Publicado em julho-agosto de 2013 - ano 54 - número 291
Ensino Religioso e catequese: um diálogo possível
Por Robson Stigar
Atualmente, o Ensino Religioso e a catequese não se identificam. Porém, tampouco se contrapõem. A questão está no enfoque sobre o objeto: o Ensino Religioso visa a educação da religiosidade, e a catequese, a educação da fé. O grande desafio é conscientizar a sociedade, pais, alunos e professores sobre a importância da disciplina de Ensino Religioso.
Introdução
O Ensino Religioso faz parte da educação desde quando o Brasil foi colonizado por Portugal e por muitas vezes foi considerado como catequese. Na história da educação brasileira, as instituições religiosas e o processo educativo sempre estiveram bem próximas em uma constante relação.
No Brasil, o Ensino Religioso é garantido pela constituição de 1988 e pela LDB n° 9394/96, como parte integrante do currículo das escolas de Ensino Fundamental, o que o caracteriza como uma disciplina, embora de matrícula facultativa. Porém, a finalidade da discussão acerca da finalidade do Ensino Religioso exige a reflexão das concepções que fundamentam a educação.
Atualmente, o Ensino Religioso e a catequese não se identificam. Porém, tampouco se contrapõem. A questão está no enfoque sobre o objeto: o Ensino Religioso visa a educação da religiosidade, e a catequese, a educação da fé. A catequese supõe a fé, inspirando-se no que é próprio da sua religião, com o objetivo de desenvolver a formação na fé.
1. Desafios
Um grande desafio atual tanto do Ensino Religioso como da catequese é buscar uma identidade própria. A CNBB apresenta no Diretório Geral de Catequese[1] (2006) que o Ensino Religioso é, e deve ser, distinto de catequese.
A situação do ERE é distinta nos vários Estados: de caráter antropológico (cultura religiosa), ecumênico, inter-religioso e confessional. João Paulo II, falando às Conferências Episcopais da Europa, afirma que os alunos “têm o direito de aprender, de modo verdadeiro e com certeza, a religião à qual pertencem. Não pode ser desatendido esse seu direito a conhecer mais profundamente a pessoa de Cristo e a totalidade do anúncio salvífico que Ele trouxe. O caráter confessional do ensino religioso escolar, realizado pela Igreja segundo modos e formas estabelecidas em cada país, é, portanto, uma garantia indispensável oferecida às famílias e aos alunos que escolhem tal ensino” (DGC 74). As dioceses empenhem-se na formação de profissionais para o exercício do ensino religioso escolar (DGC, 2006, p. 23).
A distinção entre catequese e Ensino Religioso aparece, pela primeira vez, na literatura da Igreja, num discurso do papa João Paulo II aos Sacerdotes de Roma. A CNBB, no documento Catequese renovada, orientações e conteúdo (1983), traz uma breve citação desse discurso, em que se afirma que o Ensino Religioso deve “caracterizar-se pela sua referência aos objetivos e critérios próprios da estrutura escolar”, e acrescenta que o Ensino Religioso nas escolas é distinto da catequese que é dada na comunidade paroquial.
Segundo o FONAPER (2000), o Ensino Religioso é atualmente “previsto, possível e necessário” e está situado em um novo paradigma, “[…] no contexto dos propósitos educacionais que marcaram o início do novo milênio”. “Por fim, há aqueles que acreditam e reconhecem o valor do Ensino Religioso” e postulam sua inclusão não só no Ensino Fundamental, como também em todo o ensino básico, desde a educação infantil (FONAPER, 2000, p. 8-9).
Outro desafio é a questão do proselitismo religioso. Devemos ter clara a questão da diversidade religiosa, bem como a questão da liberdade religiosa. A questão das diferenças culturais e religiosas está cada vez mais presente na escola e está implícita no processo educativo.
A discussão sobre a diferença evoca dois conceitos: o da inclusão e o da exclusão na escola. Esses dois movimentos na pesquisa educacional brasileira mostram que considerar as diferenças pode fazer a diferença para muitas pessoas, porque pode significar inclusão e exclusão.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais fazem referência ao dever da escola em garantir a igualdade, e assim manter o respeito entre aqueles que compõem a escola. Na busca por consolidar um ensino que garanta a democracia bem como a pluralidade cultural, os Parâmetros Curriculares Nacionais dizem que:
a escola deve ser local de aprendizagem de que as regras do espaço público democrático garantem a igualdade, do ponto de vista da cidadania, e ao mesmo tempo a diversidade, como direito. O trabalho com a Pluralidade Cultural se dá, assim, a cada instante, proporcionando que a escola coopere na formação e consolidação de uma cultura da paz, baseada na tolerância, no respeito aos direitos humanos universais, e da cidadania, compartilhada por todos os brasileiros. Esse aprendizado exige, sobretudo, a vivência desses princípios democráticos no interior de cada escola, no trabalho cotidiano de buscar a superação de todo e qualquer tipo de discriminação e exclusão social, valorizando cada indivíduo e todos os grupos que compõem a sociedade brasileira (PCNER, 1998, p. 98).
Assim, justifica-se a importância de a igualdade e o respeito às diferenças estarem presentes na escola. Se esses dois conceitos estiverem inseridos no processo educativo, estará garantida a inclusão de todos, bem como uma maior abertura para o diálogo.
A respeito da concepção do Ensino Religioso, está claro o que se entende por “ensino”, os problemas aparecem a partir do termo “religioso”, ou seja, a concepção de educação não é o problema e sim a concepção de religiosidade.
Devemos ter clara a questão da interdisciplinaridade, que deve existir, sim, mas o Ensino Religioso jamais poderá ser substituído por conteúdos interdisciplinares, como vem sendo proposto.
O Ensino Religioso deve estar inserido no currículo escolar juntamente com as 10 áreas de conhecimento, estabelecidas pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. Assim, ele é uma disciplina como todas as outras, sendo a única que está amparada por lei específica. Seu espaço está garantido nas escolas pela Constituição Federal e pelas constituições estaduais.
Segundo Brandenburg (2004), o Ensino Religioso é:
Um campo mediador da questão religiosa, da espiritualidade ou do saber religioso. Funciona como interlocutor entre o elemento religioso presente na realidade social e a realidade pedagógica própria da escola. […] Ensino Religioso escolar – confluência da realidade pedagógica com a religiosa. (BRANDENBURG, 2004, p. 58).
O que prejudica a compreensão do Ensino Religioso como disciplina é a falta de conhecimento, por parte da sociedade em geral, da nova lei. Carecemos da organização de um bom currículo e de profissionais qualificados para assumir a disciplina de Ensino Religioso.
Há, também, aqueles que não consideram importante que a disciplina de Ensino Religioso faça parte do currículo escolar, achando-a desnecessária. Aqueles que não percebem a importância do Ensino Religioso na escola pensam que o educando deveria estar dando mais atenção para as disciplinas tradicionais do currículo.
Ainda, existem aqueles setores da sociedade e educadores que veem a religião como algo desnecessário à formação da pessoa e acreditam que ela é prejudicial a essa formação. Para justificar essa afirmação, as pessoas descrentes da função da religião questionam-se: não estaria voltando, com o Ensino Religioso, o espírito de intolerância de imposição dogmática que imperava em estados teocráticos e que caracterizava grupos religiosos fundamentalistas? Não fica arranhada a salutar separação entre Igreja e Estado?
2. A relevância do Ensino Religioso e da catequese
Outro grande desafio é conscientizar a sociedade, pais, alunos e professores sobre a importância da disciplina de Ensino Religioso, bem como os seus objetivos e deliberações legais. Segundo Junqueira & Cardoso (2008), o termo Ensino Religioso permanece como tal desde a colonização do Brasil, porém é necessário distinguir que houve mudanças nesse componente curricular, o que, por sua vez, não ocorre com tanto sucesso.
Desde o período da monarquia brasileira nos currículos das escolas foi inserida a disciplina do ensino religioso. O projeto do Deputado geral Rui Barbosa (1882-1883) foi orientado que seria ensinado pelos ministros de culto no prédio da escola, depois do horário normal, o ensino religioso para as crianças que os pais solicitassem, podendo ocorrer essas aulas até três vezes por semana. Mais tarde, uma longa discussão surgirá polemizando sobre continuar ou não esta disciplina no espaço escolar (JUNQUEIRA, 2002).
Na Assembleia Constituinte de 1988, foi sugerida aos membros da Comissão de Educação na Câmara, ao próprio relator da nova Carta e aos juristas da Comissão Afonso Arinos (1986), que apresentaram o anteprojeto, que alterassem o nome para “Educação Religiosa”. Porém, para assegurar essa disciplina na Lei Maior, seria adequada expressão “Ensino Religioso”, por se tratar de algo relacionado ao sistema de ensino. A expressão “Educação Religiosa” não teria o caráter disciplinar como se propunha, ou seja, de disciplina integrante de um currículo.
Mesmo que o termo “religioso” evoque a relação com o sistema religioso, é importante ressaltar que a disciplina é parte do currículo escolar, portanto, uma questão dos sistemas de educação e não das instituições religiosas. Todo ensino visa a aprendizagem a ser adquirida pelo sujeito do processo, o aluno. Pergunta-se, então: ensinar e aprender o quê? Como? Quando? Para quê? (JUNQUEIRA, 2002).
Compreende-se que o conhecimento religioso é um patrimônio da humanidade e que, legalmente, institui-se na escola, pressupondo promover aos educandos oportunidade de se tornarem capazes de entender os movimentos específicos das diversas culturas, sendo o substantivo “religioso” um forte elemento de colaboração com a constituição do cidadão multiculturalista. Isso significa que requer ainda o entendimento e a reflexão no espaço escolar diante do reconhecimento da justiça e dos direitos de igualdade civil, social, cultural, político e econômico, bem como a valorização da diversidade daquilo que distingue os diferentes componentes culturais de elaboração histórico-cultural brasileira.
Por esse motivo que, para viver democraticamente em uma sociedade multicultural, como a brasileira, é preciso conhecer e respeitar as diferentes culturas e grupos que as constituem. Portanto, o papel do ensino religioso é, por meio da cultura, trazer ao grupo social e ao indivíduo uma leitura própria e uma compreensão do ser (da pessoa e como grupo social), do agir, do conviver e da responsabilidade de se relacionar com o Transcendente, com o Divino. O contrário a uma convivência democrática é marcado pelo preconceito, sendo um dos grandes desafios da escola. Cabe ao ambiente escolar conhecer e valorizar a trajetória particular dos grupos que compõem a sociedade, só assim poderá neutralizar atitudes preconceituosas. Nesse aspecto, ainda há muito para ser dito e realizado sobre essa área do conhecimento na formação do cidadão (JUNQUEIRA, 2002).
O Ensino Religioso, assim como as demais áreas de conhecimento que são discutidas ao longo do Ensino Fundamental, contribuem no desenvolvimento da capacidade de aprender. Têm como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo, assim como a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade, ou ainda, o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimento, habilidades e a formação de atitudes e valores. Finalmente, e não menos importante, no fortalecimento dos vínculos familiares, dos laços de solidariedade e de tolerância à diversidade cultural e religiosa em que se assenta a vida social.
Segundo Candido (2004), a escola tem um papel relevante para a formação do educando diante do respeito às culturas e tradições religiosas existentes no interior de cada sociedade, e o aluno, por sua vez, tem aulas que possam subsidiar esse entendimento.
No item sobre a razão de ser do ensino religioso, aparece a visão de educação escolar como aquela que tem historicamente possibilitado o acesso ao conhecimento produzido pela humanidade e o desenvolvimento do indivíduo como pessoa; um processo de desenvolvimento global da consciência e da comunicação entre educador e educando. À escola compete integrar, dentro de uma visão de totalidade, os vários níveis de conhecimento: o sensorial, o intuitivo, o afetivo, o racional e o religioso. A escola deve disponibilizar o conhecimento religioso, por ser patrimônio da humanidade, já que o substrato religioso colabora no aprofundamento para a autêntica cidadania (CANDIDO, 2004, p. 41).
Mas há que se perguntar: precisa-se mesmo do Ensino Religioso? É óbvio que uma criança não compreende os dogmas e princípios da religião. No entanto, ela possui o sentimento de religiosidade. Ao formar conexões com algumas questões fortes da vida, como: “por que isso acontece?”, “por que não?”, essa criança está refletindo sobre a espiritualidade e, dependendo dos pais e docentes, pode ou não ser dirigida por um canal positivo.
3. Superação do modelo confessional
Outro grande desafio que a disciplina de Ensino Religioso possui é a questão da superação do modelo confessional de Ensino Religioso, que é também conhecido como modelo catequético e/ou teológico.
O modelo catequético é organizado e se sustenta na confecionalidade. Assim, no entender do autor, em todos os momentos históricos após o surgimento do cristianismo “a catequese era vista como construção, como uma prática escolar voltada para a formação das ideias corretas em oposição às ideias falsas” (PASSOS, 2007, p. 57) (CNBB, Doc. 26, p. 8-13). Nesse modelo, os conteúdos ficam sob responsabilidade das igrejas, juntamente com a confecionalidade, e aparece o modelo pedagógico tradicional. Contudo, o risco dessa proposta é o proselitismo e a intolerância religiosa.
O modelo catequético possui: uma cosmovisão unirreligiosa, seu contexto político é aliança entre Igreja e Estado, possui como fonte os conteúdos doutrinais, seu método é a doutrinação, possui grande afinidade com a escola tradicional, seu objetivo é a expansão das igrejas, é de responsabilidade das confissões religiosas e por fim possui um grande risco de proselitismo e intolerância religiosa.
O modelo teológico possui uma cosmovisão plurirreligiosa, seu contexto político é a sociedade secular, sua fonte nasce da antropologia – teologia plural, seu método é a indução, possui grande afinidade com a escola nova, seu objetivo é a formação religiosa do cidadão, a responsabilidade são das confissões religiosas e, por fim, possui um grande risco como uma catequese disfarçada. Esse modelo teológico:
[…] é adotado porque se trata de uma concepção de ER que procura uma fundamentação para além da confecionalidade estrita, de forma a superar a prática catequética na busca de uma justificativa mais universal para a religião enquanto dimensão do ser humano e como um valor a ser educado (PASSOS, 2007, p. 60).
Essa cosmovisão representa uma nova forma de ver a religião, ou seja, supera a cosmovisão da cristandade medieval para buscar um argumento racional teológico. Esse modelo esteve presente nas escolas a partir do Concílio Vaticano II, usando como fundamento as modernas teologias.
Assim, a teologia age como pressuposto que sustenta a convicção dos agentes e a própria motivação da ação, e a missão de educar é afirmada como um valor sustentado por uma visão transcendente do ser humano. Por conseguinte, a filosofia serve de apoio racional à teologia para pensar o Ensino Religioso.
Considerações finais
Não resta dúvida da relevância da disciplina de Ensino Religioso e da catequese como instrumento de educação religioso e de fé. Porém, precisamos saber dividir a identidade de cada uma delas a fim de evitar proselitismo religioso e fundamentalismos. Não resta dúvida de que a escola é um espaço socializador e agregador de valores, porém também é um espaço democrático e de grande pluralismo religioso que deve ser respeitado tanto pelo Ensino Religioso como pela catequese.
Referências
ALBERICH, Emílio. A catequese na Igreja hoje. São Paulo: Ed. Salesiana, 1983.
AMALADOSS, Michael. Pela estrada da vida: prática do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1997.
BRANDENBURG, Laude Erandi. A integração pedagógica no Ensino Religioso. São Leopoldo: Sinodal, 2004.
CÂNDIDO, Viviane Cristina. O Ensino Religioso e suas fontes. Dissertação de Mestrado em Educação. São Paulo, UNINOVE, 2004.
CNBB. Diretório geral para a catequese. São Paulo: Paulinas, 2006.
FERNANDES, Maria Madalena. Afinal, o que é o ensino religioso? Sua identidade própria em contraste com a catequese. São Paulo: Paulus, 2000.
FIGUEIREDO, Anísia de Paulo. Ensino Religioso: perspectivas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 1994.
FONAPER. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Religioso. São Paulo: Ave Maria, 1997.
JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo. O processo de escolarização do Ensino Religioso no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.
PASSOS, João Décio. Ensino Religioso: construção de uma proposta. São Paulo: Paulinas, 2007.
VIESSER, Lizete. Um paradigma didático para o Ensino Religioso. Petrópolis: Vozes, 1994.
[1] O Diretório Nacional de Catequese é um esforço de adaptação à realidade do Brasil do Diretório Geral para a Catequese, de 1997. Nele, portanto, se inspira, fazendo, porém, as adaptações necessárias, que reflitam a caminhada da Igreja e o movimento catequético brasileiro desses últimos 50 anos. O documento da CNBB Catequese renovada, orientações e conteúdo, que, desde 1983, vem impulsionando a catequese no Brasil, continua sendo-lhe uma referência fundamental.
Robson Stigar
* Mestre em Ciências da Religião; licenciado em Ciências Religiosas e em Filosofia; bacharel em Teologia; especializado em Ensino Religioso, em Psicopedagogia e em Catequética.E-mail: [email protected].