três espécies de fome, diante de suas causas, poderosas como são a política e a economia, o povo vai entendendo que somente sua organização lhe dará condições de superá-las. Nossas comunidades gostam de cantar: “O mundo vai ser melhor quando o menor que padece acreditar no menor”. Daí surgiu o objetivo de nossa Pastoral: Fomentar o surgimento das “Comunidades Eclesiais, de Base” e acompanhar as que existem para que o povo possa reunir-se para:
1. Ouvir e refletir a Palavra de Deus;
2. Celebrar sua Fé: rezar, cantar, celebrar os Sacramentos, a Missa;
3. Discutir seus problemas à luz da Palavra de Deus e procurar, juntos, as saídas para os problemas.
VP: Que saídas o povo vai encontrando para o problema da fome?
D. José: Como cada pessoa tem sua vocação, que se manifesta na tendência e nas qualidades que a pessoa recebeu de Deus, assim as regiões têm sua vocação. A vocação do Nordeste é conviver com a seca. “Conviver” não no sentido de apenas “sobreviver”, mas no sentido de criar riquezas no Nordeste e fazê-las chegar às mãos da grande maioria do povo. Se o Nordeste tem coisas ruins, tem por outro lado coisas boas que o Sul não tem! O Nordeste é viável, sim, senhores! Daí estarem surgindo pequenos projetos comunitários, criados e assumidos pelo povo. É uma beleza!
VP: Fale-nos, então, desses projetos comunitários.
D. José: Vou falar, apenas, de quatro experiências:
Na periferia de Juazeiro
A cidade de Juazeiro está com 79.000 habitantes, entre os quais, uns 20.000 desempregados, umas 2.000 prostitutas e muitas crianças sem escola. Para sobreviver, o povo sentiu que era preciso organizar-se:
a) Casa dos Tuberculosos: A Diocese doou um terreno enorme para a construção da “Casa dos Tuberculosos”, com grande quintal. Já se vê: tuberculose é consequência da fome. Um grupo de jovens, meninos e meninas, desempregados, estão fazendo ali uma horta comunitária. Vão repartir com os tuberculosos os legumes que vão produzir. Depois vêm adultos dizer que os jovens não querem nada de sério, só querem fazer farra e tomar droga! Ali, na periferia de Juazeiró, os jovens estão trabalhando de enxada, ao sol quente.
b) Malhada da Areia: Fica à beira da estrada de Sobradinho. A Diocese tem, ali, um terreno que cedeu no sistema de “comodato” para uma horta comunitária. A Prefeitura providenciou a água, que é tomada da adutora da Caraíba Metais. Assim, mais de 100 famílias desempregadas, estão ali trabalhando, entre homens, mulheres e crianças, para produzir legumes para seu sustento e para vender na feira de Juazeiro, sem atravessadores.
No município de Juazeiro
Embora situadas às margens do São Francisco, por falta de consciência ou de incentivo, as comunidades vivem, em geral, em extrema pobreza. Com incentivo dos agentes de pastoral, começaram mais duas experiências:
a) Barrinha da Conceição: sete famílias negras, com pequena irrigação, começaram uma horta comunitária. Tendo obtido bom resultado, partiram para armazém comunitário, casa de farinha comunitária, carroça comunitária para transportar seus produtos; e compraram um pequeno barco para pesca comunitária. Próximos projetos: feira comunitária e cooperativa para construção de moradias, em substituição dos casebres, em que atualmente vivem.
b) Barrinha do Cambão: são 25 famílias que se organizaram e começaram um pequeno projeto de irrigação. No ano passado, abasteceram de milho verde as festas de São João, em Juazeiro, e venderam muitas abóboras na feira.
Sobradinho
Com o término das obras da Hidrelétrica, em 1981, ficaram desempregadas 10.000 pessoas, na fome e na miséria. Sentiram que, se não se organizassem, iriam morrer de fome. Surgiram, então, sete Associações de Agricultores, com estatutos próprios, devidamente registradas em cartório. Passaram a ocupar as terras desocupadas. Conseguiram a titulação dessas terras em nome das Associações. Com os títulos nas mãos, conseguiram empréstimos nos Bancos e, agora, estão pleiteando assistência técnica de órgãos do Governo, como Emater-BA e Embrapa. Isso não deixa de ser um tipo de “Reforma Agrária”, que o povo vai fazendo a seu modo, até que venha a grande Reforma Agrária, massiva e com a participação de todos os trabalhadores. — Outro dia, estive em Sobradinho e visitei um projeto comunitário da Associação do Alagadiço. Os lavradores estavam remexendo a terra para nova plantação. Por baixo dos fios de alta tensão da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), vi um catavento puxando água para a irrigação. Pensei comigo: eis uma das contradições do sistema capitalista! Junto da Hidrelétrica de Sobradinho, que produz 1.050 Mw de energia, os lavradores têm de usar catavento para irrigar suas roças porque não têm condições de pagar a energia elétrica!
Amalhador
Na visita pastoral ao município de Casa Nova, cheguei à Comunidade do Amalhador. O povo sentiu prazer em mostrar-me suas realizações comunitárias. Vejam só os leitores:
— Duas roças comunitárias que, no ano passado, em plena seca, produziram 80 sacos de feijão;
— Depósito comunitário, com 8 grandes vasos de zinco, fabricados por eles mesmos, onde guardam o feijão colhido na safra passada;
— Armazém comunitário que, em plena seca, além de manter a comunidade, sustentou 72 famílias de flagelados;
— Escola comunitária: depois de pedir, inutilmente, escola à Prefeitura, o povo se reuniu e construiu o prédio para a escola e está pagando uma professora para ensinar a seus filhos;
— Farmácia comunitária: com os remédios mais comuns para o povo;
— Barreiro comunitário: depois de pedir, inutilmente, à Prefeitura um tanque de água para os animais, os lavradores venderam bodes e porcos e se cotizaram, pagando 28 horas de trator para fazer esse barreiro para seus animais;
— Caixio comunitário: tanque de água, bastante grande, para uso humano, feito na frente de emergência, no ano passado;
— Caminhão comunitário: para transporte de pessoas e de seus produtos, o povo comprou um caminhão, que está pagando em prestações.
— Próximos projetos: já estão queimando barro para fazer tijolos e construir uma casa de farinha comunitária e, com as chuvas que caíram, há pouco, estão iniciando uma roça de 50 hectares de algaroba e mandioca para um criatório comunitário.
VP: Existem experiências populares de partilha em meio à pobreza?
D. José: Antes de tudo, o povo nordestino tem profundo sentido de partilha. Nos anos normais, por exemplo, nas festas dos padroeiros, vêm parentes, amigos e compadres de toda parte. As casas de família ficam superlotadas. O que existe na cozinha é partilhado por todos. Ninguém fica sem comer.
Nesses projetos comunitários, de que acabo de falar, tudo é repartido entre todos. Em Amalhador, Casa Nova, no ano passado, em plena seca, além de manter a comunidade, o armazém comunitário sustentou, gratuitamente, 72 famílias de flagelados. Nessas comunidades, não existem ricos nem pobres; todos são iguais. Penso que esse é o testemunho que essas comunidades podem dar às outras igrejas do Brasil.
VP: O que mais faz o povo para ir transformando a sociedade?
D. José: Primeiro pensamos que, quando houver milhares desses pequenos projetos comunitários, criados e assumidos pelo povo, a estrutura da sociedade está sendo mudada para uma forma mais fraterna e participativa. Achamos, no entanto, que isso não basta. Precisamos criar juntos um “projeto histórico” para nossa sociedade. Para nós, cristãos, é refazer o “Projeto de Deus” que Jesus veio anunciar (Frei Carlos Mesters. Um Projeto de Deus. Edições Paulinas, 1982). Daí surgiu, na Diocese, o Projeto de “Educação Política”.
VP: Em que consiste esse Projeto de Educação Política?
D. José: Já lançamos três volumes de nossa Cartilha Política:
1) Em 1981, lançamos Política: a luta de um Povo. Refletimos no sentido da palavra “Política”: luta pelo bem-comum e militância partidária. Mostramos como, na História do Brasil, cada vez que o povo tentou organizar-se, foi esmagado pelas elites, como no caso do Quilombo dos Palmares e Canudos. Discutimos os programas dos Partidos então existentes.
2) Pouco antes das eleições, em 1982, publicamos o 2º volume Como Votar. Era um alerta para os casuísmos da legislação eleitoral, que dificultavam, ao máximo, a livre manifestação da vontade popular. Não obstante os tropeços, houve um avanço da consciência política do povo de nossa região. Vimos a necessidade de dar um passo adiante. Enquanto o povo do Nordeste não tiver um mínimo de autonomia econômica, não terá condições de votar diferente, pois o poder político se apoia no poder econômico. Quer dizer: os que têm dinheiro são os que mandam.
3) Em 1984, pelas Edições Paulinas, lançamos o 3º volume O povo descobre a sociedade, que tem como subtítulo “Capitalismo X Socialismo”. Penso que atingimos o ponto nevrálgico da sociedade: a estrutura de classes e o modo de produção e distribuição dos bens.
VP: Como o povo está descobrindo a sociedade?
D. José: Com pouco texto e muitos desenhos, vamos refletindo assim:
1) Capitalismo: consiste na propriedade particular do capital, que é o conjunto dos meios de produção. O trabalhador vende sua força de trabalho por um preço que se chama “salário”. Surge o conflito fundamental: capital/trabalho. Na encíclica sobre o “Trabalho humano”, o Papa João Paulo II diz que “o trabalho humano é uma chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questão social” (n. 3).
b) Socialismo: reação contra os abusos do capitalismo, defende a propriedade coletiva dos meios de produção (terra, fábricas, indústrias). Existem vários tipos de socialismo, desde o democrático até o marxista e comunista.
Mostramos como, no capitalismo, existe liberdade, mas pouco de justiça social. É uma liberdade “formal”, quer dizer, só os que têm dinheiro, podem gozar da liberdade. Os pobres têm a liberdade de dormir debaixo de uma ponte, de mendigar ou de morrer de fome, como morreram de fome três milhões e meio de nordestinos, nos seis anos de seca que acabamos de atravessar.
No socialismo existe justiça social, melhor distribuição dos bens e rendas. Na China, por exemplo, com um bilhão de habitantes, foi banida a fome. Mas, no socialismo, existe pouca liberdade, principalmente é restringida a liberdade religiosa.
VP: Qual dos dois sistemas econômicos a Cartilha recomenda ao povo?
D. José: Não cabe aos agentes de pastoral recomendar sistemas políticos ou econômicos. No anseio de todos nós está a síntese difícil, mas não impossível, da liberdade com a justiça social. Pois bem, essa síntese o povo vai realizando nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), nas associações de bairros, nos sindicatos livres e autônomos, nos partidos políticos que lutam por uma nova sociedade e em outros tipos de organização popular. No entanto, não se trata, apenas, de conciliar a liberdade com a justiça social. Trata-se, antes de tudo, de comprometer-se com a “vida humana”, ameaçada tanto no capitalismo como no socialismo. Para nós, cristãos, a vida é o maior valor aqui na terra. Para salvar a vida é que veio Jesus Cristo: “Vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Por isso, a missão da Igreja é lutar pela vida, em todas as suas dimensões e em todos os níveis. Somos todos nós, juntos, que vamos criando a nova sociedade.
VP: Tem havido reações a esse trabalho da Diocese?
D. José: Por paradoxal que pareça, lutar pela vida provoca as forças da morte. Há quarenta anos, um nordestino abria o prefácio de seu livro Geografia da fome com estas palavras: “O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso”. Tão perigoso que Josué de Castro foi exilado do Brasil e morreu na França, há dez anos. A fome é tema perigoso porque, mais do que econômico, é tema político, como bem demonstrou Josué de Castro no segundo livro, tão contundente como o primeiro: Geopolítica da fome (1951). A fome é a mais poderosa arma de dominação de um homem sobre outro homem, de uma nação sobre outras nações. Por isso, na Diocese de Juazeiro, não estranhamos as reações violentas contra nosso trabalho pastoral. Só no ano passado, foram distribuídos em nossa região mais de dez panfletos e pasquins contra nós. Na Diocese, todos são pichados de “comunistas”: bispo, padres, freiras, agentes da pastoral leigos e, até, nossas humildes Comunidades Cristãs.
VP: O que espera da CF/85 e do 11º Congresso Eucarístico Nacional que será celebrado em Aparecida (SP)?
D. José: O lema da CF/85, bem como do 11º CEN em Aparecida, me parece muito oportuno: “Pão para quem tem fome”. Enquanto o Brasil se debate na maior crise econômica de sua História, milhões de brasileiros — homens, mulheres e principalmente crianças — se debatem com o fantasma da fome. É o maior escândalo para um país que se diz Cristão e, até, católico!
Outro dia, um irmão-bispo me chamava a atenção do perigo da insistência sobre o “social”, repetindo-me a palavra de Jesus: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). Na hora, fiquei embatucado. Depois cheguei à conclusão de que a palavra de Jesus é duplamente sábia: 1º) Quanto às ciências da nutrição, é sábia porque, além do pão, o homem precisa de proteínas, vitaminas e minerais. 2º) Quanto à teologia, é sábia porque o pão não é o único valor do homem. Para sua realização integral, o homem precisa de outros valores: da inteligência, da vontade, da sensibilidade, da ética, da moral, da religião e digamos logo: O homem sente uma profunda fome de Deus, como lembrou João Paulo II em Cardiff, em 2/6/1982. Mas todos esses valores supõem a vida! O Evangelho só é alegre notícia para os vivos. Para os mortos não há evangelização. O óbvio da Palavra de Jesus é que o homem precisa de pão, precisa viver, depois ou ao mesmo tempo, precisa de outros valores para sua plena realização.
Maria, a Mãe de Jesus, entendeu assim a palavra de Jesus, quando cantou no “Magnificat”: “Deus dará alimento aos famintos e despedirá os ricos de barriga vazia” (Lc 1,53).