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Publicado em número 256 - Setembro-Outubro de 2007 (pp. 20-28)

Vós sereis como deuses:Uma leitura de Gênesis 2,4b-3,24

Por Shigeyuki Nakanose, svd

Era uma vez, uma linda morena cor de jambo, muito bela, com traços finos e elegantes. Seu nome era Yara. Ela vivia passeando pelas praias do Amazonas. Gostava de tomar banho em igarapés de águas claras e tranquilas. Uma mulher que amava a liberdade.

Certo dia, quase noite, Yara estava se divertindo nas águas corredias do igarapé. Ouviu vozes de pessoas que estavam se aproximando. Eram os homens brancos. Falavam uma língua estranha, com tom agressivo. Calçavam botas pesadas e roupas rudes. Seus olhares eram de cobiça. Semelhantes a animais famintos.

Yara pressentiu e tentou fugir. Mas foi agarrada por mãos fortes. Eram muitas. Com violência foi jogada ao chão, estuprada até a morte e depois jogada no rio. O Espírito das águas teve pena de Yara. Acolheu o seu corpo machucado. Devolveu-lhe a vida e toda a sua beleza. Ela foi transformada em sereia para nunca mais ser violada.[1]

 

Yara é um mito tupi-guarani. O mito, para a cultura que o produziu, não é apenas uma história que se conta, mas uma realidade vivida. Por meio dos mitos, conhecemos os rituais, a conduta moral e os relacionamentos sociais. O mito retrata os aspectos mais profundos da realidade de um povo. A narrativa de Yara representa os sofrimentos e o sonho do povo tupi-guarani. Essa narrativa surge para responder às várias perguntas do dia a dia: quais as causas da violência e do sofrimento? Onde está a divindade? Onde está o paraíso? Como o mundo deve ser?

Tais perguntas vêm de longe e estão presentes em todas as culturas. As primeiras páginas da Bíblia registram o relato de Adão, Eva e a serpente (Gn 2,4b-3,24). Esse texto nasce da realidade de camponeses(as) que sofrem com as constantes guerras, a destruição da natureza, o trabalho escravo e a exploração da terra durante o período da monarquia (1250-587 a.C.). A história de Adão, Eva e a serpente nos possibilita conhecer alguns traços da imagem de Deus do povo de Israel, o sonho desse povo e a causa de seus problemas. Vamos nos aproximar e conhecer melhor a experiência e a realidade vividas pelo povo de Israel.

 

1. Conhecendo o chão da vida

Por volta de 1250 a.C., o império egípcio entra em crise. Mais tarde, a guerra com os Povos do Mar, os filisteus, agrava ainda mais a situação do império. O Egito perde o controle sobre as cidades-estado cananeias. Os reis cananeus começam a guerrear entre si para decidir quem seria a liderança na região. As constantes guerras aumentam a violência, a exploração e o empobrecimento, provocando a fuga de muitas pessoas das cidades-estado de Canaã e do Egito para as montanhas. É o início de um novo povo, que mais tarde se tornará conhecido como Israel.

Os diversos grupos que formam o povo de Israel trazem consigo uma experiência comum de opressão, escravidão, fome e violência. A vida nas montanhas — região menos habitada — não é nada fácil. A sobrevivência exige dos primeiros grupos israelitas intensa vida comunitária. Na organização social, eles tentam formar aldeias comunitárias. A unidade básica da aldeia comunitária é a família ampliada, constituída de duas ou mais famílias com várias gerações: avós, pais, filhos, netos, servos e até estrangeiros, chegando a ter de 50 a 80 pessoas. Essa família habita em casas agrupadas num pátio comum e cultiva cereais, verduras e frutas, cria animais e produz o necessário para a subsistência de seus membros.

A terra é distribuída proporcionalmente às necessidades das famílias ampliadas e das tribos. Dela o povo tira o sustento do dia a dia por meio do trabalho comunitário. Todos os membros, anciãos, homens, mulheres e crianças, de acordo com a capacidade de cada um, participam de diferentes trabalhos. O trabalho é duro e pesado, mas eles usufruem de seus frutos. O que sobra é consumido nas festas comunitárias ou guardado nos santuários para os pobres e para os momentos de dificuldades (Dt 26,12-15).

Nas aldeias comunitárias, as leis têm o objetivo de proteger a vida: “Quando entrares na vinha do teu próximo, poderás comer à vontade, até ficar saciado, mas nada carregues em teu cesto. Quando entrares na plantação do teu próximo, poderás colher as espigas com a mão, mas não passes a foice na plantação do teu próximo” (Dt 23,15-16). A solidariedade é a base da sobrevivência e da organização dos primeiros israelitas. O princípio é partilhar o fruto do trabalho e proteger a natureza para que todos(as) tenham vida.

Não há rei, o poder é participativo, as decisões são tomadas em assembleias. Não há um exército de profissionais, mas de voluntários, e somente para a autodefesa (Jz 5,14-15). As celebrações são feitas nas casas, nas eiras e aldeias, e cada família cultua as suas divindades (Gn 31,19.34; Jz 17,4). Há muitos ritos para cultuar os mortos, que, em geral, são enterrados na propriedade da família. Os ritos servem para assegurar o direito perpétuo sobre a terra como herança da família e para fortalecer os vínculos de solidariedade entre os membros da mesma família ampliada e da tribo.

Apesar das dificuldades, o povo tenta viver em harmonia e em cooperação com os irmãos e irmãs, com todos os outros seres vivos e com a natureza (Sl 133). Com o surgimento da monarquia, por volta de 1030 a.C., a situação muda: os poderes começam a ser concentrados nas mãos do rei e da elite. Pouco a pouco, o rei passa a ter direitos sobre parte da produção e sobre o trabalho de seus súditos, tanto para o serviço das obras públicas como para o exército. O trabalho forçado é realizado por camponeses(as) livres, ou mesmo por seus filhos(as), a serviço do Estado, por tempo determinado. A corte, o exército e os sacerdotes moram na cidade e são sustentados pelo povo (1Sm 8,10-18).

Aumentam a exploração e a violência no campo. O profeta Isaías se ergue contra os abusos das autoridades na cidade de Jerusalém: “Fostes vós que pusestes fogo à vinha e o despojo tirado ao pobre está nas vossas casas. Que direito tendes de esmagar o meu povo e moer a face dos pobres?” (Is 3,14-15). No interior, Miqueias acusa os grupos dirigentes: “Ouvi, pois, chefes da casa de Jacó e dirigentes da casa de Israel! Por acaso não cabe a vós conhecer o direito, a vós que odiais o bem e amais o mal, que lhes arrancais a pele de seus ossos? Aqueles que comeram a carne de meu povo, arrancaram-lhe a pele, quebraram-lhe os ossos, cortaram-no como carne na panela e como vianda dentro do caldeirão” (Mq 3,1-3).

Uma das vítimas mais castigadas pelo Estado é a mulher. As constantes guerras exigem o recrutamento de homens para o exército. A ausência deles obriga as mulheres a dobrar seus trabalhos na casa e nas lavouras. Além do mais, são forçadas a aumentar o número de gestações e entregar as crianças para o serviço do Estado (Os 4,4-14). As guerras e suas brutalidades atingem o cotidiano, especialmente o das mulheres e das crianças: “Samaria deverá expiar, porque se revoltou contra o seu Deus. Cairão pela espada, seus filhos serão esmagados, às suas mulheres grávidas serão abertos os ventres” (Os 14,1).

Outra vítima da ação do Estado é a natureza. A transformação de uma economia de subsistência em uma economia de lucro, instaurada pelo Estado, esgota a terra e as pessoas que nela trabalham. A vida da casa, cercada pela natureza, é desestruturada. Os campos e a natureza são devastados pelas constantes guerras. Em todos os cantos da terra só se vê destruição: “Há perjúrio e mentira, assassínio e roubo, adultério e violência, e o sangue derramado soma-se ao sangue derramado. Por isso a terra se lamentará, desfalecerão todos os seus habitantes e desaparecerão os animais dos campos, as aves dos céus, e até os peixes do mar” (Os 4,2-3).

As pessoas e a natureza estão vivendo em situação de total aridez. A vida está por um fio. Em meio a essa realidade, o grupo de camponeses e de camponesas tenta dar suas explicações sobre as origens do bem e do mal, da vida e da morte, do universo e da humanidade. Algumas respostas foram dadas, por meio de uma linguagem simbólica, e preservadas no relato de Gênesis 2,4b-3,25. A primeira parte do relato (Gn 2,4b-24) nos apresenta o sonho e a missão do povo. A segunda parte (Gn 2,25-3,24) aprofunda a causa do mal e suas consequências. Essas páginas da Bíblia, tecidas com a experiência e a sabedoria acumuladas de geração em geração, são um apelo para rever a missão do ser humano de dar continuidade à obra criadora de Deus.

 

2. O sonho e a missão do povo: Gn 2,4b-24

O cenário inicial de Gn 2,4b-24 é de uma terra seca, como a de Judá: sem arbusto, sem erva, sem chuva, sem pessoas para cultivar o solo (Gn 2,4b-5). Sem água não há possibilidade de vida. A fertilidade da terra depende da chuva. E esta é considerada dom de Deus: “Preparas a terra assim: regando-lhe os sulcos, aplanando seus terrões, amolecendo-a com chuviscos, abençoando-lhe os brotos” (Sl 65,10c-11). Como os israelitas dependem de que Deus mande a chuva, não tê-la é visto como maldição. Sem ela, não há alimento nem vida.

Além da falta de água, não existe o ’adam, o ser humano, para “cultivar o solo” (Gn 2,5); por isso a terra não produz. O ser humano é responsável por manter a criação de Deus. O verbo hebraico ’bad, cultivar, abrange a ideia de cultura e de culto ao Deus criador. Não se trata de trabalhar somente para o sustento da vida, mas também para transformar o ambiente natural em cultural. É a arte de cultivar a terra pela harmonia e pela vida. Com ela aprendemos a não nos pôr no lugar do Criador nem viver só preocupados com o lucro e o poder, mas respeitar toda a criação: “Não só de pão vive o homem” (Dt 8,3; Lc 4,4).

Mais à frente, em Gênesis 2,15, o autor amplia a missão do ser humano: cultivar e guardar, sh mar, que também pode ser traduzido por cuidar, preservar. O ser humano é chamado a cuidar: trabalhar em harmonia com os outros e com a natureza (Is 11,5-9; Os 2,20-22). É dessa natureza criada por Deus que o ser humano tira o sustento para a sua vida. Trabalhar a terra não é castigo de Deus para o ser humano, mas parte do seu plano para que a vida tenha continuidade. O ser humano é chamado a ser cocriador com Deus e chamado definitivamente a ser feliz: “Do trabalho de tuas mãos comerás, tranquilo e feliz: tua esposa será vinha frutuosa, no coração de tua casa; teus filhos, rebentos de oliveira ao redor de tua mesa” (Sl 128,2-3).

Javé Deus, como o oleiro, modelou o ’adam com o pó da terra, ’adamah (Gn 2,7; Jr 18,1-6). Entre o ser humano e a terra existe profunda comunhão. É a vida dos camponeses e das camponesas que trabalham com a terra e vivem cercados pela natureza. Eles vêm da terra e, ao mesmo tempo, recebem a missão de cultivá-la para, no fim, voltarem à terra: “Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19). Entre outras vozes, essa crença é proclamada no grito do sábio: “Lembra-te de que me fizeste de barro, e agora me farás voltar ao pó?” (Jó 10,9). É um lembrete: o ser humano não é Deus!

O ’adam recebe um hálito de vida. O espírito de Deus está na origem da vida: “Envias teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra” (Sl 104,30; cf. Jó 7,7; Zc 12,1). O ser humano se torna vivente por meio da terra e de um sopro de vida. O trabalho de Deus é semelhante ao de um oleiro. Ele modela, constrói uma imagem e nela insere o princípio da vida (cf. Sb 15,7-11). O ser humano é chamado à vida.

Deus planta um jardim e nele põe o ’adam. Na versão grega, a palavra jardim foi traduzida por paraíso. No hebraico, a palavra Éden significa delícias. O jardim é um local onde há água em abundância (Gn 13,10). Assim fala o profeta: “Javé consolou Sião, consolou todas as suas ruínas; ele transformará seu deserto em um Éden e suas estepes em jardim de Javé. Nela se encontrarão gozo e alegria, cânticos de ações de graças e som de música” (Is 51,3). No jardim há fartura: “Toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer” (Gn 2,9). O imaginário de um jardim de Deus está presente em muitas tradições judaicas (cf. Ez 28,13; 31,8-18; 36,35; 47,12; Jl 2,3).

Na descrição do jardim, aparecem os grandes rios. Os mais conhecidos são o Tigre e o Eufrates. A intenção do autor é mostrar que os rios que banham as quatro regiões do mundo têm uma mesma fonte no jardim: “Um rio saía de Éden para regar o jardim e de lá se dividia, formando quatro braços” (Gn 2,10). O mundo é abençoado pela fertilidade proporcionada pela água divina. Onde há água e o mínimo de terra, sempre brota a vida. A água é a bênção de Deus: “Eu serei como orvalho para Israel, ele florescerá como o lírio, lançará suas raízes como o Líbano” (Os 14,6).

No jardim existe a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2,9). A primeira árvore é uma resposta à angústia do ser humano diante do envelhecimento e da morte. Há muitas histórias que falam da eterna busca da juventude. O envelhecimento e a morte são o desfecho natural da existência humana, a não ser que a vida da pessoa seja interrompida. A árvore da vida é mencionada por profetas, sábios e pelas primeiras comunidades cristãs: “No meio da praça, de um lado e do outro do rio, há arvores da vida que frutificam doze vezes, dando fruto a cada mês; e suas folhas servem para curar as nações” (Ap 22,2; cf. Jr 17,5-11; Pr 3,18; 11,30; 13,12). O sonho do povo de Israel é contado e recontado, escrito e reescrito de geração em geração.

A segunda árvore é a do conhecimento do bem e do mal (Gn 2,9.17). Não comer do fruto dessa árvore é a única proibição de Deus para ’adam. Na cultura judaica, o conhecimento vem de Deus: “Pois é Javé quem dá a sabedoria; de sua boca procedem o conhecimento e o entendimento. Ele guarda para os retos a sensatez, é escudo para os que andam na integridade. Ele vigia as sendas do direito e guarda o caminho dos seus fiéis. Então entenderás a justiça e o direito, a retidão e todos os caminhos da felicidade” (Pr 2,6-9).

O conhecimento é uma arte de viver e organizar as pessoas, os animais e as plantas na convivência harmoniosa. Comer desse fruto e desrespeitar a arte da vida pode significar destruição e sofrimento, como se dá com os governantes que se põem no lugar de Deus. Eles cometem abusos de poder, injustiça e exploração (Pr 25,2-3; Ez 28,13-19). Os grupos governantes devem saber “rejeitar o mal e escolher o bem”. A sua missão é ser cocriadores com Deus, cultivando e guardando o universo (Is 7,15; 1Rs 3,9). O mandamento de Deus é não comer: “Se comer, terás de morrer”. Ou seja, a ordem é viver!

“Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda” (Gn 2,18). Permanecer só não está de acordo com a finalidade da criação. Os seres vivos se relacionam e se inter-relacionam. A palavra hebraica neged pode ser traduzida por correspondência. Esse termo tem o sentido de correlacionamento. Para o ’adam será feita uma auxiliar, ’ezer, com quem ele possa conviver.

A auxiliar é uma presença indispensável. Sem ela, não há vida. O termo ’ezer é posto em paralelo com a salvação (Sl 37,39-40; 79,9). Para que o ser humano possa viver, é necessária uma presença capaz de fazê-lo relacionar-se com a totalidade do seu ser. O animal pode consolar o ser humano, mas não pode correlacionar-se com ele na qualidade de pessoa.

O ’adam nomeia todos os seres vivos. Esse gesto indica relações próximas com toda a criação na vida cotidiana dos camponeses(as). Dar nome, na cultura judaica, corresponde a dar existência. Mas o homem ainda permanece só, para ele não há uma auxiliar. O texto afirma que Javé Deus pegou uma costela do homem e fez crescer carne em seu lugar (Gn 2,21). Vejamos o simbolismo presente nesse gesto. Segundo a tradição, a costela é o local onde reside o amor. A carne indica parentesco profundo (Gn 29,14; Jz 9,2; 2Sm 5,1). Ou seja, mulher e homem possuem a mesma natureza e estão intimamente ligados: “carne de minha carne!” (Gn 2,23).

O ’adam só é bom quando pode correlacionar-se com a pessoa amada. O homem exclama: “Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem!” Podemos notar que a palavra hebraica para homem não é mais ’adam, mas ’ish, e para mulher ishah. O ’adam só se define como homem a partir da criação da mulher: é nesse momento que ele se reconhece como ser humano diferenciado.

“O homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Gn 2,24). Tornar-se uma só carne é expressão que denota vínculo familiar (Gn 37,27). O verbo unir, dabhaq, significa ação de segurar, ligar-se. A ligação é mais forte que os vínculos de sangue: “O amor é forte, é como a morte… Uma faísca de Javé” (Ct 8,6).

Pela gratuidade e pelo amor de Deus, o ser humano é criado: “Javé Deus insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,8). É fundamental que as pessoas aprendam a conviver com seus semelhantes, com todos os seres vivos e com toda a natureza. É na vivência fraterna que o Deus da vida se faz presente: “Vede: como é bom, como é agradável habitar todos juntos, como irmãos. Porque aí manda Javé a bênção, a vida para sempre” (Sl 133,1.3).

Esse mundo perfeito descrito em Gênesis 2,4b-24, coberto das bênçãos do Deus da vida e pleno de vivência fraterna, provavelmente reflete a realidade das aldeias comunitárias de Israel no período tribal: um jardim de Éden, das delícias, da vida e da convivência prazerosa é um paraíso. Pouco a pouco, no tempo da monarquia, essa vivência solidária foi sendo destruída. A grande questão é a seguinte: onde está a raiz do mal? É a eterna pergunta da humanidade! A essa pergunta é que o relato de Gênesis 2,25-3,24 responde por meio da linguagem simbólica do seu tempo, denunciando a causa dos conflitos e sofrimentos. Vamos acompanhar a voz da denúncia?

 

3. A causa da desordem e do sofrimento: Gn 2,25-3,24

“Os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam” (Gn 2,25). O último versículo do capítulo 2 tem a função de introduzir o capítulo 3. A situação é de paz, harmonia e integração. A entrada da serpente vai provocar mudanças. O relato de Gênesis 3 descreve a serpente como um ser em oposição a Deus. Ela levanta suspeita sobre as intenções de Deus a respeito da proibição de comer os frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal. O que pode estar por trás desse texto?

Alguns afirmam que o relato retrata uma crítica à política de Salomão, que se casou com a filha do faraó (1Rs 11,1), assumindo um governo semelhante ao do império egípcio. Na tiara do faraó do Egito havia o símbolo da serpente, que representava a sua divindade e o seu poder.

Outra possibilidade de interpretação põe em foco a religião oficial, que legitima e alimenta a exploração do Estado sobre o povo. Na religião de Canaã, havia um deus chamado Baal, deus da chuva e da fertilidade, representado por uma serpente. A serpente é sinal da fecundidade e da renovação da vida. Uma das histórias do povo cananeu conta o seguinte: Mot, a divindade da morte e da esterilidade, mata Baal. Anat, irmã e esposa de Baal, mata o deus Mot, fazendo Baal retornar à vida. Esse ciclo se repete todos os anos. Isso explica o período das secas, quando Baal está morto, e o período das chuvas, quando o deus retorna à vida e se encontra com Anat.

A divindade Baal, simbolizada pela serpente, é muito cultuada no Antigo Israel, pois garante chuva, colheitas abundantes e fecundidade aos animais. Com a necessidade de mais produtos para o comércio e de pessoas para manter o exército e a corveia (1Rs 5,27-32), o Estado se apropria da religião do povo, especialmente da crença em uma deusa simbolizada pela serpente. A religião é utilizada para aumentar a produção e a reprodução. A presença da serpente de bronze como objeto do culto se verifica até no templo de Jerusalém (2Rs 18,4). Portanto, quem aceita os cultos promovidos pelo Estado acaba arruinando a própria vida e a vida das comunidades.

Optando por uma ou por outra explicação, o mais importante é ler o relato de Gênesis 3 à luz da história e da realidade do povo de Israel. É possível que, por trás da figura da serpente do relato bíblico, esteja a polêmica contra o Estado, contra sua religião, ganância e exploração, que provocam a desordem, a violência, a dor e o sofrimento do povo. É “a queda do paraíso” das camponesas e dos camponeses. A preocupação do autor é desmascarar os mecanismos do mal que atingem a totalidade do ser humano, sua missão de cultivar e guardar a terra criada pelo Deus da vida. Acompanhemos, passo a passo, a ação da serpente e dos seres humanos.

A serpente é descrita como o animal mais astuto. De acordo com os textos de Ugarit, a divindade serpente possui astúcia e sabedoria. Embora seja astuta, o relato bíblico afirma que a serpente não é uma divindade. Ela não passa de uma criatura de Deus e por isso não deve pôr-se no lugar de quem a criou! Mas a serpente assume a atitude de quem desafia o Criador. De maneira ambígua, numa aparente atitude de aliada, ela inicia o diálogo: “Então Deus disse: ‘Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?’” (Gn 3,1).

A mulher e a serpente discutem sobre o contrato entre Deus e Adão. Conforme a narrativa, o acordo foi feito antes de Eva ter sido criada. Eva corrige a serpente, que tinha exagerado ao falar da proibição de Deus: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Dele não comereis’” (Gn 3,3). A mulher também exagera, pois não especifica se se trata da árvore da vida ou do conhecimento do bem e do mal (Gn 2,9). E ainda acrescenta: “Nele não tocareis sob pena de morte”. Por que a mulher acrescenta a proibição de não tocar? Será que isso tem que ver com o fato de que, quanto mais próximo, maior a tentação?

A serpente prontamente responde: “Não, não morrereis!” Em seguida, revela as supostas intenções ocultas de Deus: “Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” (Gn 3,5). A serpente se mostra mais conhecedora de Deus do que o homem e a mulher. Ela sugere que Deus seja egoísta e falso ao querer impedir que o ser humano se torne como os deuses. É interessante notar que não há um convite explícito à desobediência; a serpente apenas dá a entender, e isso é suficiente. Tendo cumprido o seu papel, ela sai de cena. No cenário, permanece a mulher e a árvore do fruto proibido.

A serpente consegue introduzir a dúvida no coração da mulher. Eva lhe dá razão: a árvore é boa, formosa e desejável (Gn 3,6). A mulher não vê o perigo. Ela pensa poder encontrar no fruto proibido tudo de que precisa: liberdade e imortalidade. Em seus ouvidos ressoam apenas as palavras da serpente. Então: “Tomou-lhe o fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu” (Gn 3,6). Imediatamente os dois observam as consequências: constatam que estão nus. Quando o ser humano se comporta como Deus, fazendo tudo o que deseja, sem respeitar os limites, ele fica só, não se relaciona nem com Deus, nem com os seres vivos, nem com a natureza.

Nos dias de hoje, diante dos desmatamentos abusivos e das constantes agressões ao meio ambiente, percebemos que muitas pessoas correm atrás do poder e do lucro, esquecendo-se de sua missão de cultivar e guardar a terra e pondo-se no lugar do Criador. Essa realidade vem de longe… Por volta do ano 740 a.C., um profeta denuncia: “Eis que virão dias — oráculo do Senhor Javé — em que enviarei fome à terra, não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir a palavra de Javé” (Am 8,11). Quando o ser humano não escuta o seu criador, provoca a autodestruição.

Nova cena se abre: Deus passeia no jardim ao cair da tarde. Existe familiaridade e proximidade entre ele e os humanos. Porém, o medo provoca a ruptura com Deus e o distanciamento dele: “Onde estás?” Mulher e homem se escondem, mas apenas o homem responde: “Tive medo porque estou nu, e me escondi” (Gn 3,10). Começa o processo de investigação. Deus interroga o homem e a mulher. Além do distanciamento, a segunda consequência é a acusação do homem contra a mulher (Gn 3,12). A terceira consequência, que aparece na resposta da mulher, é a destruição da harmonia entre os humanos, a terra e os animais (Gn 3,13). Ninguém assume suas responsabilidades: o homem acusa a mulher, que acusa a serpente. Deus não interroga a serpente; ela é amaldiçoada.

O primeiro oráculo é contra a serpente: “És maldita entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida. Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,14-15). O mais sábio entre todos os animais agora é maldito, derrotado e condenado a comer poeira, como símbolo da humilhação (Mq 7,17). Pode ser uma crítica contra o culto às divindades da fertilidade incentivadas pelo Estado. Na cena anterior, serpente e mulher aparecem como aliadas; agora, como inimigas de geração em geração.

O segundo oráculo é contra a mulher: “Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará” (Gn 3,16). Dar à luz com dor e ser dominada pelo homem são realidades vivenciadas pelas mulheres. No período da monarquia, as dores relacionadas à maternidade aumentam, pois o Estado controla até mesmo o útero das mulheres, com a exigência de maior número de filhos(as) para servirem o exército ou para estarem a serviço da corte. Portanto, o autor desse relato, ao apresentar essas duas realidades como castigo divino pela transgressão, está afirmando que elas não vêm de Deus. Por um lado, o relato justifica o parto com sofrimento e a dominação masculina. Por outro, mostra que o fato de dar à luz com dor e a dominação sexual não fazem parte do plano original de Deus.

O terceiro oráculo é contra Adão: “Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos e comerás a erva dos campos. Com o suor do teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó retornarás” (Gn 3,17-19). O castigo do homem é voltar à sua origem, a uma terra sem água, sem vida, que só produzirá espinhos e cardos. É ser condenado a uma vida sofrida, trabalhando de sol a sol. O homem não é amaldiçoado, mas, por causa do seu egoísmo, é obrigado a pesados trabalhos, e a terra se torna maldita. O seu maior castigo é a morte.

É interessante observar que cada oráculo espelha o cotidiano dos(as) camponeses(as). Nos campos, o contato com cobras venenosas arrastando-se pelo chão é frequente. Dar à luz com dor representa a realidade das mulheres, das quais muitas morrem durante o parto ou são forçadas a ter mais filhos por exigência do Estado (Gn 35,16-20; Os 4,4-14). As guerras e suas atrocidades atingem até as grávidas (2Rs 8,12). O trabalho duro, e muitas vezes improdutivo, não é nenhuma novidade. Na monarquia, as camponesas e os camponeses, ou mesmo seus filhos(as), trabalham a serviço do Estado e não veem os frutos do trabalho. A constante exploração da terra em proveito do comércio a torna improdutiva, aumentando ainda mais o sofrimento da população camponesa.

Depois de Deus ter pronunciado os oráculos, o homem entra em cena e nomeia a sua mulher: Eva, mãe de todos os viventes. É um rasgo de esperança: apesar do pecado, a humanidade sobreviverá. Em seguida, Javé Deus faz roupas de pele para o homem e para a mulher. Roupas que simbolizam proteção para a vida fora do jardim. Deus aceita a opção livre do ser humano e o acolhe como é. Por fim, Adão e Eva são expulsos do jardim. O ser humano foi expulso para cultivar o solo de onde foi tirado. E ele deve transformar a terra seca em um jardim.

Em seguida à expulsão do ser humano, “Deus colocou diante do jardim do Éden os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida” (Gn 3,24). O acesso ao jardim não está completamente fechado. As portas continuam abertas — apenas há guardas vigiando a entrada. O desejo do paraíso perdido continua habitando no coração do ser humano e permanece acesa a chama da esperança de voltar a esse lugar utópico (cf. Is 65,17-25).

A história de Adão, Eva e a serpente não termina aqui. A pretensão de ser como Deus está na raiz de todos os males. Agindo de maneira autossuficiente, o ser humano se distancia do projeto do Deus da vida. A ganância e a ambição humana produzem violência, sofrimento, escravidão e morte. As primeiras páginas da Bíblia registram crescente violência no mundo. Caim, por se sentir desvalorizado diante de seu irmão, elimina-o (Gn 4,8). Em seguida, lemos: “Lamec disse às suas mulheres: ‘Ada e Sela, ouvi minha voz, mulheres de Lamec, escutai minha palavra: eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes!’” (Gn 4,23-24). E mais: “A terra está cheia de violência por causa dos homens” (Gn 6,13).

A história de Israel, na qual nasceu o livro do Gênesis, é marcada pela realidade de violência e de morte. Muitas vozes proféticas denunciaram o abuso das autoridades como a causa do mal. No exílio, o sacerdote Ezequiel acusa não só os pecados dos grupos dirigentes de Israel, mas também os da autoridade de Tiro: “Tu eras modelo de perfeição, cheio de sabedoria, de beleza perfeita. Estavas no Éden, jardim de Deus… Em virtude do teu comércio intenso te encheste de violência e caíste em pecado” (Ez 28,11-13.16).

O povo de Deus, na atualidade, continua sofrendo com o pecado social: as situações de injustiça. A todo momento, encontramos pessoas vitimadas pela violência e desfiguradas pela realidade de fome, miséria e falta de dignidade humana. São as Yaras de hoje. Trata-se de situação que questiona e desafia a nossa prática religiosa. Afinal, vivemos num país onde a maioria é batizada na religião cristã. Isso nos questiona: será que nossa vivência da religião nos leva a um compromisso com a justiça social ou está presa a preceitos e rituais vazios, sem amor ao próximo? Será que estamos presos a uma compreensão distorcida do pecado? Enfim, como interpretamos o pecado de Adão, de Eva e da serpente?

 

4. Um desvio na história da interpretação

Os relatos de Gênesis 1-11, especialmente a criação do universo e a história de Adão, Eva e a serpente, estão entre os textos bíblicos mais conhecidos e lidos. Desde a nossa infância, essas histórias são contadas e repetidas por nossas mães e pais, tias e tios e catequistas. Aprendemos que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou. Ouvimos as histórias sobre Adão, Eva e a serpente para aprender como o pecado entrou no mundo. E quantas vezes vimos pinturas ou desenhos que mostravam a maçã como o fruto proibido…

O relato de Gênesis 2,4b a 3,24 tem o objetivo de explicar a origem do homem e da mulher e como o mal entrou no mundo criado por Deus. O autor usa imagens e símbolos próprios do seu tempo e de sua cultura: por exemplo, o barro, a serpente, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Por se tratar de um relato simbólico, há muitas possibilidades de interpretação para esse texto, porém a maioria reforça o papel da mulher como responsável pelo pecado da humanidade.

O Primeiro Testamento, nas tradições mais antigas, não utiliza a história de Adão e Eva, a queda e a punição, para justificar a realidade de destruição. Na visão de alguns profetas, o pecado é consequência da falta de conhecimento de Deus e resultado das situações de injustiça provocadas pelas elites dirigentes (Os 4,1-3; Ez 28,11-19). A interpretação da história de Adão e Eva como pecado e queda se desenvolve somente a partir do século II a.C., período em que o povo de Israel se encontrava dominado pelos gregos. O livro de Jesus ben Sirac, conhecido com o nome de Eclesiástico, é dessa época e, conforme a sabedoria oficial, afirma: “Foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos” (Eclo 25,24).

A partir da dominação do império grego no Oriente (333 a.C.), Israel vive um processo de mudança de mentalidade. Nesse período, os relatos bíblicos mais antigos, especialmente aqueles em que as mulheres estão presentes, são reinterpretados, recebendo outro enfoque. De um lado, os relatos antigos são carregados com paixões perigosas; de outro, enfatizam a beleza como algo perigoso e exclusivo das mulheres. Essa mentalidade também aparece no livro da sabedoria de Jesus ben Sirac: “Desvia teu olho de mulher formosa, não fites beleza alheia. Muitos se perderam por causa da beleza de mulher” (Eclo 9,8; 42,12-14).

Os textos apócrifos que surgem nessa época apresentam uma interpretação muito negativa de alguns relatos do Primeiro Testamento. No livro dos Jubileus há uma retomada tendenciosa da história de Adão e Eva: “Deus ficou com raiva da mulher” (3,23). O primeiro livro de Adão e Eva reforça o papel da mulher como a única responsável pela queda. Esse texto põe na boca de Eva as seguintes palavras: “Fui eu quem provocou a queda de Vosso Servo, do jardim para este lugar perdido; da luz para esta escuridão; e da morada da alegria para esta prisão” (primeiro livro de Adão e Eva, 5,5). Os nomes são entendidos como se fossem de pessoas individuais. Mas, na forma original, Eva, havvah, mãe dos viventes, e Adão, ’adam, gênero humano, não são nomes próprios.

No Testamento dos Doze Patriarcas, a instrução de Rúben é extremamente negativa em relação às mulheres. Eis o que ele diz: “Não olheis para a beleza das mulheres. As mulheres são maldosas, meus filhos; se não possuem nem força nem poder sobre o homem, procuram atraí-lo por meio de encantamentos, e, se não conseguem dobrá-lo por esse meio, pressionam-no com astúcias. Sobre elas falou-me o Anjo do Senhor, ensinando-me que as mulheres são mais sujeitas ao espírito da luxúria que os homens” (Testamento de Rúben, 4,1; 5,1).[2]

Na primeira epístola a Timóteo, encontramos um texto fortemente influenciado por esse período, e não pelos relatos originais do Primeiro Testamento. Eis o que diz o texto:

 

Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; mas que se ornem, ao contrário, com boas obras, como convém a mulheres que se professam piedosas. Durante a instrução, a mulher conserve o silêncio, com toda a submissão. Não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade (1Tm 2,9-15).

 

Meu Deus, como o texto da primeira carta a Timóteo está distante de Gênesis 2-3! De acordo com o relato de Gênesis 3, a única que seduz é a serpente, que, na tradição cristã, foi demonizada. A serpente cresceu tanto, que se tornou dragão (Ap 12,9). A transgressão é realizada pela mulher e pelo homem. Na primeira carta a Timóteo, é dito que a mulher será salva pela sua maternidade, induzindo-nos a pensar que a transgressão foi de ordem sexual. O texto ainda enfatiza que a mulher, por causa do seu pecado, deve viver de maneira submissa e com modéstia.

É sempre bom voltar aos relatos originais. Deus cria ’adam e este só se torna homem na relação com a mulher. No mundo criado por Deus, mulher e homem são chamados a viver como uma só carne. O pecado não vem do Criador, mas do desejo de concentrar o poder nas próprias mãos, de ser como Deus. Essa tentação continua presente, e é preciso sempre lutar contra ela.

 

5. Construir um jardim em Éden

O relato de Gênesis 2,4b-3,24 é muito instrutivo. É um texto que alimenta e reivindica o dever e o direito de vivência fraterna e harmoniosa com a mãe Terra. Para o povo de Israel, o mal e o sofrimento não são vontade de Deus, mas consequências da desobediência humana. O projeto de Deus é a integração entre todos os seres criados. Mas nossa realidade de hoje mostra o contrário: as desigualdades sociais são geradas pelo sistema neoliberal, que incentiva o individualismo e o acúmulo e deixa à margem milhões de seres humanos.

O poema abaixo, de Manuel Bandeira, continua desgraçadamente atual. Cada vez que o lemos, sentimos o coração apertar. Vamos relê-lo, deixar emergir nossa sensibilidade diante desse triste cenário e resgatar nossa capacidade de solidária indignação.

 

Vi ontem um bicho

            Na imundice do pátio

            Catando comida entre os detritos.

            Quando achava alguma coisa,

            Não examinava nem cheirava:

            Engolia com voracidade.

            O bicho não era um cão,

            Não era um gato,

            Não era um rato.

            Esse bicho, meu Deus, era um homem

(Manuel Bandeira).

 

É um grito que denuncia a não realização do projeto da convivência e da solidariedade. Que o nome de Eva, que significa “mãe dos viventes”, portadora da vida (Gn 3,20), seja compreendido e vivenciado no mundo inteiro. Assumamos o projeto do Deus da vida na busca da realização de uma sociedade justa, onde Deus, os seres humanos e todos os seres vivos passeiem juntos no jardim em Éden.

 

 

Bibliografia

APÓCRIFOS III: os proscritos da Bíblia. Tradução de Maria Helena Oliveira Tricca. São Paulo: Mercuryo, 1996.

BOFF, Leonardo. O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil. São Paulo: Salamandra, 2001.

BRENNER, Athalya. Gênesis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000.

NAKANOSE, Shigeyuki. Uma história para contar… A páscoa de Josias: metodologia do Antigo Testamento a partir de 2Rs 22,1-23,30. São Paulo: Paulinas, 2000.

PAGELS, Elaine. Adão, Eva e a serpente. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.



[1] Texto extraído e adaptado de Leonardo Boff. O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil. São Paulo: Salamandra, 2001, pp. 63-64.

[2] Apócrifos III: os proscritos da Bíblia. Tradução de Maria Helena de Oliveira Tricca. São Paulo: Mercuryo, 1996, pp. 219-220.

Shigeyuki Nakanose, svd