De acordo com o evangelho segundo Lucas, o anúncio da boa nova da libertação dos pobres constitui o centro da mensagem de Jesus. Basta lembrar a solene introdução à vida pública de Jesus de Nazaré (Lc 4,18) — por sinal, desde Medellín, o texto bíblico mais citado na América Latina. Ou, então, o cântico de Maria, o Magnificat — espécie de síntese de todo o terceiro evangelho.
O evangelho dirige-se aos pobres, e Lucas respeitou essa orientação ao redigir seu evangelho. Jesus veio para os pobres. Seu evangelho dirige-se aos pobres, sendo para eles a resposta à imensa aspiração de libertação.
Assim, depois de ter centrado todo o seu evangelho na pobreza, Lucas encontra-se diante de um problema: se o evangelho se dirige aos pobres, o que acontece com os ricos? O problema é tão urgente que Lucas escreve em primeiro lugar para os ricos. Ele sente que seu evangelho deixa os ricos desconcertados. Se Jesus veio para os pobres, qual será o lugar dos ricos?
Os Atos dos Apóstolos trazem a resposta a esse problema. Aí está contida a resposta à preocupação dos ricos que quiserem ser cristãos — encontrando-se em número significativo nas comunidades cristãs.
1. Um livro escrito para os ricos
Os historiadores das origens cristãs mostram que desde o início houve convertidos ricos e que esses ocuparam posição de destaque nas comunidades — como não poderia deixar de ser. Essa presença foi, sobretudo, significativa nas comunidades gregas, como consta nas epístolas paulinas.
Quais foram as motivações que atraíram pessoas ricas para as comunidades formadas essencialmente de pessoas pobres? É possível que os ricos não tenham sido atraídos pela pobreza, mas que se tornaram cristãos apesar dela, talvez seduzidos pela simplicidade da sua religião — livre das contaminações degradantes de tantos aspectos das religiões tradicionais —, ou então convencidos pela pureza moral e pela vida comunitária dos primeiros cristãos.
Um sinal de que o livro se dirige mais propriamente aos ricos convertidos está no destinatário. O livro dirige-se a “Teófilo”. Pouco importa se Teófilo designa pessoa com esse nome, ou se Teófilo é qualificativo que eventualmente representa todos os “Amigos de Deus” (“teófilo”). De qualquer maneira, trata-se de pessoa de consideração.
O evangelho de Lucas, completado pelos Atos, é o único evangelho destinado a uma pessoa (ou grupo de pessoas). Os outros são destinados a uma comunidade ou a várias comunidades. Por que esse interesse particular de Lucas, que, de certo modo, cria um privilégio? É difícil imaginar que Lucas tenha escrito essa obra especialmente para um pobre. Trata-se de pessoa importante (ou de grupo de pessoas importantes) — humanamente falando. A obra de Lucas mostra que pessoas importantes humanamente falando, também podem ser importantes eclesialmente falando.
É bom levar em conta que na antiguidade, e durante muitos séculos, autores dedicavam sua obra a uma pessoa rica que assumia o custo da publicação. Até o século XV, publicar um livro era muito caro. Lucas não devia ser rico e precisava de um protetor para financiar-lhe o trabalho. Nas outras comunidades, tratando-se de livros destinados à própria comunidade, pode-se supor que a comunidade pagava. No caso de Lucas, não se trata de obra financiada por uma comunidade, mas por uma pessoa (ou grupo de pessoas). Nenhum pobre teria podido financiar a redação e a publicação de um livro — sequer um livro destinado aos pobres.
O interesse pelos ricos e o destaque que eles recebem no livro dos Atos percorre-o por inteiro, a começar pela visão idílica da primeira comunidade em Jerusalém. Nessa comunidade, onde havia tanta comunhão, fraternidade, e também tantos pobres, Lucas cita apenas três nomes (todos de pessoas ricas): Barnabé, Ananias e Safira, porque quer exortar e advertir os ricos, aos quais se destina o livro.
Como exemplo de comunhão na comunidade primitiva, Lucas refere-se à generosidade de um homem rico: Barnabé. Como mau exemplo, cita igualmente um casal de ricos. Por quê? Com certeza porque o problema de Lucas é a presença e o comportamento que se esperam dos ricos. Lucas exalta Barnabé e condena Ananias e Safira, porque quer exortar e advertir os ricos, aos quais se destina o livro.
É verdade que na descrição da comunidade primitiva intervêm também Pedro e João. Pedro diz explicitamente: “ouro e prata não tenho” (At 3,6). Pedro e João não são ricos. Não têm ouro nem prata para responder ao pedido do mendigo. Não teriam resposta para os pobres? Como entender a resposta de Pedro?
Hoje, se a narração fosse refeita, Pedro diria: “Meu amigo, eu sou tão pobre quanto você. Vamos formar uma associação para reivindicar os nossos direitos”. Na mente de Lucas tal ideia não teria podido ser concebida. Não caberia no contexto da sociedade antiga. Mas, então, Pedro e João não vão dar nada? Por serem pobres, não podem dar nada? Pelo contrário, não têm ouro nem prata, mas têm um poder maior: o poder de restituir a saúde: “O que tenho, porém, isto te dou: em nome de Jesus, o Nazareu, põe-te a caminhar!” (3,6). O poder de cura supre a falta de dinheiro. Os apóstolos podem dar também. São ricos de outra riqueza. Sendo ricos, podem dar.
Pedro e João foram presos por causa da sua pregação pública. Compareceram diante do sinédrio. Os juízes ficaram admirados porque “se tratava de homens sem instrução, homens do povo” (4,13). Essa é observação típica de Lucas! No entanto, apesar de não terem instrução, fazem milagres: detêm um poder que os torna ricos também, e merecem consideração. O poder que têm os apóstolos é a sua riqueza. Lucas não despreza a riqueza, pelo contrário, atribui-a também aos apóstolos.
Quando começam as missões de Pedro, os destinatários são muito significativos. Pedro foi chamado a Jope. “Havia em Jope uma mulher que era discípula; chamava-se Tabita — em grego, gazela. Era rica de boas obras e em esmolas” (9,36). Adoeceu e morreu. Pedro restituiu-lhe a vida. Seria um acaso Lucas ter escolhido, justamente para restituir a vida, o exemplo de uma mulher rica que distribuía muitas esmolas? Parece evidente que aproveita o milagre de Pedro para dar uma lição aos ricos.
Depois de Tabita vem Cornélio, centurião romano. Como centurião romano, atuando em lugar distante do centro do império, é grande autoridade. Trata-se de alguém que é rico da riqueza do império e do poder militar. Ora, “em sua piedade e temor a Deus, ele cumulava de liberdade o povo judeu” (10,2). Era também exemplo de bom rico.
No mesmo contexto, Lucas narra o episódio de Filipe, que anunciou o evangelho e batizou o eunuco etíope, alto funcionário de Candace, rainha da Etiópia, e administrador geral do seu tesouro, que fora a Jerusalém em peregrinação. Esse era riquíssimo. Claro que Lucas não podia deixar de mencionar um episódio que havia posto o evangelho em contato com uma pessoa tão poderosa, a segunda pessoa mais importante no reino.
Depois do ciclo de Pedro, vem o ciclo de Paulo. Nas missões de Paulo, Lucas destaca também todas as pessoas ricas que foram alcançadas pela pregação do apóstolo. Nunca cita nomes de pobres.
O ponto de partida foi Antioquia. Naquele tempo em Antioquia havia cinco dirigentes de comunidades. Entre eles estavam Barnabé e Saulo. Barnabé era rico e Saulo também — pelo menos de nascimento e formação. Entre eles destacava-se Manaém, “companheiro de infância do tetrarca Herodes” (13,1). Esse, com certeza, era rico. Era costume que os filhos dos reis fossem educados com um grupo de meninos da sua idade. Esses meninos eram escolhidos entre as melhores famílias. Recebiam a mesma educação dos filhos do rei e eram preparados para ocupar posições importantes no reino. Manaém aparentemente ficou distante do poder, mas nem por isso deixou de ser pessoa importante.
Na, primeira etapa da sua viagem missionária, Barnabé e Paulo chagaram a Pafos, onde tiveram a oportunidade de encontrar o próprio procônsul, Sérgio Paulo. Segundo Lucas, depois do episódio do mago Elimas, o procônsul interessou-se pelo evangelho e Lucas diz que “o procônsul abraçou a fé” (13,12).
Muitos leitores dos Atos surpreendem-se: como seria possível que um procônsul romano tenha abraçado a fé cristã nessa época? Parece inacreditável. Por isso há exegetas que não estão certos a respeito da informação de que dispõe Lucas a respeito dessa viagem para Chipre. O imaginário popular não teria aumentado os fatos? Pode até ser que o procônsul tenha manifestado certo interesse. Mas que se tenha tornado cristão parece inviável. Em todo caso, o episódio mostra claramente onde está o interesse do autor. A conversão de um procônsul merece ser mencionada.
Em Antioquia da Pisídia, a pregação dos apóstolos teve muita ressonância. Muitos abraçaram a fé. Esse êxito despertou o furor de certos líderes judeus e os apóstolos foram expulsos da cidade. A maneira como Lucas narra o episódio é típica dele: “Os judeus lançaram a agitação entre as mulheres de alta posição que adoravam a Deus, como também entre os principais da cidade; provocaram uma perseguição contra Paulo e Barnabé, e os expulsaram de seu território” (13,50). Se Paulo e Barnabé se tivessem contentado em pregar para os operários ou os escravos da cidade, não teriam sido perseguidos. Ocorre que procuraram atingir o nível mais elevado: os chefes da cidade e as senhoras da alta sociedade que já estavam entre os prosélitos. Um grupo de líderes judeus reagiu, certamente porque não queria perder esse público privilegiado. Se Paulo tivesse convertido alguns escravos, não teria suscitado o ciúme desses líderes. Lucas destaca a importância dos ricos para os apóstolos.
Esse episódio reflete a interpretação de Lucas. É impossível saber o que teria acontecido historicamente. Lucas dispõe de poucas informações confiáveis. Então reconstitui os acontecimentos a partir de suas preocupações. Pelo visto, sua preocupação concentra-se nas pessoas da alta sociedade, enquanto destinatárias da evangelização.
Em Filipos, Paulo dirige-se para o lugar da oração dos judeus, situado ao longo de um rio. Ali encontra um grupo de mulheres. O nome de uma delas aparece. Trata-se de “Lídia”. Lídia era comerciante de púrpura — matéria muito preciosa. Era rica comerciante. Converteu-se à palavra dos missionários e convidou-os para que se hospedassem na sua casa. Era mulher rica. Das outras nada se diz (16,14-15). Não interessam ao autor dos Atos.
Paulo e Silas chegaram a Bereia. Foram muito bem acolhidos na sinagoga local. “Muitos dentre eles abraçaram a fé, como também mulheres gregas de alta posição e homens, em número apreciável” (17,12). Não importa aqui o valor histórico dessa notícia. O que é notável é a importância dada pelo autor às mulheres de alta posição.
Em Éfeso, o destaque coube a Apolo: “Era homem sábio, versado nas Escrituras” (18,24). O interessante é que, nas epístolas, Paulo menciona muitas pessoas das quais nunca deixa transparecer se são ricas ou pobres. Lucas é diferente: concede lugar de destaque aos ricos em relação aos pobres.
Se nos perguntarmos por que o livro evoca tanto pessoas ricas, particularmente mulheres, a resposta pode ser esta: porque o livro foi escrito para elas — as pessoas ricas — e particularmente às mulheres de alta sociedade que participavam da vida cristã. Essas mulheres questionavam-se a respeito da sua condição: como podemos ser cristãs, sendo ricas? Lucas vai responder.
2. A presença do dinheiro nos Atos
O livro dos Atos confere ao dinheiro importância especial. Isso confirma que esse livro foi escrito para os ricos. O dinheiro é preocupação contínua para eles. A conversa dos ricos gira sempre ao redor do dinheiro. A preocupação pelo dinheiro ocupa continuamente sua mente. Tal como acontece hoje, acontecia também no passado. Os ricos enxergavam a vida pelo lado do dinheiro. Por isso Lucas fala muito em dinheiro. É o precursor do nosso clero.
Vejamos o que acontece em Éfeso. Pelas epístolas sabemos tudo o que Éfeso significou para Paulo. Ali foi preso, escreveu algumas de suas mais importantes epístolas, teve de enfrentar a oposição de outros apóstolos e foi o centro dos seus grandes combates missionários.
De tudo isso, nada aparece no livro dos Atos. Porém o autor dedica dez versículos à história do exorcismo que levou um grupo de judeus a queimar os seus livros de magia. “Quando se calculou o valor deles, verificou-se que chegava a cinquenta mil moedas de prata. Assim, pela força do Senhor, a Palavra crescia e aumentava em poder” (19,19-20). São os ricos que calculam em dinheiro o crescimento do Reino de Deus. Não deixa de ser significativo que Lucas se interesse por um pormenor tão trivial.
Depois disso, Lucas narra o longo episódio do motim provocado pelos artesãos que viviam do comércio de objetos religiosos dedicados ao culto de Ártemis. São vinte versículos para um episódio que nada nos revela sobre o ministério de Paulo. O problema aqui também é dinheiro. Toda uma profissão está ameaçada e com ela a prosperidade da cidade de Éfeso, santuário riquíssimo que atraía peregrinos “do mundo inteiro” (19,27). De novo o assunto é dinheiro.
Antes disso, evocando a missão de Pedro e João na Samaria, o que chama a atenção do autor é o episódio do mago Simão. Simão queria fazer o dinheiro com o poder mágico que tinha descoberto nos apóstolos. Esse episódio merecia os quinze versículos do total de vinte dedicados à missão na Samaria? Por que escolher justamente esse fato, a não ser porque se trata de dinheiro?
O primeiro conflito interno da Igreja, e o único mencionado por Lucas em todo o livro, refere-se à questão da manutenção das viúvas helenistas (6,1). Questão de dinheiro! Há exegetas que desconfiam da existência de problemas mais amplos aí. O fato de que a perseguição se estendeu aos helenistas e não atingiu os apóstolos (8,1), revela que havia diferenças importantes entre hebreus e helenistas. Estêvão rejeita radicalmente o templo de Jerusalém (7,48). No entanto os apóstolos frequentam assiduamente o templo (2,46). Mas isso aparece no texto, e o único interesse refere-se ao problema financeiro.
Na comunidade primitiva o interesse concentra-se na partilha dos bens, situação que deveria espantar os ricos (2,44-45; 4,32-37). Claro que essa comunhão dos bens é novidade extraordinária numa sociedade tão dividida socialmente como era o caso da sociedade imperial. Para os ricos é um enigma incompreensível. Precisam de explicação — que está nos casos de Barnabé, Ananias e de Safira.
De modo concreto, para os ricos, em que consiste a partilha dos bens? Resposta: consiste na esmola. Trata-se de vender bens relevantes e dar o arrecadado à comunidade.
Lucas aponta aos ricos o caminho da esmola. Porém, não se deve entender esmola no sentido atual da palavra. Hoje, dar esmola é dar parte insignificante da riqueza, que em nada altera a vida de quem a oferece. No caso de Barnabé ou de Ananias, trata-se de verdadeiro sacrifício. Os ricos são chamados a fazer doações importantes, alterando-lhes o nível de vida.
3. A doação
A referência fundamental é Barnabé, que “possuía um terreno”. Ele vendeu o terreno, trouxe a importância e a depositou aos pés dos apóstolos (4,36-37). Com certeza podemos presumir que Barnabé não tinha somente esse terreno. Devia ter também uma casa, além de objetos de uso pessoal, que não vendeu nem doou.
Por conseguinte, as fórmulas famosas: “punham tudo em comum” (4,32), “tudo partilhavam” (2,44), não devem ser tomadas em seu sentido rigoroso, ao pé da letra. Igualmente é preciso relativizar as fórmulas genéricas: “Vendiam as suas propriedades e os seus bens para repartir o dinheiro” (2,45), “os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas, e os depunham aos pés dos apóstolos” (4,34-35). Essa generalização trata-se de fórmula de retórica.
Barnabé mostra a realização concreta do ideal da primeira comunidade cristã. Não se diz que viviam em comunidade, todos juntos — embora esse modo de viver tenha sido experimentado mais tarde na história monástica. A vida comum presta-se melhor à condição de solteiros. Para as famílias, a vida comunitária é mais difícil — embora haja entre elas muitas formas de trocas e ajudas mútuas.
Quando se diz da primeira comunidade cristã que tudo era comum entre eles, a palavra “tudo” é retórica, e provavelmente procede da filosofia grega, na forma de divulgação popular. Os filósofos antigos valorizavam muito a “amizade” e se dizia que “entre amigos tudo é comum” — embora, na prática, raramente isso funcionasse. Sabe-se que a amizade entra em crise quando um amigo perde o status econômico e social. Lucas quis dizer que encontrou na primeira comunidade cristã a realização do ideal da amizade. Porém, concretamente, o que aconteceu?
Os primeiros cristãos conservavam as suas casas, pelo menos aquelas em que moravam, e os objetos de uso pessoal. Porém, tudo estava à disposição dos irmãos em caso de necessidade. A maioria não dispunha de coisas supérfluas. Muitos não tinham propriedade alguma. Alguns, como Barnabé e Ananias, eram ricos e tinham bens não imediatamente indispensáveis para a sua subsistência. Dos que venderam casa ou terreno, o protótipo era Barnabé. A primeira parte do livro dos Atos mostra que Barnabé gozava de imenso prestígio na Igreja, não somente em Jerusalém, mas também em Antioquia, tendo sido o chefe da primeira missão. Certamente a condição social superior de Barnabé não era alheia a esse prestígio, nem a lembrança da sua generosidade.
Tabita era rica em boas obras e em esmolas (9,36). Cornélio cumulava de liberalidades o povo judeu (10,2).
As esmolas formavam parte essencial da religião de Israel. Paulo permanece fiel a essa maneira de adorar a Deus. Vai ao templo para “trazer esmolas ao meu povo como ofertas” (24,17). Também no tempo da penúria “os discípulos [de Antioquia] resolveram enviar, segundo os recursos de cada um, uma contribuição aos irmãos que habitavam a Judeia” (11,29).
Há espaço para os ricos na Igreja de Deus. Para isso, basta imitar o exemplo de Barnabé — reforçado, aliás, no evangelho pelo exemplo de Zaqueu. O rico pode salvar-se ao colocar sua riqueza a serviço da comunidade — isto é, dos pobres, que são a maioria na comunidade. Os exemplos de Barnabé ou de Apolo mostram que ricos podem ter uma missão de grande destaque na comunidade e, com certeza, a capacidade humana que lhes veio da sua condição social superior, serviu muito para desempenho da sua missão.
O próprio Paulo não era pobre quando se converteu. Adotou a pobreza depois do apelo de Jesus para ser o missionário dos povos (20,33-35). A educação que recebeu, tanto em Tarso quanto em Jerusalém, mostra que dispunha de recursos bastante notáveis. Deixou tudo, mas não podia desprender-se dessa riqueza, a mais importante de todas, que vem da formação recebida. É mais do que evidente que toda essa riqueza humana acumulada nos anos anteriores fora um fator decisivo no desempenho da sua missão apostólica, sobretudo no êxito que teve a sua missão — comprovado pela permanência das Igrejas por ele fundadas.
Esses fatos dos Atos dos Apóstolos levam-nos a considerar com mais atenção o papel dos ricos convertidos na história da salvação e na comunidade cristã.
4. O lugar dos ricos na comunidade
A conversão ao evangelho e a entrada na comunidade cristã não mudam o caráter das pessoas. Cada pessoa traz toda a sua história e a sua cultura dentro de estruturas que são a herança de centenas de gerações. O convertido não é transferido para um mundo separado, puro, impecável, sem defeitos. Continua vivendo neste mundo, participando das suas qualidades e dos seus defeitos, dos seus bens e dos seus limites.
Cada qual ocupa seu lugar na vida social. Nem todos os seres humanos são iguais. Pelo contrário, as capacidades são variáveis. Por isso não há sociedade humana em que todos os seus componentes sejam iguais. Ainda que a cultura e o evangelho procurem lutar contra as desigualdades, tratando de restabelecer certa igualdade nas condições de vida, essa tarefa não deixa de ser obra sempre inacabada.
Por isso há em todas as sociedades humanas, em todos os grupos, por mais simples que sejam, pessoas que lideram e pessoas que seguem. Poderá haver grande diversidade de lideranças, nas várias instâncias da vida social, mas não existe sociedade em que haja igualdade ou uniformidade total. Se existisse tal sociedade, provavelmente seria um monstro — seria incapaz de agir em conjunto. Sendo todos iguais, ninguém teria motivação para agir.
Por isso o ideal da comunidade cristã não é a igualdade, e sim, como diz São Paulo, a diversidade dos carismas na unidade da fé e da caridade. Entre os carismas, também existe o de governo.
Algumas pessoas têm maiores qualidades para governar. Têm inteligência mais aguda e abrangente. São mais capazes de enxergar o conjunto dos problemas, a diversidade das pessoas e dos recursos em vista de um projeto comum. Sabem orientar as atividades de todos em função da obra comum. Ao mesmo tempo são dotadas de energia que é capaz de dinamizar os outros, avivam o ânimo, dissipam as oposições, resistem ao desânimo e têm capacidade de levar um projeto até o resultado final. Sabem despertar energias e orientá-las para uma obra comum. Poucas pessoas têm essa capacidade. Felizes os grupos e as sociedades que sabem descobrir essas personalidades e entregar-lhes o poder para que exercitem as suas capacidades!
A história e a experiência cotidiana mostram que é muito difícil uma pessoa pobre adquirir essas qualidades. Pode acontecer, mas é raro — e somente quando essa pessoa pobre, por sorte extraordinária, conseguiu adquirir formação de nível semelhante ao das classes superiores.
A experiência de comunidades populares, assentamentos, associações de vizinhos, comunidades de pequenos produtores, cooperativas e comunidades eclesiais de base mostra que, em muitos casos, não conseguem sobreviver por falta de união resultante da falta de liderança forte, ou caem na dependência de um líder popular forte que monopoliza o poder, e inconscientemente se apega a esse poder que nunca largará — eliminando do grupo todos os potenciais concorrentes.
A alternativa é: ou nada de liderança ou liderança opressora e redutora. Daí os presidentes vitalícios de fato, que seguram o poder com uma teimosia que não admite discussão. Daí também as lutas de lideranças para conquistar o poder pelo poder, sem capacidade de enxergar de fato a condução do grupo.
Nenhum grupo subsiste sem liderança esclarecida e decidida. O mito da espontaneidade do povo criador que encontra em si mesmo, numa suposta vontade comum o seu princípio de ação, foi desmentido pela história. Não se constrói uma pastoral eficaz somente com comunidades populares espontâneas. Nenhuma empresa ou sistema social funciona por pura virtude de associação. Sempre é necessário ter alguém que tome á iniciativa, que dê orientação e que assegure a perseverança.
A comunidade de pura espontaneidade reúne-se até o esgotamento, sem chegar a nenhuma conclusão prática. São essas reuniões que nunca desembocam em nada, porque ninguém tem a ousadia de amarrar — tão frequentes na Igreja atual, onde a falta de liderança é evidente. Não é por acaso que as Ordens e Congregações religiosas foram fundadas quase sempre por pessoas nascidas em famílias privilegiadas. Os meninos pobres são tão desfavorecidos que, quando chegam à idade criativa, entre 24 e 40 anos, ainda se sentem inseguros, tímidos, indeciso, e não têm percepção suficiente analítica ou sintética do conjunto da realidade em que estão inseridos — e não se atrevem a exercer ascendência sobre os outros. Se nasceram numa família pobre, normalmente desejam ser conduzidos, seja pelos costumes, seja por personalidades fortes. Há exceções em todas as áreas da vida social, mas são exceções.
Os pobres têm medo de exercer a autoridade ou exercem-na de modo agressivo, a partir de uma vontade de poder que não controlam, por ser inconsciente. Aí está o privilégio dos ricos. Ainda meninos têm segurança, confiança em si próprios, olham com confiança o mundo e exercem ascendência sobre os seus condiscípulos.
A Igreja e a comunidade cristã, como qualquer sociedade humana, precisam das qualidades e capacidades que somente se recebem em famílias que oferecem condições superiores de educação. Claro que não basta ter nascido numa família rica. Há jovens ricos — talvez sejam a maioria — que nunca foram realmente educados, e somente aprenderam a abusar de seus privilégios. Aprenderam a buscar nas suas vantagens uma promoção pessoal. Porém, há outros que sabem despertar para uma vocação realmente humana e cristã. Sabem que o que receberam destina-se ao serviço de todos.
A maior riqueza é a educação, e hoje mais do que nunca. Ricos são os que receberam educação completa: capacidade de compreensão, informação ampla, capacidade de expressão e de reflexão, capacidade de visão do futuro, capacidade de ação e de segurança, vontade perseverante e dedicação aos outros.
Hoje, Barnabé seria um executivo, formado em relações humanas ou em comunicação social. A sua maior riqueza seria a sua capacidade profissional. O desafio seria: como colocar essa riqueza a serviço do povo cristão?
A sociedade atual tornou-se infinitamente complexa e ainda não aprendemos a viver na nossa sociedade ou, melhor, estamos bem no início de nossa aprendizagem. De que maneira os ricos contemporâneos — todos os que possuem capacidades que lhes permitem ter acesso à condição e às vantagens da burguesia — poderiam colocar os seus talentos a serviço dos pobres?
Sem a colaboração deles as massas pobres não têm nenhuma possibilidade de se articular para a formação de movimentos sociais populares. Menos ainda poderiam criar-se meios de subsistência que tirassem essas massas da condição precária em que estão hoje. Sozinhos, os pobres não têm possibilidade alguma de se libertar da condição de opressão. Precisam de pessoas que estejam bem inseridas no mundo atual e conheçam todos os seus recursos, colocando todas as suas capacidades à disposição da libertação dos pobres. Simplesmente distribuir bens, como Barnabé, poderia ser um paliativo momentâneo — ainda que indispensável em certas situações — mas não seria libertação.
É preocupante o fato de que muitos jovens bem preparados, entusiasmados, dedicados ao serviço dos pobres não acham ou não procuram espaço na Igreja. É de se temer que a Igreja ceda à tentação de reservar os talentos que se põem à sua disposição para tarefas puramente intraeclesiais. É possível também que o clero queira manter o controle sobre os leigos que se comprometem e colocam os seus talentos à disposição da libertação dos pobres — dirigindo, orientando e controlando essa missão. Quem perde com isso é a própria Igreja.
A obra de Lucas foi uma resposta aos ricos convertidos do primeiro século. Guardadas as proporções, a resposta continua valendo para os nossos dias. Se o povo de Deus é dos pobres, há espaço para os ricos que colocam a sua riqueza à disposição dos pobres. Não precisam necessariamente tornar-se semelhantes aos pobres — que, no fundo, é impossível. O que os integra no povo dos pobres é o dom de si próprios — o dom de suas capacidades.
A presença dos ricos nas comunidades pobres suscita muitos problemas. A convivência e o diálogo nunca são fáceis. Os pobres podem ter a tentação de permanecer passivos, deixando tudo à iniciativa dos que “sabem”. Nesse caso a presença de pessoas capazes estimula a preguiça e a passividade. Os pobres podem também isolar-se e resistir a qualquer inovação sugerida por pessoas de cultura superior.
Os ricos podem tratar os pobres como meros executantes, espécie de empregados. Podem ocupar todo o espaço e impedir a promoção humana dos pobres que querem levantar, porque não contam com as capacidades dos pobres e não as estimulam. Enfim, não cabe aqui desenvolver os problemas relativos à ajuda dos mais fortes aos mais fracos. Já há uma literatura social ou pastoral especializada que se dedica a esse desafio.
A finalidade desta contribuição foi mostrar como a mensagem cristã se dirige também aos ricos, reservando-lhes um lugar na vinda do Reino de Deus.
Pe. José Comblin