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Publicado em número 183 - (pp. 2-4)

Espiritualidade e pastoral

Por D. Cândido Padin, OSB

Surge atualmente uma acentuada busca de espiritualidade, não só entre os cristãos, mas na própria sociedade, até independente de uma prática religiosa. Varia muito, evidentemente, o sentido que se dá ao que é considerado espiritualidade. Desde a busca de momentos de recolhimento, solidão e meditação, até o exercício sistematizado de certos “métodos” de espiritualidade. Dependendo do que cada um entende por espiritualidade, teremos grande diversidade quanto aos objetivos e resultados.

Toda essa variedade vigora não só entre pessoas desligadas de uma confissão religiosa, mas também entre cristãos e católicos. Na verdade, a experiência nos tem revelado nas atividades pastorais uma enorme carência de formação nos católicos considerados militantes e mesmo nos agentes de pastoral. Não seria exagero afirmar que um correto modo de considerar a espiritualidade esteja faltando mesmo em certa parte do nosso presbitério, dependendo da formação recebida nos Seminários.

Essa onda de busca de espiritualidade já está chegando a contagiar os chamados teólogos por profissão, alguns dos quais têm publicado algo sobre esse tema. Já é um bom sinal, pois anteriormente o mais habitual era considerarem-se dignos de estudo de um teólogo temas relacionados com a dogmática ou, quando muito, com a moral — pessoal ou social. Até mesmo os dedicados ao estudo da Sagrada Escritura preferiam chamar-se de biblistas, em lugar de teólogos. Ultima­mente temos visto até a denominação de especialistas em espiritualidade.

Bem sabemos que as orientações do Concílio Vaticano II reformularam acentuadamente o conceito de santidade para os membros da Igreja. Todos os cristãos, em qualquer condição de vida ou exercendo qualquer função na Igreja, gozam da mesma dignidade batismal e estão destinados a alcançar a perfeição da santidade, conforme nos ensina a Lumen Gentium (n. 40). É a palavra do Mestre: “Sede perfeitos assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). Palavra dirigida a todos os que desejam ser discípulos do Cristo e não apenas a algumas categorias ou classes de cristãos. O que pode variar são os caminhos e meios para ajudar na busca da santidade. Busca, que consiste essencialmente na nossa correspondência aos dons de Deus, que ele distribui a cada um segundo sua livre escolha.

Paulo apóstolo oferece-nos uma exposição bastante longa que nos ajuda a entender o significado dos “dons espirituais, para não ficarmos na ignorância”, acrescenta ele (1Cor 12,1ss). “Há diversidade de dons, mas um só Espírito. Os ministérios são diversos, mas um só é o Senhor”. E longamente vai descrevendo os inúmeros dons que “um e o mesmo Espírito distribui, repartindo a cada um como lhe apraz”. E conclui com a recomendação taxativa: “Aspirai aos dons superiores. Vou indicar-vos o caminho mais excelente de todos”. Temos, em seguida, um capítulo interior em que compõe um verdadeiro hino à excelência da caridade entendida como forma suprema de amor. Será que Paulo dirige essa recomendação às comunidades de contemplativos ou de assistência aos marginalizados? A nenhum grupo de vocacionados que se considerem com uma espiritualidade mais exigente e superior. Eis a quem ele dirige essa carta: “À Igreja de Deus que está em Corinto, aos fieis santificados em Jesus Cristo, chamados à santidade, juntamente com todos os que, em qualquer lugar que estejam, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo”.

Após o esplendor dos três primeiros séculos do cristianismo, em que as comunidades dos discípulos de Cristo não tinham outra espiritualidade senão a do Evangelho conhecido pela pregação e pelo modelo de vida dos apóstolos, a Igreja começa a conhecer os períodos de acomodação e de facilidades com o gozo das liberdades públicas. Livre do medo das perseguições e atraída pela tentação do esplendor das cortes reais e principescas, deixa-se contaminar pelo vírus das divisões de grupos que disputam predomínio em nome de fórmulas doutrinárias ou de “modelos” de espiritualidade. Surgem formas que, ou por serem um tanto românticas ou pelo exagero radical de asceses, desfiguram o senso e a figura humana de Jesus. As primeiras consequências desses desvios são notadas principalmente nas várias liturgias. Perde-se o vigor da simplicidade e pureza da celebração do Mistério da Ceia, centralizado inteiramente na pessoa do Cristo-oblação sacrifical, desvirtuado pela preferência de inúmeras devoçõezinhas subjetivas. Durante vários séculos a liturgia do domingo, que guardava sempre a tonalidade do dia pascal, foi substituída por devoções particulares perdendo as características primitivas dos vários ciclos do ano litúrgico.

Por outro lado, o surgimento das várias ordens e congregações religiosas, principalmente a partir do século décimo, criou também a tendência a caracterizar como suas “espiritualidades” certas formas de oração e de práticas de piedade, muitas vezes ligadas às preferências dos seus fundadores. Tais práticas foram criando verdadeiros fossos de separação entre famílias religiosas a pretexto de preservar o chamado “carisma” ou “espiritualidade” de cada uma. É evidente que tais formas, de viver a vida cristã estão distantes do fundamental sentido de comunhão das comunidades apostólicas.

Por todas essas razões, a renovação operada pelo Concílio procura restituir a toda a Igreja a vitalidade da vivência do Evangelho que floresceu na Igreja primitiva. Podemos dizer que o eixo da renovação, adaptando-se às diferentes realidades, deve impulsionar uma decidida volta às fontes do cristianismo. Especialmente aos membros dos institutos de vida consagrada dirige esta recomendação: “Cultivem os membros dos institutos, com zelo constante, o espírito de oração e a mesma oração, haurindo das puras fontes da espiritualidade cristã” (PC n. 6). O que não quer dizer que se devam abolir todas as práticas características de cada instituto, segundo as legítimas tradições. Até mesmo na prática do ecumenismo em contato com as Igrejas cristãs que se separaram da Igreja católica, recomenda o Concílio: “Resguardando a unidade nas coisas necessárias, todos na Igreja, segundo o munus dado a cada um, conservem a devida liberdade, tanto nas várias formas de vida espiritual e de disciplina, quanto na diversidade de ritos litúrgicos, e até mesmo na elaboração teológica da verdade revelada” (UR n. 4).

Conservar a liberdade não significa agir arbitrariamente, mas obedecer aos princípios fundamentais dentro da devida hierarquia de valores. Isso não elimina, pois, a legítima criatividade. Aliás, essa forma de entender a renovação já tem sido provada em algumas experiências de noviciado e juniorato intercongregacional, por meio de breves estágios de formação espiritual.

Na verdade, todas as reflexões querem chamar a atenção para um modo inadequado de tratar o tema da espiritualidade, faltando precisão no uso dos termos. Não se confunda espiritualidade com estilos e modos diversos de ordenar a vida de oração das pessoas. Adotando o estilo das alegorias usado nos Evangelhos, compararia essa questão com a preparação de um suculento prato de carne de frango. O substancial do prato permanece o mesmo: a carne de frango. São várias, porém, as formas de prepará-la; inclusive usando molhos de sabores distintos. Na vida espiritual o substancial é a assimilação da palavra de Deus e a celebração dos Mistérios da vida de Cristo. É a isso que o Concílio chama “haurir das puras fontes da espiritualidade cristã”.

A vivência dessas duas realidades deve constituir um alimento forte e insubstituível na formação de todo cristão. Contudo, essa formação deve adaptar-se às realidades em que o cristão vai viver. A reflexão da Sagrada Escritura, por exemplo, aprofundará mais os livros ou textos que se relacionam melhor com os problemas a serem enfrentados ou a função de cada um. É o que ocorre, especialmente, com os que se dedicam às atividades pastorais. Conforme o tipo de pastoral serão selecionados os textos mais adequados ou mesmo prolongados os estudos necessários.

As mesmas adaptações devem ser feitas na espiritualidade das celebrações litúrgicas. Assim, o envolvimento comunitário dos grupos deve criar uma espiritualidade de acolhida e de comunhão. Do mesmo modo a escolha de símbolos ou gestos estará relacionada com a composição da comunidade que celebra e as intenções especiais da própria celebração.

Creio, portanto, como conclusão, não ser recomendável a preocupação em criar “espiritualidades” especializadas para cada grupo na Igreja ou para cada tipo de função. Não vejo necessidade de falar de espiritualidade presbiteral, laical ou religiosa. Melhor seria falar em distintos processos de formação espiritual, pois os processos têm vários modos de ordenamento, conforme sua destinação.

Nosso objetivo, acompanhado de um forte desejo, é o de oferecer a todos os membros da Igreja oportunidades para alcançar uma vigorosa espiritualidade cristã.

D. Cândido Padin, OSB