Poucos livros tiveram tanto sucesso e tanta repercussão como os Atos dos Apóstolos. Eles determinaram, e determinam, festas litúrgicas como Ascensão e Pentecostes. Inspiraram os monges a deixarem a vida solitária, “eremítica”, para se juntarem em mosteiros participarem da vida em comum, “cenobítica”. Inspiraram também a “vida apostólica” dos frades do século XIII e seguintes, que à vida contemplativa e estável dos monges preferiram a pregação itinerante do evangelho pelas ruas e estradas. Geraram outras formas de vida carismática e interpretação radical das exigências evangélicas, à margem do catolicismo e do protestantismo, na época moderna. Ofereceram argumentos e programas ao socialismo religioso do início do século XIX, revoltado contra a Igreja, mas certo de interpretar corretamente o ideal terreno de Jesus. Inspiram na atualidade, no Brasil e no mundo, milhares e milhares de “comunidades eclesiais de base”.
Apesar disso, os Atos continuam como um livro ainda pouco conhecido. Muitas riquezas dele continuam inexploradas. Sua teologia da missão e da vida eclesial ainda não foi descoberta pela maioria. Debaixo das interpretações unilaterais ou superficiais do livro, que ainda predominam, há uma visão original e desafiadora da fé cristã a descobrir. É preciso tirar a poeira. É preciso ir além das verdades curtas e parciais, que circulam na literatura católica a respeito dos Atos.
É o que pretendemos fazer, brevemente, neste artigo, baseados em estudos recentes e pouco divulgados. Vamos propor algumas pistas para descobrir a face oculta dos Atos. No final, indicaremos também alguns instrumentos para prosseguir o estudo. Esperamos que o leitor, acompanhando-nos, reviva conosco a alegria de penetrar, como amigo e irmão, no coração e na aventura desses homens “que revolucionaram o mundo inteiro” (At 17,6), levando o primeiro anúncio do evangelho.
1. Uma obra em dois volumes
As nossas edições do Novo Testamento, bem como a maioria das “Introduções à Bíblia”, separam o livro dos Atos e o evangelho de Lucas. O acréscimo do quarto evangelho, o de João, aos três primeiros, inseriu uma obra nova e diferente entre o 1º e o 2º livros de Lucas. Mas é importante redescobrir a unidade e a continuidade da obra lucana. O 3º evangelho (Lc) e os Atos (At) se completam e se iluminam reciprocamente. Os Atos, portanto, não podem ser plena e corretamente entendidos, se desligados de Lucas. “Os Atos permanecem obscuros, se não forem ligados à vida de Jesus” (B. Standaert).
Quais os sinais ou as provas dessa ligação? Quais os “ganchos” que prendem Lucas e Atos?
O “prefácio” dos dois livros (cf. Lc 1,1-4; At 1,1-2), ambos dedicados a Teófilo, e especialmente o dos Atos, que remete ao “primeiro livro”, isto é, ao evangelho de Lucas.
O final do evangelho (Lc 24,44-49), que liga à vida de Jesus a missão dos discípulos de serem testemunhas entre “todas as nações, a começar por Jerusalém”; programa retomado e desenvolvido pelos Atos em 1,8 e em todo o livro: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra”.
O entrelaçamento dos temas: Lucas retoma frequentemente, nos Atos, os temas introduzidos com destaque no evangelho. Alguns exemplos:
— desde o batismo de João Batista, anuncia-se que “toda a carne verá a salvação de Deus” (Lc 3,6), expressão retomada na conclusão dos Atos: “aos gentios é enviada esta salvação de Deus” (At 28,28);
— o tema da salvação é associado ao da luz (Lc 2,30-32), que reencontramos no discurso programático de Paulo em Antioquia da Pisídia: “Eu te estabeleci como luz das nações, para levares a salvação até aos confins da terra” (At 13,47; cf. também At 26,17-18.22-23);
— o próprio batismo de João Batista é retomado muitas vezes nos Atos (cf. At 1,5; 10,37; 13,24; 18,25; 19,3);
— mais frequentes ainda são os temas do Espírito Santo (cerca de 16 vezes no evangelho, sobretudo em Lc 1-4; 55 vezes em At) e da palavra de Deus (8 vezes em Lc; 38 vezes em At).
A analogia dos modelos: Lucas ressalta as semelhanças entre as diversas figuras da história da salvação. Jesus é o “protótipo”, a figura-chave, a que realiza todas as profecias do passado e serve de modelo para todas as testemunhas do futuro. Quem conhece bem a Bíblia grega (a tradução do Antigo Testamento pelos Setenta), percebe que Lucas descreve a atuação de Jesus baseando-se nos relatos de Elias e Eliseu, Moisés ou Davi, ou em episódios particulares (a entrada de Jesus em Jerusalém lembra 1Rs 1,33.38-40; a agonia no Getsêmani evoca 2Mc 3,14-17). Analogamente, nos Atos, Estêvão parece com Jesus na cruz (compare At 7,60 com Lc 23,34 e At 7,59 com Lc 23,46) e o diácono Filipe parece com Jesus ressuscitado (há numerosos pontos de contato — descubra-os! — entre At 8,26-40 e o relato dos peregrinos de Emaús, em Lc 24,13-35). B. Standaert observa que os capítulos 6 a 8 dos Atos representam uma espécie de pequeno evangelho, atualizado nos gestos dos diáconos Estêvão e Filipe. Um representa mais a cruz de Jesus, mas morre tendo nos olhos a visão do Cristo ressuscitado e glorioso. O outro, Filipe, representa Jesus ressuscitado, mas fala dos sofrimentos do Servo de Deus. Assim, com extrema habilidade, Lucas entrelaça os temas do evangelho e dos Atos e compõe a sua obra.
Mas há uma razão mais profunda, do que a arte da composição para explicar o entrelaçamento de temas e figuras? Há uma base escondida, mas sólida, sobre a qual Lucas apoia a unidade do evangelho de Jesus e dos atos dos Apóstolos? A base dessa continuidade é a ressurreição de Cristo. A ressurreição, com efeito, não é um acontecimento do passado, que aconteceu e acabou. A ressurreição de Jesus significa que ele assumiu o senhorio do céu e da terra, que ele se tornou o juiz da história (cf. também Mt 28,18-20). Então, o relato da ressurreição não acabou, nem pode acabar (a não ser no fim dos tempos). De outro lado, um livro não pode ficar sem um fecho; não pode ter um número ilimitado de páginas! A solução? Lucas termina o evangelho, fazendo alusão à sua continuação num novo livro, o dos Atos, que conta a ação de Jesus através de sua Palavra e de seu Espírito, através dos apóstolos e testemunhas. Mas também o livro dos Atos não pode terminar. E, de fato, ele continua aberto. Seu fecho é provisório. E diz que a história da Palavra continua e nada pode entravá-la:
“Paulo… anunciava o Reino de Deus e ensinava o que se refere ao Senhor Jesus Cristo com firmeza e sem impedimento” (At 28,30-31).
2. O autor: companheiro de Paulo?
Na literatura tradicional, o autor do 3º evangelho e dos Atos é identificado com Lucas, colaborador de Paulo, “médico amado”, citado três vezes no Novo Testamento (Cl 4,14; 2Tm 4,11; Fm 24). Mas contra esta identificação há sérias objeções da exegese recente.
Aparentemente, Lucas conhece bem a vida e a missão de Paulo e descreve partes de suas viagens em primeira pessoa, como alguém que delas participou. (São as chamadas “seções-nós” dos Atos: 16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1- 28,16).
De outro lado, há sérias objeções contra essa explicação apressada. Em primeiro lugar, todo o livro dos Atos apresenta uma notável unidade de estilo e de vocabulário. Assim as “seções-nós” e os discursos são escritos da mesma forma que os sumários ou as partes narrativas. Se o Autor usou “fontes” ou documentos pré-existentes, ou simplesmente imitou trechos de discursos e de um “diário de viagem”, para dar mais colorido e variedade ao escrito, é difícil discernir. Em geral, a exegese atual reconhece nos Atos um livro que reflete a situação e o pensamento de comunidades cristãs dos anos 1980, uma geração depois das viagens de Paulo. O livro também aparece como acabado, apesar de sua conclusão aberta para o futuro. Não se pode pensar, portanto, como muitos exegetas católicos dos anos 40 ou 50 do século XX, numa obra interrompida durante o próprio período da estada romana de Paulo, lá pelos anos 62 a 64 d.C.
Em particular, o confronto com as cartas de Paulo mostra que:
— o autor dos Atos desconhece, ou pelo menos não utiliza, as cartas de Paulo;
— em pontos relevantes da vida de Paulo, há divergências entre o relato dos Atos e as cartas paulinas; por exemplo: o próprio relato da “conversão”, só mencionado de passagem por Paulo (Gl 1,15ss), é relatado três vezes, com detalhes, por Atos, mas usando de expressões e termos que Paulo não usa; as visitas de Paulo a Jerusalém, antes da carta aos Gálatas, são duas: a de 15 dias, três anos após o episódio de Damasco (Gl 1,18ss), e a do “concílio” com os apóstolos, catorze anos mais tarde (Gl 2,1ss); segundo Atos, as visitas de Paulo, no mesmo período, são três (At 9,26ss; 11,30; 15,2ss);
— principalmente, a teologia de Lucas não combina com a de Paulo! Os aspectos a serem analisados são numerosos. Basta aqui mencionar o conceito de “apóstolo”, que Lucas tende a restringir às testemunhas oculares da vida de Jesus e da sua ressurreição (cf. At 1,21-22), e não usa no sentido mais amplo, paulino, exceto em At 14,4.14 (provavelmente por influência da fonte utilizada). O livro dos Atos, apesar de toda a ênfase que dá à “conversão” de Paulo, não diz que ele viu o Cristo ressuscitado, mas que ouviu uma voz e foi envolvido por uma luz (cf. At 9,4; 22,6-7; 26,13-14). Paulo, ao contrário, declara que Cristo ressuscitado lhe apareceu (1Cor 15,8) e reivindica o título de apóstolo (Rm 1,1; 1Cor 1,1; etc.) como título recebido por Jesus Cristo e Deus Pai (Gl 1,1). Pode-se ainda acrescentar a observação de W. G. Kümmel, de que Lucas (tanto no evangelho como nos Atos) não dá nenhum relevo à morte salvífica de Jesus, que está no centro da teologia paulina. Daí a conclusão de que Lucas, “na melhor das hipóteses, conhece algo a respeito do cerne da doutrina paulina da salvação apenas por ouvir dizer, faltando-lhe qualquer conhecimento dela através de um contato pessoal”. Observações semelhantes poderiam ser feitas a respeito da eclesiologia, da organização dos ministérios etc.
Em suma, pode-se concluir que o livro dos Atos deve ser usado com cautela em suas informações sobre a vida de Paulo. Não deixa, contudo, de ser um testemunho extremamente interessante da imagem de Paulo alguns anos depois da sua morte e da repercussão de sua obra, embora em novo contexto e com certas adaptações, em busca da conciliação com outras tendências eclesiais.
3. Plano e composição dos Atos
Depois de ter falado das relações de Atos com o evangelho e com Paulo, está na hora de nos voltarmos para o conteúdo do próprio livro. Supondo que o leitor já tenha lido mais de uma vez os Atos (aliás, só uma leitura seguida de todo o livro pode fazer sentir o sabor de uma obra que foi escrita para ser lida toda de uma vez, sem interrupções!), discutiremos rapidamente a questão do plano ou da divisão da obra. Pesquisando um pouco o assunto, logo se constata, com surpresa, o desacordo dos exegetas. Numa obra aparentemente tão simples, não se consegue chegar ao consenso a respeito da sua divisão interna. O motivo está, antes de tudo, na própria arte de composição de Lucas (ou do autor dos Atos, qualquer que seja). Lucas é extremamente hábil em amarrar uma parte às outras, em fazer transições suaves de um assunto ao outro, a não deixar cair o fio da narração e o interesse do leitor. Assim antecipa ou anuncia o que virá depois e, mais tarde, retoma ou relembra o que descreveu antes. O emaranhado é tão bem feito que é difícil sair dele. Um exemplo pode ser visto na apresentação de Pedro e Paulo. Numa visão superficial, parece a muitos que Pedro predomina nos primeiros capítulos e Paulo, na segunda metade. Na realidade, há um amplo jogo de anúncios, remessas, chamadas… Paulo, por exemplo, começa por aparecer no final do cap. 7; sua “conversão” é narrada no cap. 9; trabalha subordinadamente a Barnabé no cap. 11; assume o primeiro plano a partir do cap. 13 e se torna o único protagonista do cap. 16 até ao fim. Pedro, por sua vez, não apenas domina os capítulos 1 a 5, mas reaparece nos capítulos 8 a 11 e tem um papel importante ainda no cap. 15. Também os capítulos 6 a 8, que relatam a instituição e a atividade dos “diáconos”, especialmente de Estêvão e Filipe, não deixam de estar ligados com os “atos” de Pedro (8,14ss) e Paulo (7,28; 8,3). Por sua vez, Filipe é lembrado em At 21, 8-9 e Estêvão em 22,20, no meio das viagens de Paulo.
Se, apesar de tudo, quisermos continuar a procurar um plano dos Atos, parece oportuno prestar atenção a At 1,8: “sereis minhas testemunhas…
a) em Jerusalém,
b) em toda a Judeia e Samaria,
c) e até os confins da terra”.
Considerando o cap. 1 dos Atos como uma introdução, pode-se dividir o resto em três partes:
a) o testemunho em Jerusalém (cap. 2 a 7);
b) o testemunho em Judeia e Samaria (desde 8,1b até o final do cap. 12);
c) o testemunho até os confins da terra (do cap. 13 até o fim), que é sobretudo obra de Paulo, conduzido pelo Espírito (cf. 13,2-16,6; 20,22).
As partes podem parecer bastante, desiguais. Mas elas podem ser entendidas melhor, se não considerarmos apenas a extensão, mas também o “ritmo” do relato. Os primeiros capítulos são estáticos. Tudo se passa em Jerusalém. No início, os discípulos estão numa atitude de espera, aguardando o “poder do alto”, o Espírito Santo. Logo depois, a comunidade continua recolhida em si mesma (At 2,42-47). Aos poucos, o grupo se envolve num movimento, numa cadeia de acontecimentos que não terá mais fim: a ida ao Templo, o milagre, o tumulto popular (3,11), a intervenção do Sinédrio (4,1ss), novos testemunhos, novas perseguições (5,15ss). A partir da perseguição dos helenistas e de Estêvão (cap. 6 e 7), o movimento se amplia: atinge o resto da Judeia e a Samaria, a costa (cap. 8), Damasco (9,1-25), Antioquia (11,19-26). A partir daí as grandes viagens missionárias de Paulo (três, segundo o esquema tradicional; mas os Atos mencionam uma dezena de viagens do Apóstolo), que vão adquirindo um caráter sempre mais dramático, até a aventurosa viagem em direção de Roma.
De outro lado, se há um movimento “centrífugo” nítido — de Jerusalém para Roma e os “confins da terra” — há também um movimento inverso, que religa continuamente a expansão missionária ao centro, à comunidade de origem, Jerusalém. Assim a divisão que mencionamos e o movimento sempre mais intenso do centro para a periferia não são a única perspectiva dos Atos. Ela está entrelaçada (mais uma vez a técnica de Lucas!) com um movimento inverso, de retorno a Jerusalém (cf. At 8,1.14.26; 9,26-30; 11,1.30;21,1ss; 15,2.22-33; 18,22; 19,16; 21,17), ou eventualmente aos centros intermediários, pontos de irradiação missionária como Antioquia (11,19-29; 13,1-3; 14,26-28; 15,22-23. 30-35; 18,22-23) e Éfeso (18,19-21; 18,24-19,40; 20,16-17).
4. Objetivos da obra: uma resposta complexa, e completa, aos desafios da época
A compreensão dos Atos depende também, ou principalmente, dos objetivos visados pelo Autor. Também a esse respeito as opiniões são muitas e a mais certa nos parece ser aquela que concilia e assume diversas observações particulares numa síntese mais completa. Os Atos se dirigem aos judeus? Aos pagãos? Aos próprios cristãos? A resposta mais segura é a que afirma: a todos. Os Atos são uma espécie de propaganda cristã, uma antecipação das “apologias” que o cristianismo produzirá nos séculos II e III. Mas uma propaganda feita a partir, antes de tudo, de uma apresentação honesta da mensagem e das “provas” do seu valor. Uma apresentação que pretende, ao mesmo tempo, reforçar as convicções de quem já aderiu e dar aos simpatizantes elementos para conhecer melhor e compreender a fé que os atrai.
As diversas facetas dessa posição aparecem melhor, considerando as três categorias socioculturais a quem Lucas (ou o livro dos Atos) se dirige, além dos próprios cristãos: romanos, gregos e judeus. Aos romanos diretamente é dirigido apenas um discurso, o de Paulo ao governador Félix (At 24,10-21). Mas numerosas são as ocasiões em que Paulo apela para a sua condição de cidadão romano e mostra o respeito da lei e dos direitos do acusado, do mais fraco (cf. sobretudo o princípio enunciado por Festo em At 25,16; cf. também os casos em que os romanos salvam a vida de Paulo: At 21,35-40; 22,22; 23,12-35). Face à autoridade de Roma, os Atos procuram apresentar a igreja cristã como uma “seita” ou “partido” dos judeus (cf. At 24,14), que respeita escrupulosamente a Lei e os Profetas e não dá nenhum motivo para ser considerada subversiva. A “respeitabilidade” dos cristãos é defendida também face aos gregos e à cultura helenista. Desta vez a argumentação não é jurídica, mas cultural. Trata-se de mostrar que a tradição religiosa (do Antigo Testamento), em que os cristãos se inserem, é tão antiga e nobre quanto a filosofia grega. O ideal de vida dos cristãos é apresentado de forma aceitável aos gregos, como ideal da perfeita amizade, em que nada é propriedade individual, mas tudo é posto em comum (cf. At 2,42-47; 4,32-35; 5,12-16). Aos gregos são dirigidos poucos discursos, como o de Pedro (em At 10) e principalmente o de Paulo em Atenas, no coração do universo cultural helenista (At 17). Mas é todo o conjunto da obra que procura lançar uma ponte ao helenismo. Aos judeus se dirigem a maior parte dos discursos, de Pedro (cap. 2, 3, 4 e 5), Estêvão (cap. 7), Paulo (13,15-47; 22,1-21; 26,1-23; 28,17-28). O assunto é demonstrar que os cristãos não são uma seita qualquer, mas os intérpretes corretos das grandes promessas messiânicas feitas pelos patriarcas e pelos profetas. São eles que realizam a Escritura e sua origem está no coração do judaísmo, em Jerusalém. Aliás, a “ida aos pagãos” não deve ser entendida apenas como uma solução de emergência, provocada pela recusa dos judeus de abraçarem a fé cristã (cf. At 13,46; 28,28), mas como a realização do plano de Deus, que quer a salvação de todos (cf. At 13,47).
Apesar da tentativa de aproximação da filosofia grega, realizada exemplarmente no discurso do Areópago (At 17,22-31), o autor dos Atos permanece no âmbito da fé bíblica. O seu pensamento é elaborado no contexto e através da linguagem da Bíblia grega, a tradução dos Setenta. Esta observação fornece uma pista para identificar a pessoa que, tradicionalmente, se esconde sob o nome de Lucas. Trata-se de um grande escritor, educado em ambiente de língua grega. Quase certamente foi, antes de se tornar cristão, um simpatizante do judaísmo, um prosélito ou ao menos um “temente a Deus”. Não só conhecia a Bíblia grega, como talvez tenha passado por uma experiência de conversão semelhante àquela que ele narra, com muita emoção, a respeito do etíope, peregrino a Jerusalém (At 8), ou dos peregrinos de Emaús, a quem a leitura e explicação das Escrituras abrasou o coração (Lc 24). Os grandes textos proféticos iluminam a vida de Jesus (cf. Lc 4,17-21) e a meditação das Escrituras à luz da paixão, morte e ressurreição de Jesus constitui o caminho para a fé (cf. At 17,11; 26,22-23; 28,23).
Prosseguindo esta pesquisa, seria interessante investigar as situações sociais e religiosas concretas em que o cristianismo dos Atos se insere e para as quais busca uma resposta. Além dos discursos “missionários” e das relações com as diversas classes, religiões, culturas, o livro dos Atos informa também sobre a vida interna da Igreja. As preocupações não são unicamente aquelas da primeira geração ou as que transparecem nas cartas autenticas de Paulo. Já se manifestam os problemas de uma Igreja bastante desenvolvida, cuja problemática interna alcança uma notável complexidade. Um bom testemunho disso está no discurso de despedida de Paulo aos anciãos de Éfeso (At 20). Ele manifesta, no conteúdo e no vocabulário, a preocupação “pastoral”, típicas das Cartas ditas Pastorais (1 e 2Tm, Tt) e dos escritos do Novo Testamento posteriores a Paulo (cf. 1Pd, certos trechos de João e das epístolas católicas). O problema é salvar o “rebanho” e defendê-lo dos “lobos cruéis”. É também obter dos “pastores” o mesmo desprendimento de Paulo: “não desejei prata, ouro ou vestes de ninguém. Estas mãos proveram às minhas necessidades e às de meus companheiros” ( At 20,33-34). Nesse contexto o modelo da comunidade primitiva (At 2.24-47 etc.) e a critica da riqueza (cf Lc 16) podem significar uma advertência severa à segunda geração cristã para que redescubra o radicalismo evangélico.
Muitos outros temas podem ser estudados nos Atos, inclusive alguns de mais imediato interesse para a situação da pastoral de hoje: por exemplo, o tema de religiosidade popular, o dos mistérios, e das experiências carismáticas. Mas o mais importante é compreender que não se trata de buscar no Atos modelos a imitar, nem fórmulas para repetir, quanto aprender a elaborar uma resposta cristã, na fidelidade à Palavra e ao Espírito, aos desafios de nosso tempo. Ajudar a compreender um pouco mais como Lucas elaborou, de forma original, uma resposta à uma situação que viveu, fazendo conscientemente um trabalho teológico, era a finalidade desse estudo, demasiadamente rápido.
Ao leitor cabe continuar o trabalho, com a ajuda dos instrumentos que passaremos a indicar.
Instrumentos de trabalho (bibliografia)
Para o estudo dos Atos dos Apóstolos, a partir do ponto de vista da nossa situação pastoral, possuímos agora um valioso instrumento no Comentários aos Atos dos Apóstolos, organizado pelo Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), sob a coordenação de Eliseu H. Lopes (Paulinas, 1984, 127 páginas). Trata-se de um comentário versículo por versículo, interessante e acessível. Não salienta, porém, as relações e os entrelaçamentos das diversas partes e temas.
Mais acessível ainda, do mesmo autor, o livreto O Caminho feito pela Palavra. Trata-se de um subsídio publicado, a preço popular (Cr$ 200,00), para o “Mês da Bíblia” de 1984. Subtítulo: Para ajudar na leitura dos Atos dos Apóstolos (Paulinas, 1984, 48 páginas). Pode ser tomado como base para uma série de cinco encontros.
Está também em preparação, e deveria aparecer como o n. 3 dos “Estudos Bíblicos” que a REB (Revista Eclesiática Brasileira) publica, em setembro, um conjunto de breves estudos exegetas brasileiros sobre os Atos. Vale a pena assiná-lo, porque iminente e sobretudo porque se espera algo original.
Relativamente acessível, embora menos ligado à nossa problemática pastoral, é o n. 19 de “Cadernos Bíblicos” (Edições Paulinas. Tradução dos “Cahoirs Evangele”, redigidos por exegetas franceses). O caderno em pauta é devido a vários autores e tem por título: Uma leitura dos Atos dos Apóstolos (Paulinas, 1984, 111 páginas).
De excelente qualidade são os comentários dos trechos dos Atos usados na liturgia dos domingos de Páscoa, que se encontram no volume A de A mesa da Palavra. Comentário Bíblico-litúrgico (Vozes, 1983, 572 páginas; cf. pp. 200-201, 207-208, 216-217, 225-226, 232-233, 245-257 e 93-95). São de autoria de Fr. Raul Ruijs OFM e relevam toda a sua competência, que perdemos cedo demais.
Em nível de pesquisa científica, dispomos dos preciosos Estudos sobre os Atos dos Apóstolos de Jacques Dupont OSB (Paulinas, 1974, 574 páginas). Por sugestão do mesmo Dom Dupont e por gentileza do autor, utilizamos em nosso artigo uma síntese das pesquisas elaborada por B. Standaert e publicada na revista Heiling, abril de 1980, da Abadia Santo André de Bruges (Bélgica). Utilizamos também o n. 153/154 (juillet, 1981) d revista Lumiére et Vie (Lyon).
Pe. Alberto Antoniazzi