A religião é acusada por muitos de ser instrumento de alienação. Para eles a alienação culmina com a ideia da esperança numa outra vida”, na crença de uma “vida no além”, de um “outro mundo”. A doutrina e a crença nessa “outra vida” tornaram-se tão absorventes que a preocupação de um certo número de cristãos deixou de ser esta vida para centrar-se quase que exclusivamente na “outra vida”. A religião por eles praticada era uma espécie de “contrato de seguro” para garantir a “vida no outro mundo”. Com a prática de certos ritos, de certas leis, de certas obrigações morais, tinha-se como garantida a posse ou o bilhete de ingresso na “outra vida”. Nosso artigo pretende examinar a questão que se estabelece entre a fé na vida eterna e o engajamento histórico do cristão, ou sua possível alienação.
I. CONCEPÇÃO MINIMALISTA DAS REALIDADES TERRENAS
Na história do cristianismo, surgiram tendências diversas e opostas quanto aos problemas que a esperança numa vida eterna com Deus põe. Estas tendências nascem a partir de um conceito que se tem de Deus e da concepção do mundo e do homem que cada um se faz. Uma teologia excessivamente centrada na verticalidade, na vida eterna, no sobrenatural, vai produzir uma visão caolha das realidades terrenas. Tal teologia vai insistir sobre a vanidade e a caducidade da vida e do mundo, negando-lhes qualquer valor positivo. Insistirá ainda que a fé não nos pode preparar, senão lateralmente, para a construção de um mundo melhor, onde vigore a justiça. Nem é a intenção da fé essa construção, visto que tudo é passageiro, fugaz, transitivo. Nem empolgará para a luta porque deve-se trabalhar para construir a cidade definitiva, a “Jerusalém do alto”. Vê-se que para tal teologia ou crença a história humana não tem por função adquirir um valor definitivo. A esperança numa vida eterna se situa num domínio supratemporal ao qual nosso tempo não pode contribuir com nada.
Segundo esta ótica, não há progresso histórico construtivo no sentido de uma verdadeira edificação do mundo. Essa concepção embala a esperança de uma recompensa celeste para aqueles que enchem suas vidas de sofrimentos e misérias. Nasce então uma doutrina que ensina a paciência como solução para todos os males, o conformismo fatalista à vontade de Deus (se ocorre essa desgraça em sua vida, se acontece esse mal, é porque Deus assim o quer). O cidadão do céu se aliena da cidade da terra. Entrega-se a um destino, a uma vontade cega, incompreensível, caprichosa de Deus. Essa entrega pode bem representar um analgésico que os espoliados se administram para ganhar um pouco de coragem, para encontrar uma razão de continuarem existindo. É um ópio. Produz um espiritualismo ineficiente, doentio. Não há gênese. Não há transformações. Nada amadurece na história, e para a história. A salvação é considerada como salvamento individualista, uma fuga para o “outro mundo” idealizado como a suprema felicidade, mas felicidade concebida como ausência de dor e de sofrimentos.
II. CONCEPÇÃO TRANSCENDENTALISTA DAS REALIDADES DA FÉ
Baseados em algumas passagens das Escrituras, teólogos e pregadores elaboraram uma doutrina da fé monótona, isto é, fé de uma única dimensão: a transcendental, a que diz respeito exclusivamente a Deus, ao Sagrado, ao Santo, ao “mundo do alto”. Vê-se de início, que é uma fé desencarnada, sem história. Para tal fé, tudo o que não se refere diretamente a Deus, à sua graça, à salvação, não tem valor, não tem consistência: não há “valores profanos”. Quando estes são aceitos, o são apenas como meios, meros instrumentos para se atingir os valores definitivos, eternos. Só estes últimos constam. Na origem de tal fé, está a preocupação da afirmação absoluta da grandeza de Deus, do seu primado incondicional. É verdade que não podemos negar essa grandeza e esse primado de Deus, mas pensamos que não é necessário diminuir o homem, destruir as realidades terrestres e humanas para que se possa ver e destacar a grandeza de Deus. A grandeza de Deus, sua soberanidade não implica na depreciação da criatura. Não vemos como a miséria do homem, sua impotência possam proclamar, de maneira eloquente, a soberania e magnitude de Deus. Não se pode afirmar que Deus é tudo sem se reconhecer que o homem é nada? A superioridade de Deus sobre o homem é concebida em termos de rivalidade. Será necessário optar entre Deus e o homem? Será o homem um rival de Deus?
Uma fé assim concebida projeta Deus para fora do mundo e da história. Torna-o estranho à vida comum e efêmera deste mundo. O homem se vê despojado de toda autonomia. O relacionamento entre Deus e o homem se estabelece na base do Senhor e do escravo. Nasce aí o “voluntarismo divino” (é assim porque Deus quer) que significa o fim do homem como criatura livre e responsável. Esvazia-se a consistência do ser homem.
A religião aqui consiste então em pôr, unicamente, o ponto de vista de Deus. Ela não pode fornecer nenhuma resposta aos problemas humanos, aos problemas da existência, senão indiretamente, de maneira acessória.
Sequioso de afirmar a soberanidade de Deus, a grandeza do sobrenatural, sua importância decisiva, se desprezará a natureza, suas possibilidades, suas finalidades próprias, suas necessidades internas. O dom de Deus parece tanto maior quanto mais pobre e fraco for o ser humano que o recebe. Este desprezo será fortificado pela constante catequese sobre a natureza corrompida pelo pecado original, pela inclinação radical ao mal, gerando um conceito decadente do homem e reduzindo o homem a uma ordem moral fechada, sufocante. A incapacidade do homem de realizar um ato bom, meritório sem a graça, torna-se uma depreciação total das obras, da iniciativa humana em relação à salvação.
III. OS VALORES PROFANOS E OS VALORES RELIGIOSOS
Neste horizonte, compreendemos com clareza o sentido da posição sobrenaturalista a respeito das relações entre valores religiosos e valores profanos, entre Igreja e Mundo, entre Sagrado e Profano.
Duas linhas de consequências se depreendem daí: o desprezo dos valores profanos e sua subordinação total à religião e a espiritualidade do cristão que deve se inspirar na negação do mundo.
De uma parte, os valores profanos são concebidos como perigosos, como ameaças ao homem desviando-o de seu fim verdadeiro. Nasce uma atitude negativista de recusa, de desprezo, de fuga do mundo. De outra parte, os valores profanos aparecem como instrumentos a serviço de finalidades espirituais, superiores. Devem ser ordenados aos fins sobrenaturais.
Nesta perspectiva, a maneira de conceber a missão da Igreja face ao mundo, é comandada pela mesma opção de base, que desencadeia um duplo movimento. De um lado, a Igreja assume uma atitude de defesa: o mundo é visto como o lugar dos valores que se opõem a Deus. Aí a Igreja tende a permanecer estranha aos seus problemas, absorvida por sua missão, que não é entendida como missão de humanizar, mas “evangelizar”. Os teólogos e pastores então colocam a questão se se deve primeiro promover o homem para depois evangelizar… De outro lado, a Igreja tem que estar presente no mundo, exercer uma função diretora na construção da cidade terrena, para subordiná-la, consagrá-la às finalidades mais nobres, mais elevadas, mais sobrenaturais, espirituais.
O integrismo cristão é uma concepção da personalidade, da civilização, da história, que recusa a vida profana, moral, cultural, social, uma finalidade própria, leis autônomas, para centrá-la sobre o princípio do primado de Deus e da religião. Esses elementos nos fornecem um sentido preciso ao projeto de uma civilização cristã, de um reino de Deus sobre a terra, de uma consagração do mundo, de uma instauração de todas as coisas, mas unicamente em função, em vista do “outro mundo”.
A religião exprime uma imagem estática do mundo que o homem é obrigado a aceitar. Sua atitude é muito mais a da docilidade que a de iniciativa. Uma rebelião contra a ordem estabelecida seria uma rebelião contra Deus. A concepção das relações entre a ação divina e a iniciativa humana se reflete também sobre a concepção das relações entre a autoridade e a liberdade.
IV. A TEOLOGIA DA ENCARNAÇÃO
O pensamento moderno é fortemente marcado pela sensibilidade aos problemas humanos. Isso é devido ao deslocamento do centro da atenção: seu centro não é mais nem o mundo nem Deus, mas o homem. Nasce então uma nova consciência dos poderes, dos direitos, dos deveres do homem. Isto implica numa análise mais crítica e mais séria de sua situação no mundo, donde o caráter mais vasto e violento do protesto contra as injustiças e alienações
É neste contexto que se valoriza cada vez mais uma teologia da encarnação constituindo uma tendência característica da teologia contemporânea. É uma teologia muito mais otimista em relação ao mundo, aos valores terrestres e existenciais. Em virtude da encarnação do Verbo divino, ela desenvolve e reconhece os valores e a consistência das realidades humanas. Tomando carne, assumindo a realidade humana em sua totalidade, o Verbo de Deus consagrou e elevou a humanidade. A humanidade é capaz de preparar eficazmente seu estado final devido às energias do Verbo de Deus depositadas nela. O mal persiste no mundo, mas já foi vencido. O sofrimento é seguido da ressurreição. A teologia da encarnação considera todos os valores deste mundo como assumidos, direta ou indiretamente, pelo Verbo feito carne. Atenta para a época presente, sobre a história atual, pois é nesta história que Cristo se inseriu. A atitude cristã deve ser um engajamento em todas as tarefas humanas e na promoção de todos os valores da civilização. Ela reconhece no progresso simplesmente humano uma carga positiva, uma contribuição à salvação da humanidade. Pela encarnação, tudo o que está no universo encontra-se incluído no domínio do reino de Deus. As civilizações, com seus valores de toda espécie, culturais, políticos, econômicos, técnicos, são destinadas no plano divino, a favorecer o reinado da obra da graça, a lhe servir de expansão.
Não se quer com isso dizer que os valores profanos são absolutos e que não oferecem uma expansão também às forças do mal. Daí nasce a ambiguidade do mundo e de toda existência fora de Deus. Contudo, decorre da teologia da encarnação um são otimismo na apreciação dos valores não “religiosos” e notadamente do progresso. O cristão não deve ignorar que estes valores e este progresso podem ser utilizados contra o homem, mas porque crê no triunfo de Cristo, vê-se encorajado a lutar, a se comprometer para que sejam valores reais canalizados na construção do homem novo, justo, fraterno, salvo. Esforça-se em promovê-los sabendo que são engajados no drama final e submetidos à lei da cruz, não visam a evolução do mundo como orientado para uma catástrofe, mas como destinado a ser assumido cada vez mais na vitória da graça até a uma transformação final onde o universo não fará mais do que exprimir esta vitória.
V. SEPARAÇÃO ENTRE ESPERANÇA E TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO
A esperança cristã acha-se hoje ameaçada pela tentação de separar conhecimento e amor a Deus e transformação da humanidade, tentação que leva a duas ilusões, que como sempre, olhadas superficialmente, parecem excluir-se uma à outra, mas que na realidade representam dois aspectos de um mesmo erro que renasce constantemente: Deus é concorrente do homem.
a) A ilusão espiritualista consiste em pretender conhecer e servir a Deus sem participar na transformação do mundo. Esta atitude é uma das causas daquilo a que os marxistas chamam alienação religiosa. Recusando-se a participar na promoção do homem, o cristão é levado a uma religião segundo a letra que mata, a um culto sem relação com a justiça a instaurar na vida social. E o homem já não se reconhece nela, a sua religião torna-se estranha à sua própria história. Essa fé, esse conhecimento e amor tornam-se irreais, fonte de evasão e de fantasias idealistas. Os carismas não são entendidos como tarefas a serem cumpridas.
b) A ilusão materialista é oposta à primeira. A transformação do mundo é estranha e até oposta ao conhecimento, ao amor de Deus. O combate pela justiça é estranho à fé, e à esperança. Realmente, o verdadeiro conhecimento de Deus, segundo os profetas e o Evangelho, não admite oposição entre Deus e o homem. O dinamismo da esperança uniu sempre e inseparavelmente Deus e o homem numa tarefa comum que é a de restaurar o universo, criar um mundo novo. O “céu” é tarefa comum entre Deus e o homem.
Numa obra de R. Garaudy (Reconquete de l’espoir. Grasset, 1971, pp. 135-136), lemos a seguinte passagem: “A esperança cristã é de certeza alienação sempre que o cristão considerar que, para se voltar para Deus, deve voltar as costas ao mundo, sempre que menosprezar ou desvalorizar a ação ou o combate histórico, terrestre, para transformar o mundo, em nome de um além que seria o único a ter valor, como se fosse possível entrar no ‘Reino de Deus’, sem passar pela transformação da terra dos homens. Semelhante atitude de desapego e de evasão é de fato alienante. Mas esta atitude pertence cada vez mais ao passado. São muitos os cristãos que hoje têm consciência de que o ‘outro mundo’ não exclui, pelo contrário, exige um mundo diferente, e que pensam, contra toda a concepção dualista do outro mundo e deste, que Deus não criou um universo já feito. A esperança marxista é de certeza alienação sempre que esquecer que ‘o homem é demasiado grande para se bastar a si mesmo’, segundo a expressão do padre Girardi. Quer dizer, sempre que ceder à ilusão de que pela mudança do sistema de propriedade ou até de um conjunto mais vasto de relações sociais, o ‘homem novo nascerá’ necessariamente”.
VI. ESPERANÇA E COMPROMISSO. CONCLUSÃO
É urgente a reviravolta em nosso modo de conceber, viver e expressar nossa esperança. Não podemos permitir que uma má formação, uma falsa noção da esperança e da “outra vida” nos aliene e nos desobrigue das tarefas deste mundo. A “outra vida” não pode esfriar a chama criadora que Deus acendeu em nós. O peso dos erros, dos fracassos, das ignorâncias não pode apagá-la. Nossa esperança deve fazer nascer uma nova vida, uma nova transformação do mundo, um novo céu e uma nova terra. Todo ato de amor deve ser um ato criador pelo qual surge a novidade no mundo. O cristão é chamado hoje a trazer em público a esperança de uma transfiguração do mundo. Sua esperança-comprometida-encarnada significa o fim deste mundo, deste mundo de ódio, de vingança, de exploração, de opressão, de mentiras, de inimizades, e o começo de um mundo novo. Não pode permitir que sua esperança, no decurso de sua existência, se esfrie e se aliene, perdendo o vigor criativo.
Quando os cristãos assumirem o compromisso de transformar esta terra, então já terá começado o fim. O fim da história não será um ato decretado exclusivamente por Deus, mas dependerá de um decreto do homem, também. Então, o fim deste mundo é fruto da liberdade. Não é tanto um fim, mas uma transformação na qual o homem é chamado a tomar parte ativa, criadora. Como o fim do paraíso dependeu de um ato de liberdade do homem, também a volta para ele, o reingresso, dependerá de uma atitude do homem, de seu esforço, de sua procura, de seu trabalho, de seu empenho.
Roque Frangiotti