Publicado em maio-junho de 2011 - ano 52 - número 278
A pastoral em novas perspectivas (I): introdução ao tema
Por Pe. Nicolau João Bakker, svd
1. INTRODUÇÃO
1.1. O alerta de Aparecida
O Documento de Aparecida apela a uma autêntica “conversão pastoral” (n. 366) e insiste em “reformas espirituais, pastorais e também institucionais” (n. 367). Com certeza os bispos da América Latina e do Caribe não pensaram apenas em mudanças cosméticas. Intuíram a necessidade de mudanças mais profundas. Em amplos setores da Igreja, especialmente entre os teólogos do continente, existe um sentimento generalizado de que “algo não vai bem” na práxis pastoral da Igreja, e isso não apenas pela “perda” – no Brasil somente! – de 1 milhão de católicos por ano. As estatísticas oficiais indicam que isso ocorreu em cada um dos últimos dez anos e tudo leva a crer que continuará sendo assim também nos próximos dez anos. Existe um problema de fundo. Muitos afirmam que a Igreja Católica está perdendo o trem da história. Outros, que falta uma bússola para indicar o rumo. Todos nos perguntamos: o que está acontecendo?
1.2. É hora de repensar a pastoral
Precisamos repensar nossa pastoral não apenas porque nosso mundo mudou e, querendo ou não, devemos nos adaptar a ele. Ocorre que a modernidade, ou pós-modernidade, como muitos preferem dizer, trouxe também consigo nova “cosmovisão”, e é esta que põe tudo de pernas para o ar. Poderíamos definir cosmovisão como “determinado modo de conceber Deus, o mundo e a própria existência individual e coletiva”. Ela é a geradora de sentido, e todas as pessoas, consciente ou inconscientemente, deixam-se guiar por ela. A cosmovisão é o chão do qual se alimentam nossas raízes mais profundas. Por isso, quando uma cosmovisão vai sendo substituída por outra, as pessoas entram em crise. Frequentemente, ouvimos dizer então: “Perdi meu eixo”; “Estamos sem rumo”; “O chão fugiu debaixo dos nossos pés”. Vivemos atualmente um momento desses. Momento que pode durar décadas. Após milênios de cosmovisão teológica e séculos de cosmovisão antropológica – já, já explicitaremos os termos –, estamos hoje acordando para uma nova cosmovisão: a ecológica.
1.3. Pastoral e centralidade da cosmovisão
Não há nada que mais diretamente afete a ação pastoral da Igreja do que a cosmovisão da época, e isso porque cada cosmovisão tem sua própria lógica. Analisando a história da humanidade – particularmente a história do mundo ocidental que definiu o modo de ser da Igreja –, podemos observar que ela se guiou, sucessivamente, por três lógicas distintas: a teo-lógica, a antropo-lógica e a eco-lógica. Não que a lógica de determinada fase esteja inteiramente excluída das outras. Elas se mesclam, mas o foco central da cosmovisão na primeira fase é Deus ou as divindades, na segunda é o próprio ser humano, especialmente a razão humana, e na terceira é o todo da “criação”.
1.4. As três fontes da ação pastoral
A pastoral, como ação concreta da Igreja, não surge do nada. Ela se alimenta, essencialmente, de três fontes, todas elas interligadas. Uma primeira fonte é a cosmovisão da época, e essa é básica, como já assinalamos.
Uma segunda fonte é a espiritualidade. Ninguém deixa de tê-la, ainda que seja o mais convicto dos ateus. Toda cosmovisão desperta, no mais íntimo das pessoas, algumas convicções fundamentais tidas como sagradas e inegociáveis. Ninguém deixa de ter seu pequeno “sacrário pessoal” a partir do qual constrói seus valores e seus julgamentos acerca do bem e do mal. Julgar e valorizar adequadamente essa espiritualidade nos parece da maior importância para reorientar nossa ação pastoral.
Uma terceira fonte que influi fortemente sobre a ação da Igreja é a perspectiva política. Tanto a cosmovisão que as pessoas têm quanto a espiritualidade que elas adotam definem, em boa parte, a sua visão de futuro. É inerente ao próprio ser humano buscar um futuro melhor. Ainda neste artigo veremos que essa busca por melhor qualidade de vida não é nem sequer monopólio do ser humano, pois se trata de característica intrínseca à própria vida. Especialmente nas religiões monoteístas, a profunda crença humana num futuro melhor a ser conquistado desenvolveu poderoso profetismo, sempre pronto a superar barreiras históricas e apontar para novos horizontes. Jesus, a seu modo e numa linguagem adaptada à sua época, falou do reino de Deus sempre presente e sempre a conquistar. A teologia da libertação, do lado de cá dos grandes oceanos, e a teologia política, do lado de lá, gastaram rios de tinta para ressaltar, numa linguagem mais adaptada ao mundo secularizado, o compromisso político de cada cristão e cada cristã. É simplesmente impossível readequar a ação pastoral da Igreja sem levar em conta essa perspectiva política, tão essencial ao próprio cristianismo.
1.5. Sobre pastoral e caixa de marimbondo
Falar de pastoral é empreendimento arriscado. Na verdade, significa colocar a mão dentro de uma caixa de marimbondo. As pessoas aceitam mais facilmente mudar de ideia do que mudar de prática, especialmente quando essa prática tem a ver com o sacrário pessoal acima lembrado. Não raro encontramos pessoas com ideias novas e práticas antigas. Não é impossível a teologia renovar-se durante décadas e a prática pastoral, assim mesmo, temporariamente, dar marcha à ré. Não que seja possível impedir o avanço da história, mas é preciso compreender que a ação pastoral concreta tem a ver com raízes culturais profundas que – exatamente por causa de sua preciosidade – tardam a mudar. Algumas mudanças podem levar décadas, outras levarão séculos ou até milênios. Mais adiante, veremos um pouco melhor por que isso acontece.
Neste primeiro artigo, por falta de espaço, não vamos poder entrar muito no campo prático da ação pastoral. Vamos fazê-lo com muito carinho em artigos posteriores.[1] Antes disso, é indispensável termos uma imagem mais nítida da cosmovisão ecológica, que hoje vem se impondo com força crescente. Esse objetivo, por sua vez, não é possível alcançar sem confrontá-la com as cosmovisões teológica e antropológica, que, em parte, ainda nos dominam e, em certo sentido, estão sendo atropeladas por ela. Vejamos isso mais de perto.
2. A COSMOVISÃO TEOLÓGICA
2.1. Como entendê-la?
Podemos definir a cosmovisão teológica como a “concepção segundo a qual Deus, ou o mundo das divindades, é a explicação de todas as coisas e de todos os eventos”. Deus não está apenas na origem da matéria, mas permeia a matéria, e, de uma maneira ou de outra, é esse mundo do sagrado que determina a sorte e o destino do ser humano. Como nada escapa a esse modo de pensar, podemos dizer que, nessa cosmovisão, a única lógica existente é a teológica.
2.2. A longa fase teo-lógica
A cosmovisão teológica é comum a quase todas as culturas humanas não ou pouco escolarizadas. Ela acompanha o Homo sapiens desde a sua origem, há mais de cem mil anos. Vemo-la claramente presente quando se desenvolve, no nosso mundo ocidental, a tradição filosófica grega, seis séculos antes de Cristo. Especialmente na assim chamada “fase pré-socrática”, o mundo material é visto como que impregnado de forças espirituais.
Com os filósofos gregos pós-socráticos, essa mesma concepção teológica adquire feição inteiramente nova e surge uma separação radical entre o mundo do sagrado e o mundo do profano. O mundo do sagrado não é material, mas espiritual. É o mundo da perfeição, indivisível, eterno, indeterminado. O mundo do profano é o mundo material, imperfeito, corruptível, divisível, passageiro e determinado. O ser humano passa a ser definido como um “ser racional”, com a razão fazendo parte do mundo espiritual. Assim como as esferas celestes governam as esferas terrestres, assim também uma alma imortal governa agora um corpo mortal. Por sua condição divina, a razão humana será idolatrada pelos gregos, e apenas uma minoria com suficiente liberdade para cultivá-la fará parte da tão propalada, mas falsamente denominada, democracia dos “cidadãos de Atenas”.
A cosmovisão teo-lógica criará raízes imensamente profundas no cristianismo, particularmente no cristianismo ocidental. Jesus, provavelmente, não teve contato com a filosofia grega, mas nem por isso sua proposta é menos teo-lógica. Em oposição à interpretação legalista, sacrifical/sacerdotal, muito forte no judaísmo de sua época, Jesus reassume a experiência religiosa original dos judeus, a linha profética em que reina, efetivamente, o Deus da libertação e da justiça, o Deus-Javé dos pobres, que “vê a opressão de seu povo” (Ex 3,7). Reino realizável apenas mediante a prática incondicional de um “amor samaritano” que supera qualquer barreira religiosa, institucional, étnica ou de classes.
As primeiras comunidades cristãs – sobretudo depois de sua expulsão das sinagogas – codificam a mensagem e o movimento de Jesus numa linguagem que, forçosamente, mistura a herança judaica com o ideário greco-romano. À grande pergunta de sempre: “Quem era esse Jesus?”, os Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451) respondem, dando destaque à sua divindade, em Éfeso, e à sua humanidade, em Calcedônia. A linguagem típica da filosofia grega – abstrata, essencialista, universalista e dogmática – aí se impõe claramente, e o Jesus real da história fica na penumbra. Surgem duas naturezas numa única pessoa, uma divina e outra humana, uma dualidade estranha que a teologia, por mais importante que tenha sido na época, levará quase 2 mil anos para superar.
Na segunda fase do cristianismo, a prática cristã é profundamente marcada por santo Agostinho (†430). Unindo a cosmovisão teo-lógica grega com a proposta de Jesus do reino de Deus, enxerga a “Cidade de Deus” governando a “Cidade dos Homens”. Na Cidade dos Homens vive um ser humano “decaído”, uma vez que o pecado de Adão é transmitido hereditariamente de geração em geração. Essa ideia de um pecado original hereditário e de um ser humano decaído, material e corruptível, recuperável apenas pela graça do batismo, que lhe devolve uma alma redimida, não material, destinada à Cidade de Deus, vai impregnar amplamente a linguagem, a espiritualidade e o imaginário cristão até os nossos dias. Jesus, sem dúvida, partilhava a esperança messiânica na vinda do reino, mas jamais o viu ou definiu nessa forma radicalmente dualista da filosofia grega.
A invasão bárbara pôs fim a um império romano já em fase de decomposição. No tumulto generalizado, as glórias do império se reduzem a ruínas e apagam-se também as luzes da filosofia grega. Não sobram nem sequer os poucos textos escritos. Sobrevive, como instituição mais forte, a Igreja. Do império – após séculos de apoio público – herda sua estrutura organizativa e legislativa; dos gregos, seu amor à doutrina e ao dogma. Não ganha a batalha política. Apesar das tentativas de fazer valer certa “teologia das duas espadas” e conquistar territórios para Deus, politicamente são os príncipes e reis que acabam predominando sobre a Igreja. Mas, em contrapartida, a Igreja ganha a batalha espiritual: a força da espiritualidade cristã consegue absorver e seduzir as tradições religiosas dos povos bárbaros e surgirá a irresistível síntese da cristandade medieval. Com ela, a cosmovisão teo-lógica chega a seu auge. Na cosmovisão medieval, apenas Deus tem importância. A vida na terra, profana e corruptível, é mera passagem para o que realmente interessa: a vida após a morte. Com base nessa profunda e onipresente religiosidade popular, com sua valorização extrema do transcendente, a Igreja-instituição consegue, politicamente, dar a volta por cima. A Idade Média termina com os papas dando as cartas no mundo ocidental.
3. A COSMOVISÃO ANTROPOLÓGICA
3.1. Como entendê-la?
A cosmovisão antropo-lógica toma o lugar da teo-lógica quando o próprio ser humano, especialmente a razão humana, se transforma no argumento central do crer e do agir. Deus, em regra, não é negado nem descartado. É simplesmente posto de lado. Não é mais a causa explicativa de todas as coisas e de todos os eventos. A partir dessa nova lógica, o ser humano com sua racionalidade será sempre ponto de partida e ponto de chegada.
3.2. A cosmovisão antropo-lógica da modernidade
Apesar do apagão filosófico no Ocidente, a civilização grega deixou uma herança significativa. O culto grego à razão funcionou, de fato, como uma espécie de bomba de efeito retardado. Quando, lentamente, se fortalece a nova economia dos artesãos, com forte empurrão vindo dos mosteiros, e o ainda esfacelado continente europeu se cobre de pequenas cidades, com relações comerciais se estendendo cada vez mais, os escritos gregos são redescobertos e avidamente digeridos. São os monges que os copiam, inicialmente. Não levará muito tempo e santo Tomás de Aquino (†1274) dará à luz sua Suma teológica, uma síntese entre a fé cristã e a razão aristotélica. Para santo Tomás – e sua fides ex ratio, ou “crer com a razão” –, a ciência não substitui a fé, mas apenas a justifica e a torna mais crível. Dentro dos limites eclesiásticos, essa “teologia escolástica” será, por séculos, a norma básica para todos os ministros da Igreja. Fora desses limites, porém, a razão toma outro rumo. Com o estabelecimento dos Estados soberanos, suas recém-criadas universidades adquirem autonomia crescente. Lenta, mas inexoravelmente, a fé deixará de ser, para a ciência, argumento de validação.
O que caracteriza a modernidade é a antropo-lógica. A teologia atual costuma lembrar a grande “virada copernicana”. Quando Copérnico (†1543) e depois Galilei (†1642) demonstraram que a Terra não era o centro do cosmos – como se defendia desde o grego Ptolemeu –, mas apenas um humilde planeta girando em torno de um magnífico sol, a cosmovisão da época, de fato, começou a mudar. A incipiente ciência ocidental abriu uma primeira grande brecha nas verdades da Igreja, tidas como absolutas, não apenas por causa da fé inquestionável num Deus criador do céu e da terra, mas também por causa da fé inconteste no Deus da Revelação, uma vez que a Bíblia atestava com todas as letras que Josué “fez o sol parar sobre Gabaon” (Js 10,13).
O que caracteriza a modernidade, desde seu início no séc. XVI, é a fé na ciência. Galileu Galilei não renegou a fé cristã, mas, duramente perseguido pela Igreja, morreu acreditando que o ser humano erra, a matemática não. Francis Bacon (†1626) acreditava que o ser humano, por meio do método indutivo, da experimentação, podia alcançar uma compreensão generalizada da natureza. A grandeza humana estaria completa com a total escravização do mundo natural. René Descartes (†1650) viu a realidade como o grande império das causalidades, governadas por leis matemáticas perfeitas. De acordo com seu “dualismo metafísico radical”, apenas a razão humana – por seu caráter imaterial – poderia compreender, objetivamente, toda a realidade, principalmente dividindo e subdividindo-a em partes para assim, pelo método analítico-dedutivo, chegar à compreensão da totalidade. Desde o Renascimento até o pleno desabrochar do Iluminismo, a ciência fará, em todos os campos do saber, avanços considerados inimagináveis. Isaac Newton (†1727) fará a grande síntese, tornando-se um semideus nos grandes centros da intelectualidade ocidental, e ela vai levando de roldão também outros continentes, culturas e corações.
Newton “comprovará” que o espaço é absoluto e imóvel e que também o tempo é absoluto, fluindo infinita e autonomamente. “Mostrará” que toda a matéria, em última análise, é feita de pequenos átomos que interagem pela lei da gravidade. Dirá, enfim, que todo o universo é como uma máquina ou um relógio cujas peças se encaixam perfeitamente, governado por leis causais determinadas e inteligíveis. Tudo o que segue é consequência. Auguste Comte (†1857) cria uma “sociologia científica”, dando à luz o positivismo. Darwin (†1882), temendo a reação da Igreja, titubeou muito antes de publicar sua teoria da evolução, mas seu amor à ciência venceu. Karl Marx (†1883) se debruça sobre os modos de produção, sobre a economia humana, propondo um “materialismo científico”. Freud (†1939) tentará submeter também a psicologia aos novos parâmetros científicos, e assim por diante. Em todos os campos do saber, a verdade, ou é científica, ou não é. Quem quiser crer, que creia. Quem quiser conhecer a realidade, que pesquise. Na cosmovisão antropo-lógica da modernidade, a razão humana é o critério último do saber e do agir.
4. A COSMOVISÃO ECOLÓGICA
4.1. Como entendê-la?
Na cosmovisão ecológica, o critério último do saber e do agir não é Deus, como na cosmovisão teológica, nem a razão humana, como na cosmovisão antropológica. Simplificando ao máximo, poderíamos dizer que, na cosmovisão ecológica, o critério último do saber e do agir é “o todo” da criação ou – deixando a fé de lado – “o todo” da realidade. Na realidade, reina uma espécie de “lei da coerência”. No mundo que nos envolve, da mais distante estrela ao que está mais próximo de nós, tudo está interligado e tudo depende de tudo. Não é a soma das partes que explica o todo da realidade, mas é o todo da realidade que explica as partes ou lhes dá significado.
4.2. A eco-lógica de uma nova cosmovisão
O séc. XX representou o lento desmonte da cosmovisão antropológica e a montagem concomitante de nova cosmovisão ainda em ascensão, a ecológica. Exatamente no ano 1900, o físico Max Planck (†1947), estudando o comportamento dos elétrons em volta do núcleo do átomo, constatou os “saltos quânticos”: recebendo ou cedendo energia, os elétrons, com total desprezo pelos níveis intermediários, invariavelmente “pulam” de uma órbita a outra, seguindo determinado quantum. Nasceu assim a física quântica, que jogaria por terra inúmeras das tradicionais certezas científicas. Esperamos poder demonstrar, em outra oportunidade, quanto a física quântica é importante para a abertura de novas perspectivas pastorais.
Igualmente importantes, no sentido de exigir uma reorganização pastoral, foram os enormes avanços do século passado na área da biologia evolutiva, molecular e genética. Na metade do século, os Nobéis de 1962 James Watson e Francis Crick (†2004) espantaram o mundo com o que afirmavam ser o “dogma central” da vida, a lindíssima dupla hélice de ácido desoxirribonucleico (DNA), composta de genes que contêm o segredo da vida: os genes produzem as enzimas, que por sua vez produzem as proteínas, que por sua vez garantem o funcionamento da vida celular de todo e qualquer organismo vivo. Brincavam os biólogos entre si, dizendo: “O DNA faz o RNA, o RNA faz as proteínas e as proteínas fazem a gente”. Posteriormente se veria que essa visão determinista, própria da época, de uma cadeia causal linear haveria de ser revista, mas o grande susto estava dado. Os dados do laboratório eram suficientemente robustos para banir em definitivo um dos mais arraigados dogmas religiosos. Para as pessoas bem informadas, manter a fé num Deus que, a cada momento, cria a vida com alma imortal tornou-se cada vez mais difícil.
Um terceiro avanço científico que veio desafiar profundamente nossa ação pastoral é o da consciência humana. Veremos logo mais quanto ele tem a ver com a lógica da cosmovisão ecológica que, sorrateiramente, vem se impondo. São essas, a nosso ver, as três áreas das ciências naturais que mais nos obrigam a repensar a ação pastoral. A teologia atual faz uso crescente desses fundamentos mais “antropológicos”, mas quase sempre o faz para melhor equacionar o nosso modo de pensar e não o nosso modo de agir. Abrir perspectivas pastorais é o nosso objetivo. Finalizada esta introdução ao tema, é delas que vamos falar mais. Olhemos, por ora, mais atentamente para cada uma dessas três áreas.
A) A mensagem surpreendente da física quântica
Quem nunca se debruçou seriamente sobre a profunda mudança que ocorreu no campo da física, passando da concepção mecânico-clássica para a nova concepção quântica, decerto terá dificuldade em compreender e aceitar o processo evolutivo que ocorre tanto no pensar filosófico-teológico quanto nas ciências naturais. Uma primeira surpresa que a física quântica nos traz é que algo pode ser e não ser ao mesmo tempo. Para a concepção mecânica de Isaac Newton, solidamente ancorada na tradição grega, todas as coisas, na sua essência, são sempre iguais. A concepção é “ontológica”, quer dizer, uma pedra, uma planta ou um ser humano serão sempre pedra, planta ou ser humano. Podem variar muito as aparências, mas é só abstrair delas e aparecerá, universalmente, a mesma essência. Já dissemos acima que a linguagem da filosofia grega é abstrata, essencialista, universalista e dogmática. Mas o físico dinamarquês Niels Bohr (†1962), ganhador do Prêmio Nobel da Física em 1922 por seus esclarecimentos sobre a estrutura do átomo, afirmará que, no nível subatômico, reina o “princípio da complementaridade”, quer dizer, a matéria, em última instância, é ao mesmo tempo onda e partícula, mas apenas a junção dessas duas formas de ser definirá o que a matéria realmente é. Werner Heisenberg (†1976), ganhador do Prêmio Nobel de Física em 1923, explicitará que, além do princípio de complementaridade, existe o “princípio da incerteza”, isto é, a impossibilidade de observar a onda e a partícula ao mesmo tempo. Ou se observará a exata posição da partícula ou o exato momentum da onda, mas nunca os dois simultaneamente. Observar a dualidade escapa a qualquer medição ou observação. Talvez mais desafiador ainda para nossas arraigadas concepções mecânicas seja o “princípio da não localidade” ressaltado por David Bohm (†1992): as partículas atômicas – sobretudo no seu estado onda – relacionam-se mutuamente sem obedecer a critérios de espaço e de tempo. Como ficou comprovado muitas vezes, um par correlato de fótons – fótons são partículas de luz – executa, instantaneamente, autêntica “dança sincronizada”, independentemente de sua distância espacial, seja esta de poucos centímetros ou de diversas galáxias.
A mecânica do mundo físico, dizia Newton, é “determinada”. Tudo está relacionado à lei de causa e efeito. Na mecânica do mundo microfísico, dizem os físicos quânticos, nada é determinado. Tudo é apenas “probabilidade”. O elétron, antes de mudar de órbita, por assim dizer sonda ou “visita”, ao mesmo tempo, uma infinidade de possibilidades – as chamadas “transições virtuais” –, sendo sua transição real apenas uma probabilidade. Embora uma probabilidade seja maior que a outra, não há nada que determine a transição real. Mudando de posição, o elétron também não desliza pelo espaço, como imaginamos. Não é um movimento mecânico. É como se espaço e tempo não existissem. Nem sequer podemos atribuir ao elétron uma espécie de individualidade desligada de seu contexto. Os “indivíduos” quânticos se comportam sempre como relacionados a um todo maior, e suas existências “individuais” ganham definição e sentido apenas por meio de sua relação com esse todo.
Não basta “tomar conhecimento” da física quântica. É preciso interiorizá-la na mente, ou melhor, “meditá-la” no coração. Sem isso, é inútil pensar em novas perspectivas pastorais. Se a lógica da cosmovisão ecológica consiste basicamente na percepção das inter-relações dentro do todo e da coerência interna do sistema, não há nada mais eco-lógico do que as realidades quânticas. Infelizmente, nosso olhar não capta a dimensão microfísica da matéria. Mas ela é maravilhosa e, em certo sentido, está cheia de vida. Veremos em outra oportunidade quanto o caminho concreto da nossa espiritualidade cristã nos fez despreparados para perceber os sinais do tempo escondidos na natureza. A matéria, muito além de “coisa morta”, é fonte da própria vida, como veremos logo mais, e essa compreensão levantará pistas pastorais ainda mais promissoras.
B) A teia da vida
O mais fervoroso militante do ateísmo na atualidade é Richard Dawkins. Neste momento, ele se ocupa em afixar cartazes nos metrôs e ônibus de Londres, afirmando: “Deus, provavelmente, não existe”. Um dos mais destacados especialistas mundiais em teoria da evolução, considera um absurdo e um desserviço à ciência continuar acreditando num Deus criador. Critica asperamente a verdade absoluta da Igreja e estabelece em seu lugar a verdade absoluta da ciência. A inclusão nos cartazes da palavra “provavelmente” se deve ao fato de ele reconhecer que a inexistência de Deus, na verdade, também não pode ser provada. O papa João Paulo II, em 1996, deu aval à teoria darwiniana da seleção natural, mas isso não significa que, para Roma, a questão seja tranquila. Existe um debate mundial. Muitas escolas americanas – especialmente do lado evangélico – fazem questão de introduzir nos livros didáticos o “criacionismo”, algo muito próximo de uma interpretação literal da Bíblia. Em geral, porém, as lideranças das Igrejas cristãs absorveram o evolucionismo, ainda que o povo cristão fique com certo “pé atrás”.
Hoje, falar de evolucionismo é algo muito mais abrangente – e muito mais profundo – do que no tempo de Charles Darwin. O que Darwin expôs em seu livro Sobre a origem das espécies (1859) é que a vida na Terra evoluiu lentamente por “mutações ao acaso” ou, como se dirá depois, por “mutações aleatórias”, sobrevivendo as espécies mais adaptadas ao meio ambiente – portanto, por meio de “seleção natural”. Posteriormente, com a descoberta da estabilidade das “unidades de hereditariedade” pelo monge botânico Gregor Mendel (†1884) e com o nascimento da ciência “genética”, palavra cunhada pelo biólogo William Bateson (†1926) no início do séc. XX, o mecanismo da transmissão genética de pais para filhos foi mais bem elucidado e é esse “neodarwinismo” que ainda predomina nas escolas e nas mentes da população em geral. Infelizmente, o imaginário popular – e o de muitos agentes de pastoral – ficou muito preso à ideia tradicional de que “o ser humano não foi criado por Deus, mas veio do macaco”. A nova concepção ecológica supera em muito a estreiteza dessa visão.
Da mesma forma, se a microfísica revelou o lado quântico da matéria, inteiramente surpreendente para quem apenas contava com as leis da macrofísica dedutíveis da observação comum, também a microbiologia das últimas décadas revelou surpresas inimagináveis sobre o que é “vida”, com consequências importantíssimas para a ação pastoral da Igreja. Por sua vital importância, gostaríamos de dar a esse ponto um destaque maior. Em primeiro lugar, consolidou-se um consenso: a vida não é fruto de um “momento sobrenatural”, de intervenção divina, mas de um “processo natural” em que, como na microfísica da qual nasceu, tudo é inter-relacionado e interdependente. A natureza da nossa casa comum, a “oikos-Terra”, é radicalmente comunitária. Impõe-se a eco-lógica. Tudo que tem vida sobre a Terra tem a mesma origem, a mesma “alma” e o mesmo destino: cooperar para maior plenitude. Talvez não na direção “crística” imaginada por Teilhard de Chardin (†1955). A maioria dos cientistas parece opor-se a essa posição teleológica que vê a evolução da vida obedecendo a determinado “propósito”, possivelmente divino. Mas a vida manifesta a inegável tendência para uma complexidade crescente, com criatividade espantosa.
Quem hoje se preocupa com a pastoral não deveria deixar de meditar frequentemente sobre o imponente “metabolismo da célula”, seja ela do reino animal, seja do reino das plantas, dos fungos, dos protistas ou das bactérias.É preciso colocar a célula debaixo do microscópio eletrônico e, simplesmente, contemplar. Ainda em 2009, os cientistas Ada Yonath, Venkatraman Ramakrishnan e Thomaz Steitz ganharam o Prêmio Nobel da Bioquímica por terem esclarecido melhor a estrutura e o funcionamento dos ribossomos, as “fábricas de proteínas” das células. O código genético do DNA constitui o grande “livro de instruções” que diz quais proteínas os ribossomos –aproximadamente 500 mil em cada célula! – devem fabricar. Em cada cordão da escadinha enrolada do DNA há um encadeamento alternado de moléculas de fosfato e de açúcar. As barras transversais ligam as moléculas de açúcar de um lado a outro. Cada lado das barras transversais é feito de uma substância específica: se um lado é de uma molécula de timina, o outro é de adenina; ou então, se um lado é de guanina, o outro é de citosina. São como as quatro “letras” do livro de instruções ou do alfabeto genético.
O segredo do cofre está na combinação das milhares de barras, que têm sequências tão variadas quanto os indivíduos. O DNA produz a molécula do RNA-mensageiro, chamado assim porque leva as instruções do livro até os ribossomos. Outro tipo de RNA, chamado RNA-transportador – esta a contribuição dos cientistas acima mencionados –, capta os aminoácidos presentes no citoplasma ou líquido da célula e, dentro do ribossomo, encaixa-se ao RNA-mensageiro, liberando o aminoácido que carregava. Um repertório de cerca de 20 aminoácidos apenas, ligados em cadeias que variam de algumas dezenas a várias centenas, compõe, dessa forma, as proteínas de todos os organismos conhecidos na Terra. Determinada sequência nucleotídica do código genético vai traduzir-se na mesma sequência de aminoácidos. A sequência de aminoácidos vai determinar a forma da proteína, e a forma da proteína determina a sua função. As diversas funções, em seu conjunto, formarão o órgão, e os órgãos, interconectados, constituirão finalmente o organismo vivo.
O metabolismo da célula não se limita, no entanto, à inter-relação entre o código genético e os ribossomos. Dentro do próprio núcleo, existe outro “mininúcleo” onde os ribossomos são fabricados, e dentro do fluido celular existem outras organelas, todas elas interligadas e igualmente indispensáveis à manutenção da vida. Uma delas é a mitocôndria ou “casa de força”. Ela realiza a respiração celular, usando a energia proveniente do oxigênio para quebrar as moléculas de açúcar e, dessa forma, produzir as importantíssimas moléculas de adenosina trifosfato (ATP), os “transportadores de energia” que possibilitam todas as funções do metabolismo celular. As indispensáveis moléculas de açúcar são produzidas em mais outra organela, o cloroplasto, também conhecido como “usina solar” por captar a energia da luz do sol para, com a ajuda do dióxido de carbono do ar e da água da terra, formar açúcares, devolvendo para o ar o precioso oxigênio. Trata-se do conhecido processo da fotossíntese, em que energia solar é transformada em energia química, algo vital para praticamente todas as formas de vida no planeta Terra. Pelo fato de os cloroplastos – de cor verde – existirem apenas nas células vegetais e não nas do nosso reino animal, temos aí o elo que nos une ao mundo verde. Ou o protegemos, ou são nulas as nossas chances de sobrevivência. Por fim, encontramos ainda no citoplasma as organelas dos complexos de Golgi ou “bolsas de armazenamento”, onde os diversos produtos celulares são armazenados e acondicionados antes de serem enviados aos seus destinatários, e ainda, vejam só, as “usinas de reciclagem”, onde enzimas especializadas tratam dos componentes celulares danificados ou não usados, reciclando-os para novas utilidades.
Os importantes avanços na área da bioquímica demonstraram que, da mesma forma que no microcosmo da matéria, no átomo, tudo é interdependente e inter-relacionado, na célula, no microcosmo da vida, tudo está interligado. O padrão de rede é onipresente. A consequência pastoral é incontornável. Descartes nos desculpe, mas, para conhecer a totalidade, não basta conhecer as partes. Mais importante do que observar as partes é perceber o todo da “teia da vida”. Separando uma parte, ela morre.
Por muito tempo, as pessoas de boa-fé se perguntaram: se a vida é fruto de evolução, como explicar o início da vida, já que a mais simples bactéria mostra uma complexidade celular tão impressionante? Se a evolução existe, não é Deus, assim mesmo, em última instância, o autor da vida? Pergunta mais do que justa. Mas com razão a teologia atual desconfia do “Deus das lacunas”. Deus é uma questão de fé, não de ciência. Na concepção teo-lógica, Deus intervém a cada momento no curso da história e na vida das pessoas. Na concepção antropo-lógica, Deus é posto de lado. Na concepção eco-lógica, Deus pode voltar – muitos assim pensam, com boas doses de razão –, mas não para preencher as lacunas da ciência. Gostaríamos de voltar a esse assunto numa próxima oportunidade, quando analisaremos a íntima ligação entre pastoral e espiritualidade.
As etapas da evolução são, ao mesmo tempo, simples e maravilhosamente complexas. O mais complexo sempre surge do mais simples. Frequentemente, a etapa mais conhecida, mas menos instrutiva, é a última, a do reino animal a que pertencemos. Somos – dizemos com orgulho, mas não sem uma pitada de arrogância – da “espécie” sapiens, que surgiu recentissimamente, há pouco mais de 100 mil anos, ramo descendente do “gênero” Homo, que surgiu há 500 mil anos e, por sua vez, se originou da “família” dos hominídeos, os macacos-homens ou homens-macacos que habitavam a Terra há mais de 4 milhões de anos. Estes, porém, seguramente, foram descendentes da “ordem” dos primatas, que surgiu 60 milhões de anos atrás, após a extinção dos dinossauros, e, por sua vez, evoluiu da “classe” dos mamíferos, que surgiram 200 milhões de anos atrás. Em cada etapa, os seres vivos apresentam suas características próprias, mas mantendo a estrutura básica herdada dos antepassados. A classe dos mamíferos nasceu do “filo” dos cordados, que surgiu há 450 milhões de anos, já apresentando um tubo nervoso central com cérebro inicial. Esse filo, finalmente, evoluiu do “reino” animal, que se iniciou, no fundo dos oceanos, há 750 milhões de anos a partir de uma pequena blástula, o primeiro conjunto multicelular engenhosamente interconectado. Para conhecê-lo melhor, basta olhar o nosso próprio corpo.
A belíssima aventura da vida, no entanto, tem etapas muito mais brilhantes. Em primeiro lugar, o próprio nascimento dela. Colocando qualquer célula viva debaixo da lupa de Copérnico, hoje aperfeiçoada ao extremo, veremos que ela é, em 99% do nosso corpo seco, uma composição imensamente variada de apenas seis humildes átomos: carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, fósforo e enxofre. Já foi dito por alguns que existe um “caso de amor” na própria matéria e na origem da vida. As quatro grandes forças cósmicas conhecidas, a nuclear forte e a fraca, a eletromagnética e a gravitacional, são forças que se equilibram mediante a dinâmica fundamental de atração e rejeição. Os átomos, especialmente pela força eletromagnética, atraem-se mutuamente, mas não de forma aleatória. Há preferências, pois as cargas elétricas são diferentes. Uma molécula é um “casamento” entre átomos que se dão bem. Lendo, ou melhor, meditando o livro Beginnings of cellular life, de Harold Morowitz, talvez o maior especialista mundial na bioquímica da vida, podemos perceber como as abundantes e variadas moléculas da assim chamada “sopa química” dos primeiros oceanos, 4 bilhões de anos atrás, deram início à aventura da vida.
Na década de 70 do século passado, o Prêmio Nobel de Química Ilya Prigogine (†2003) já havia demonstrado com seus famosos experimentos dos “relógios químicos” que, na química da vida, existe uma lei contrária à lei da entropia característica do mundo material inorgânico. Em seu inesquecível livro Order out of chaos, demonstrou que os sistemas vivos são sistemas abertos, de “estrutura dissipativa” – quer dizer, à medida que o meio ambiente lhes garante um fluxo permanente de energia, o sistema não tende para a desordem, mas para o seu contrário, uma ordem crescente. Em determinado momento de acúmulo de energia, pode surgir – como nos relógios químicos – um “ponto de bifurcação” em que a vida “pula” para um nível de maior complexidade.
Na mesma década, outro Prêmio Nobel de Química (1967), o biofísico Manfred Eigen, do Instituto Max Planck, de Göttingen, demonstrou que na fase pré-biológica da vida devem ter surgido inúmeros “ciclos catalíticos”, os quais por sua vez deram origem a “hiperciclos”, visto ser essa uma reação natural das substâncias químicas presentes na natureza – e facilmente observáveis em laboratório. Algumas dessas substâncias “catalisam” ou aceleram determinadas reações químicas e, na presença de um fluxo constante de energia, as sustentam. Sabemos hoje que são exatamente as enzimas produzidas pelos ribossomos que aceleram a formação das proteínas e assim sustentam todo o metabolismo da célula. Harold Morowitz ainda insiste na importância das onipresentes membranas das células, formadas, desde o início da vida pré-biótica, com base nas moléculas de lipídio, de modo parecido com o que ocorre quando jogamos uma gota de óleo na água. A membrana, sempre permeável, possibilita a dinâmica entre o campo interno e externo da célula, com um fluxo de energia entrando e saindo, como visualizado nas estruturas dissipativas de Prigogine.
As forças amorosas da natureza, formando ciclos químicos crescentemente complexos, em algum momento – ou, mais provavelmente, em muitos momentos diversos –, deram origem ao primeiro esboço de uma célula autorreplicativa, que carregava dentro de si o filete inicial de um código genético muito simples. Aí a sinfonia da vida começou. Não há nenhuma dúvida sobre isso na ciência. Até hoje, todas as células vivas do planeta Terra têm como característica principal a capacidade de “auto-organização”. Pode-se dizer que a vida “é” auto-organização. A célula, desde que receba energia do ambiente, simplesmente se produz e se organiza a si mesma, com capacidade até de fazer cópia de si mesma com extrema fidelidade. Sendo um processo natural – e não sobrenatural –, supõe-se que a vida surgirá onde houver condições ambientais adequadas. Se no planeta Terra, há 4 bilhões de anos, as condições ambientais ainda não permitiam o surgimento da vida, existe um consenso científico crescente de que, há 3,8 bilhões de anos, a vida já estava presente, dando então início ao “reino das bactérias”.
Fomos educados para desenvolver grande desprezo pelas bactérias, mas, novamente, é preciso meditar, por exemplo, os livros da mundialmente reconhecida microbióloga Lynn Margulis para nos convencer do equívoco. Elas formaram – e ainda formam – a base da atual atmosfera e biota terrestres, e nenhum ser vivo sobrevive sem elas. Em seu livro Microcosmos (2002), Margulis nos apresenta impressionante panorama dos 4 bilhões de anos de evolução microbianae, em Symbiotic planet (1988), expõe os surpreendentes avanços na concepção de evolução. Desde muito cedo, as bactérias aprenderam a conviver com um meio ambiente em constante transformação. Algumas espécies se autocopiam – por simples processo de divisão chamado “mitose” – a cada 20 minutos, podendo, em princípio, conforme o cálculo geométrico, cobrir a face da terra em 48 horas. No processo de adaptação e diversificação, desenvolveram quase todas as “tecnologias” que, até hoje, sustentam a nossa sobrevivência biológica: a fermentação, que converte açúcares ou carboidratos em energia; a fotossíntese, que transforma luz e ar em alimento; a respiração de oxigênio, principal fonte de energia do mundo biológico; a fixação do nitrogênio, indispensável a qualquer organismo; e ainda a motilidade, que ajuda a vida a fugir do “mal” e buscar o “bem”.
Com grande facilidade, as bactérias podem simplesmente “transferir” parte do seu material genético, partilhando um “pool genético” de grande capacidade evolutiva. A seleção natural não é, portanto, o único processo evolutivo. Além da “transferência genética” mencionada, outro importante mecanismo de evolução mais bem elucidado por Lynn Margulis é a chamada “simbiogênese”. Foi um processo de simbiose – uma fusão não nuclear, mas biológica – que uniu, talvez forçadas pela fome, bactérias fermentadoras com bactérias fotossintetizantes, aeróbias e “flageladas”. Ainda hoje, os espermatozoides mostram a fantástica utilidade desses antigos flagelos ou chicotes. Há 1 bilhão e meio de anos, como que de repente, após longo processo de evolução das bactérias, aparecem – como num “salto evolutivo” – os “eucariontes”, as células com núcleo, já, simbioticamente, dotadas também de mitocôndrias e cloroplastos, as antigas bactérias, dando início ao novo e até hoje existente “reino dos protistas”, os eucariontes unicelulares. Aprendendo desde cedo que a cooperação rende mais que a competição, os eucariontes unicelulares evoluem para eucariontes multicelulares, dando origem, há 1 bilhão de anos apenas, às algas e ao plâncton do mar. Foram essas algas, as verdes, que, há 460 milhões de anos, conquistaram a terra e deram origem ao “reino das plantas”, muito provavelmente em união simbiótica com os fungos, uma vez que 95% das plantas terrestres abrigam em suas raízes fungos simbióticos. Trinta e cinco milhões de anos após a conquista da terra pelas plantas, os primeiros animais anfíbios surgirão do mar e seguirão o caminho delas. O prato estava feito. Já vimos como, na eco-lógica, tudo depende de tudo e tudo coopera com tudo.
C) A eco-lógica do cérebro
Não queremos olhar para o cérebro com a preocupação clássica dos anatomistas, estudando parte por parte. Sem dúvida, a ciência não pode deixar de observar os detalhes, mas observar apenas os detalhes é como olhar para uma árvore sem perceber a beleza da floresta. Já vimos que a vida só persiste quando inserida numa teia ou rede. Anatomicamente, o que mais chamou a atenção foi a divisão do cérebro em dois hemisférios. Um lado, o da direita, mais intuitivo, mais imaginativo e mais sensível à música, à poesia e à mística, e o outro lado, o da esquerda, mais lógico, mais analítico e mais aberto ao cálculo, à abstração e à linguagem. Na ânsia de “localizar” cada parte, porém, descobriu-se logo que os dois hemisférios são, na verdade, como as duas asas do pássaro: faltando uma, o todo é severamente prejudicado. A abordagem neurofisiológica revelou também a presença de “camadas cerebrais”. As grandes fases evolutivas do passado, de alguma forma, continuam presentes e atuantes. Debaixo do nosso superdesenvolvido córtex cerebral encontramos o telencéfalo, que se desenvolveu na época dos primeiros mamíferos e onde vemos surgir, no reino animal, os sinais iniciais da emoção.
Não podemos imaginar o cérebro desligado do restante do sistema nervoso. De fato, evoluiu a partir do sistema nervoso, concentrando-se cada vez mais na extremidade. Quando, instintivamente, afastamos a mão de uma panela quente, fazemos a mesma coisa que a primitiva minhoca já sabia fazer. No momento em que o ansioso pescador a desenterra do chão, ela busca fugir imediatamente da luz e do calor do sol, enterrando-se novamente. Sem cérebro, mas dotado de um simples cordão espinhal, já “sabe” o que lhe faz bem e o que lhe faz mal.
Especialmente do ponto de vista da pastoral, o mais relevante é nos perguntar: como, afinal, conseguimos pensar e ter consciência do nosso eu? Aí somos obrigados a fazer referência à muito respeitada “teoria de Santiago”. Já na década de 70 do século passado, os neurobiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (†2001) – com Gregory Bateson (†1980) do lado inglês – elaboraram uma teoria da cognição que trouxe avanços significativos (Maturana, 1995). Um dos seus livros, A árvore do conhecimento, é árduo para ler, mas vale a pena. Qualquer ser vivo, por mais simples que seja, está conectado ao seu meio ambiente, mas tem apenas o seu sistema nervoso como órgão de alerta para dizer-lhe quais as conexões benéficas ou maléficas. A nossa conhecida água-viva das praias – remanescente dos mais antigos animais do período cambriano – possui apenas algumas fibras nervosas, mas está aí sobrevivendo, o que confirma a tese. A lógica antropológica de Descartes, admitindo uma racionalidade superior com capacidade para conhecer “objetivamente” a realidade, caiu por terra quando se comprovou que o sistema nervoso age como um circuito circular fechado. Não há meio de conhecer o mundo que nos envolve a não ser, exclusivamente, pelos sentidos do sistema nervoso, envolvendo raciocínio, emoção, percepção ou qualquer outra sensibilidade. Por isso, todo conhecimento é subjetivo e próprio da espécie. Maturana e Varela vão dizer que cada ser “cria o seu mundo”. O mundo dos morcegos é feito de sons inaudíveis para nós. Com certeza, a águia não vê o mundo como nós o vemos, nem temos o faro que faz o mundo do cão.
No processo de evolução de cada espécie, os componentes da “estrutura biológica” vão mudando lentamente, pois existe, dizem os autores, um “acoplamento estrutural” permanente e recorrente com o meio ambiente. O “padrão de organização” de cada ser vivo, no entanto – no sentido da auto-organização acima mencionada –, permanece sempre o mesmo. Nosso corpo substitui todas as suas células com uma velocidade impressionante – nossa pele substitui cem mil células por minuto! –, mas nossa individualidade biológica continua a mesma. O ser vivo, afirmam, é um ser “estruturalmente aberto, mas organizacionalmente fechado”. A mesma cognição que nos permite “captar” o mundo externo também nos permite viver e conhecer. Por isso, “conhecer é viver”. Até a bactéria tem conhecimento, é um ser pensante e vivente como nós.
Numa oportunidade futura, ao falar da espiritualidade como importante fonte para a ação pastoral, veremos que o ser humano, denominado sapiens sapiens – alguns preferem sapiens demens! –, com ajuda de sua nova capacidade autorreflexiva e sua linguagem correspondente, corre sério perigo de “iludir-se”, imaginando um mundo fictício. É preciso ler, por exemplo, o livro New world, new mind (1989), dos cientistas americanos Robert Ornstein e Paul Ehrlich, para perceber o grande abismo entre o que o nosso sistema nervoso nos permite conhecer e o mundo que a nossa mente francamente libertária – “the mismatched mind” – é capaz de fantasiar. Nosso sistema nervoso levou milhões de anos para evoluir e está adaptado basicamente às necessidades do momento: onde comer, como fugir de ameaças, como lidar com desafios grupais etc. Não capta facilmente os desafios de longo prazo da nossa cultura moderna: como evitar a superpopulação, a corrida armamentista, a ameaça de uma economia globalizada ou da poluição ambiental etc. Por ora, porém, basta abordar um último ponto que, mais uma vez, mostrará por que hoje vem se impondo a cosmovisão ecológica.
Em seu livro O ser quântico (2000), a psicóloga e filósofa Danah Zohar faz uma descrição – na direção do que talvez seja o mais consensual nessa área ainda muito polêmica – de como o cérebro atua para formar o que chamamos de “consciência humana”. De onde vem nossa clara consciência do “eu” se são trilhões de neurônios que formam nosso pensamento? A autora compara a “unidade” que a consciência traz com as chamadas “fases de Bose-Einstein”, as fases condensadas que podem ser observadas em algumas matérias, principalmente quando em temperaturas muito baixas. A água existe em três “fases”, a gasosa (vapor), a líquida (água) e a sólida (gelo), apresentando uma “ordem” molecular muito maior no cristal de gelo, assim como ocorre nos cristais de sal ou de açúcar. Quando em fase condensada, os átomos e moléculas, em geral imprecisamente estruturados, súbita ou gradualmente se alinham e assumem um estado mais coerente, comportando-se como um. Os sistemas físicos apresentam muitos tipos de fases condensadas mais estruturadas – por exemplo, nos raios laser, nas correntes elétricas dos metais ou nas ondas sonoras dos cristais. O físico Herbert Fröhlich (†1991), 30 anos atrás, já havia demonstrado que existe algo parecido nas células vivas dos sistemas biológicos. Nas membranas das nossas células existem “dipolos”, moléculas eletricamente carregadas, tendo carga positiva num polo e carga negativa em outro. Os dipolos emitem vibrações eletromagnéticas que, na verdade, são emissões de fótons. Já na metade do século passado, os biofísicos demonstraram serem os neurônios suficientemente sensíveis para registrar a emissão de um único fóton. O chamado “sistema bombado” de Fröhlich demonstrou que, além de certo limite, qualquer energia a mais introduzida num sistema vivo faz que as moléculas comecem a vibrar em uníssono. No cérebro humano, elas o fazem cada vez mais até os neurônios chegarem à forma mais ordenada possível de fase condensada, surgindo então a assim denominada “fase condensada de Bose-Einstein”. Nessa situação, as inúmeras partes do sistema se “sobrepõem” de tal forma, que perdem completamente a própria individualidade e se tornam, de fato, uma unidade só, como o som de um instrumento de muitas cordas. O lado quântico que vimos na matéria inorgânica aqui se repete claramente na matéria orgânica, a base física da vida.
5. CONSEQUÊNCIAS PASTORAIS
5.1. Repensar à luz de uma nova lógica
Com a irrupção de uma nova cosmovisão, muda, em profundidade, o modo de pensar sobre Deus, sobre o mundo e sobre o sentido da existência humana. Tudo é pensado à luz de uma nova lógica. Atritos serão inevitáveis. Aqueles ou aquelas que buscam encontrar uma nova linguagem, adaptada à época, entram em choque com a Igreja-instituição. Na atualidade, a barreira conservadora levantada pela Cúria Romana transformou-se no grande “muro de lamentações” dos nossos teólogos e teólogas. A lógica da cosmovisão ecológica, no entanto, não se dá bem com teologias “fortes”, de oposição e exclusão, como veremos. A preferência é por teologias “fracas”, em que muitas verdades parciais convivem pacificamente, aguardando o tempo do nascimento de uma verdade maior. É essa a lógica da vida.
5.2. Em busca de novas práticas
Nos artigos que serão publicados nas próximas edições da revista, poderemos falar das novas perspectivas pastorais práticas fomentadas pela fundamentação teórica aqui apresentada. Perspectivas que surgem das três fontes que alimentam a ação concreta da Igreja: a cosmovisão da época, a espiritualidade que lhe é própria e a perspectiva de futuro que nasce da cosmovisão e de sua espiritualidade.
* Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais. Atuou sempre na pastoral prática: na pastoral rural; na pastoral urbana em São Paulo; como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo-SP, coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no Itesp (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008, foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra/SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente, atua na pastoral paroquial de Diadema/SP. Além de cartilhas populares, publicou diversos artigos na REB.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ZOHAR, Danah. O ser quântico: uma visão revolucionária da natureza humana. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
Pe. Nicolau João Bakker, svd