Publicado em número 231 - (pp. 3-11)
Reavivar a caminhada Uma leitura da Primeira Carta de Pedro
Por Maria Antônia Marques
Há vários anos, um membro da equipe do Centro Bíblico Verbo vem assessorando um curso bíblico em Rio Branco, no Acre. Aí costumam se reunir periodicamente cerca de 70 pessoas, procedentes de diversas comunidades da região, que chegam ao centro de formação da diocese. Gente que enfrenta dias inteiros de viagem de barco, de caminhão ou a pé — deixando seus afazeres para participar de um curso intensivo de Bíblia. São pessoas que participam com entusiasmo e alegria.
É um momento de troca, partilha, estudo e aprofundamento da Palavra de Deus. Alguns participantes afirmam que esse encontro é para retomar a caminhada e seguir em frente: “É o espaço que temos para continuar nossa catequese permanente e reavivar nosso compromisso com a comunidade”.
Hoje, existem muitas formas de entrar em contato com as comunidades — por exemplo, internet, boletins, visitas, encontros, reuniões, seminários, congressos, cursos e festas. Viajando no tempo, vamos perceber que no século I d.C. a situação era bem diferente. A maneira mais comum de chegar às comunidades cristãs, espalhadas por todo o império romano, era por meio de cartas. Existia também a visita pessoal, porém, com menos frequência, pois as viagens de um lugar para o outro eram cansativas e demoradas.
O objetivo de uma carta é animar e encorajar as comunidades a continuar firmes no projeto de Jesus, uma forma de ensinar a distância, de continuar a catequese. A primeira carta de Pedro, assim como as demais cartas do Novo Testamento, nasceu com essa finalidade.
Essa carta foi enviada a vários grupos de cristãs e cristãos da Ásia Menor, presentes nas seguintes regiões: Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia (cf. 1Pd 1, 1), no final do século I d.C. As cartas de Pedro — juntamente com a de Tiago, a de Judas e as três cartas atribuídas a João — fazem parte de uma coleção conhecida como cartas católicas. São cartas dirigidas a várias comunidades, por isso são chamadas de universais. Esse é o sentido da palavra católico.
1. Situando o autor e a data
No início da primeira carta de Pedro, conforme o costume da época, o remetente se apresenta: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo” (1Pd 1, 1). E mais: o autor diz que ele é presbítero como os anciãos, “testemunha dos sofrimentos de Cristo e participante da glória que há de ser revelada” (1Pd 5,1). Essas palavras falam da experiência pessoal do autor e o identificam como testemunha ocular da vida, dos ensinamentos, da morte e da ressurreição de Jesus.
No texto da 1Pd 5,12 lemos: “Por meio de Silvano, que eu considero irmão fiel, escrevi a vocês essas poucas palavras, para admoestá-los e dar testemunho de que esta é a verdadeira graça de Deus”. Silvano (ou Silas) é um nome de origem latina, um cidadão romano (At 16,37). Ele conhecia muito bem o ambiente da Ásia Menor. Silvano foi companheiro de Paulo em suas viagens missionárias (2Cor 1,19; 1Ts 1,1; 2Ts 1,1).
Aceitar que essa carta tenha sido ditada por Pedro e escrita por Silvano nos coloca diante de algumas dificuldades: por exemplo, o fato de o anúncio do evangelho na Ásia Menor ter sido feito por Paulo e sua equipe missionária. O apóstolo Pedro não atuou nessa região. Na carta, o autor afirma que está numa comunidade cristã na Babilônia, em companhia de Marcos (1Pd 5,13). Chamar Roma de Babilônia se tornou uma forma de protesto, após a destruição do Templo e da cidade de Jerusalém, por volta do ano 70 d.C. Outro motivo a considerar é a questão da linguagem: o estilo utilizado nessa carta é do final do século I d.C.
Nas linhas e entrelinhas da primeira carta de Pedro há um clima de tensão e hostilidade social (1Pd 2,12; 3,6.9.14.16; 4,4.14), que se refere a perseguições cotidianas, e não de perseguição oficial por parte do império romano. A perseguição de Domiciano se estendeu até a Ásia Menor somente por volta do ano 95 d.C. Pode-se situar a escrita dessa carta um pouco antes, aproximadamente no ano 90 d.C. Portanto, não foi o apóstolo Pedro quem a escreveu, pois sua morte aconteceu entre os anos 64 e 67. Mas, então, quem foi?
É possível que tenha sido escrita por discípulos da comunidade cristã de Roma (1Pd 5,1). As cartas de Pedro, as cartas a Timóteo e a Tito, como também outros livros do Novo Testamento, são escritos pseudônimos, pois, na antiguidade, era costume escrever um livro e usar o nome de um mestre respeitado para assinar o seu texto. Hoje, isso seria considerado fraude e poderia gerar até processo, mas naquele tempo era uma espécie de homenagem a alguém importante.
2. Destinatários
“Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos que vivem dispersos como forasteiros no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia” (1Pd 1,1).
Os destinatários da primeira carta de Pedro estavam espalhados em quatro regiões da província romana da Ásia Menor. Essa área caiu sob o domínio do império romano a partir de 133/131 a.C., porém a organização em regiões só aconteceu por volta de 17 a.C. A Bitínia e o Ponto já estavam reunidas em uma só província desde 63 a.C.
As cristãs e os cristãos nessa região, estimados em aproximadamente 80 mil, eram pessoas provenientes de diferentes lugares, culturas e costumes religiosos. Eram comunidades pobres, formadas, em sua maioria, por migrantes, forasteiros e outros estrangeiros residentes (1Pd 1,1; 2,11), provenientes de culturas não judaicas (1Pd 1,14-19; 2,11-12; 4,1-6.12-19).
Os forasteiros não pertenciam ao povo nem podiam ter casa no país. Os estrangeiros residentes tinham direito à moradia, mas também não eram bem-aceitos pela população nativa, não eram cidadãos, não podiam votar nem ter terra. Por outro lado eram forçados ao serviço militar, estavam sujeitos a pagar tributos, taxas e o percentual pela produção.
Na primeira carta de Pedro, entre forasteiros e estrangeiros residentes, mencionam-se escravas e escravos (1Pd 2,18-20), alguns homens livres (1Pd 2,16), esposas de maridos não cristãos (1Pd 3,1-6), maridos de esposas não cristãs (1Pd 3,7), líderes (1Pd 5,13) e jovens (1Pd 5,5).
Estamos começando a pisar o chão das comunidades da primeira carta de Pedro, no final do século I. Vamos relembrar alguns elementos do contexto histórico desse período?
3. Contexto histórico
No final do século I, as fronteiras do império romano eram imensas. O ditado: “Todos os caminhos conduzem a Roma” era uma verdade, pois Roma era o centro de tudo e as estradas todas davam acesso a ela. Com a expansão territorial e a formação de uma população tão diversificada, de costumes e culturas muito diferentes, o exército tornou-se a principal força de sustentação da política romana. O chefe do exército era o imperador. O exército garantia paz e segurança em todo o império.
A base econômica desse império era o comércio e a exploração do trabalho escravo (cf. Ap 18,9-24). Nessa época, o número de escravas e escravos aumentou de maneira assustadora. A exploração da mão de obra escrava na agricultura e nas indústrias artesanais produzia o excedente, possibilitando aumentar o comércio interno e externo.
Além de escravas(os), havia trabalhadoras(es) livres: artesãos independentes, pequenos camponeses, pescadores e outros, que trabalhavam para ganhar o pão de cada dia. Esse grupo sofria outras formas de opressão. A mão de ferro do império exigia deles numerosos impostos, contribuições, taxas, trabalhos forçados e o serviço militar.
A organização social era feita conforme as regras dos poderosos: os homens ricos mandavam e os pobres tinham de obedecer. A escravidão e a servidão eram justificadas como parte da lei natural. Em todo lugar sentia-se o efeito opressor da dominação romana. No interior da Ásia Menor, as cristãs e os cristãos, além da mão de ferro do império romano, enfrentaram várias dificuldades e oposições sociais.
As autoridades judaicas, presentes desde o século III a.C. na Ásia Menor, perseguiram os cristãos por motivos religiosos e políticos. Elas estavam perdendo adeptos e também não queriam ser confundidas com o grupo de cristãs e de cristãos, os quais eram vistos como subversivos; por isso, denunciavam esses grupos para garantir seus direitos diante dos romanos.
Havia ainda a população local, concentrada, em sua maioria, na zona rural, em pequenas vilas e povoados, e organizada em associações tribais, conseguindo manter sua tradição, costumes e língua. As pessoas forasteiras e estrangeiras não participavam da organização das aldeias, mas tinham suas próprias associações, vistas como ameaça à ordem pública (1Pd 2,15). As pessoas que assumiam o movimento cristão estavam em situação ainda pior: uma vez que não participavam das grandes festas públicas, com seus rituais sensuais (1Pd 4,3), eram taxadas de estranhas e de perigosas para a nação.
Como a primeira carta de Pedro ajuda as comunidades cristãs a permanecer firmes na fé? Com essa pergunta na mente e no coração, vamos entrar no texto e fazer as nossas descobertas.
4. 1Pd 1,1-25: porta de entrada
O cabeçalho de uma carta, conforme o costume dos asiáticos, devia conter o nome do remetente e a sua apresentação, os destinatários e sua localização e, por fim, as saudações conclusivas. Os vv. 1-2 cumprem exatamente essa função. Aqui temos o remetente e sua referência: Pedro, apóstolo de Jesus Cristo; os destinatários: aos que vivem como forasteiros; localização: na diáspora — Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia; saudações conclusivas: “que a graça e a paz sejam abundantes para vocês”.
O v. 2a rompe com a estrutura do cabeçalho: “eleitos segundo os desígnios de Deus Pai, pela santificação do Espírito para obedecer a Jesus Cristo e ter parte na aspersão de seu sangue”. Aqui temos informações preciosas: estão enunciados todos os temas que serão desenvolvidos ao longo da carta, a saber: a eleição de Deus Pai, a santificação do Espírito, a obediência a Jesus Cristo para ter parte na aspersão de seu sangue.
A primeira carta de Pedro faz uma inversão: Deus elege os marginalizados e excluídos como seu povo eleito. As pessoas que não eram reconhecidas nem tinham cidadania, a partir da eleição de Deus tornam-se cidadãs e pedras vivas na construção da casa de Deus (1Pd 2,5-10). O termo “eleito” vem da tradição judaica e apresenta a relação amorosa de Deus com o seu povo (Dt 7,6; Is 43,20). A eleição do novo povo é obra da Trindade. Vamos, passo a passo, entender essa afirmação?
a) Eleição de Deus Pai: a escolha do novo povo é segundo o conhecimento antecipado de Deus — a presciência. Essa ideia é usada em 1,2 e 1, 17. Deus, por sua gratuidade e amor, escolhe as pessoas para a salvação (1Pd 2,8).
b) Santificação do Espírito Santo: a ação santificadora do Espírito confirma a eleição de Deus. Aqui é possível notar a influência da tradição cristã do batismo (Rm 6,1-11; Mt 28,19). A santidade era qualidade dada pelo Espírito e devia refletir-se no comportamento das pessoas cristãs (1Pd 1,15-16; 2,5.9; 3,15-16).
c) Para obedecer a Jesus Cristo e participar da bênção da aspersão do seu sangue. Aqui está a origem da obediência das cristãs e dos cristãos ao Pai: o sofrimento e a morte de Jesus (1Pd 1,11.19; 2,21-24; 3,18; 4,1.13; 5,1). A aspersão do sangue recorda a paixão e a morte de Jesus, mas também se trata de releitura da história da salvação, tendo presente o contexto judaico do Antigo Testamento (Ex 24,7-8; 1Pd 1,18-19).
As pessoas que assumiram o movimento de Jesus são chamadas a viver a prática da justiça e da misericórdia. Foram resgatadas como sangue de Cristo, e não com ouro e prata (1Pd 1,18-19). A palavra “resgate”, do grego lytron, diz respeito à compra de um escravo, que era feita com dinheiro: ouro e prata. Aqui, podemos ver que o resgate das pessoas cristãs realiza-se com a entrega da vida de Jesus Cristo. Por trás da rejeição do ouro e da prata é possível perceber uma crítica à sociedade greco-romana e a proposição de novas relações, baseadas na partilha e no amor solidário (Is 63,9; Dt 7,8; Is 41,14).
A nova comunidade de irmãs e irmãos é chamada a “praticar um amor fraterno, sem hipocrisia” (1Pd 1,22). O convite ao amor atinge o centro da mensagem cristã. Viver o amor mútuo, o respeito e a acolhida é fundamental para enfrentar as pressões sociais (1Pd 1,22; 2,17; 4,8; 5,9). A fonte do amor é o novo nascimento: “Vocês nasceram de novo, não de uma semente mortal, mas imortal, por meio da Palavra de Deus, que é viva e que permanece” (1Pd 1,23).
Na primeira carta de Pedro há vários termos ou expressões referentes ao batismo, por exemplo: purificados (1Pd 1,22), sangue (1Pd 1,2.19), crianças recém-nascidas (1Pd 2,2), água (1Pd 3,21). Esse texto relembra para as comunidades cristãs o sentido original do batismo, ou seja, de novo nascimento: as cristãs e os cristãos são o novo povo de Deus (1Pd 2,10; 4,17).
5. 1Pd 2,1-12: o novo povo de Deus
Para falar de Cristo e da nova comunidade, o autor utiliza a imagem da pedra viva. Essa imagem é inspirada no Antigo Testamento (Is 28,16; Sl 118,22). Cristo é a pedra viva que foi rejeitada por seu povo, mas escolhida por Deus. Da mesma forma, as pessoas cristãs são rejeitadas pela sociedade, mas escolhidas por Deus. A partir dessa escolha, elas são pedras vivas e “vão entrando na construção da casa espiritual, e formando um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacrifícios espirituais que Deus aceita por meio de Jesus Cristo” (1Pd 2,5).
A compreensão de povo sacerdotal aplicada a todas as cristãs e cristãos é unicamente de 1Pd 2,5.9. Para compreender o sentido do sacerdócio, é preciso fazer breve percurso na história de Israel.
No período tribal, todos tinham acesso aos bens produzidos na comunidade. O povo constituía “um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,6). Não existia função religiosa especializada. Os cultos e as festas eram celebrados nos vários santuários e nas casas de família (Ex 12,21; 1Sm 1,24-25).
Na monarquia, desde o tempo de Davi (1010-970 a.C.), o sacerdócio passou a ser exercido por um grupo específico. A partir de Salomão, Sadoc foi designado chefe dos sacerdotes (2Sm 8,17; 20,25). O culto passou a ser celebrado no Templo de Jerusalém. O sacrifício era realizado no Templo, mediante a presença do sacerdote.
No pós-exílio, especialmente no período da reconstrução, com Neemias e Esdras, a observância do sábado foi retomada com todo o seu rigor (Ne 13,15-22). Esdras estabeleceu sacerdotes e escribas, para que todos conhecessem a Lei. A lei do rei — no caso, do rei da Pérsia — passou a ser a lei de Deus (Esd 7,26). O culto e o sacerdócio foram centralizados no Templo de Jerusalém. A mentalidade de povo escolhido foi reforçada. A observância estrita da Lei foi retomada, especialmente a lei da pureza. As mulheres estrangeiras e as crianças delas nascidas foram expulsas de Judá (Esd 9,1-10; 10,44).
A teologia — bem como o sacerdócio centralizado — reforçada pelo governo dos teocratas ainda vigorava no tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs. Porém, com Jesus Cristo, o culto e o sacerdócio ganharam nova compreensão, não mais ritual e externa, mas existencial. Por meio da prática da justiça e da solidariedade, Jesus supera a mediação do sacrifício e do sumo sacerdócio.
Nessa nova prática, a comunidade é chamada a assumir o sacerdócio, já não havendo intermediário entre Deus e a pessoa. Trata-se de volta à proposta do tempo tribal — quando todas e todos tinham livre acesso a Deus, por meio da prática da justiça, da solidariedade e do amor. O poder não estava concentrado nas mãos de uma única pessoa, mas toda a assembleia participava das decisões referentes às tribos. Nas comunidades cristãs há, então, uma tentativa de retomar esse mesmo projeto: cada pessoa é chamada a se comprometer na construção da nova sociedade.
Com Jesus Cristo, o acesso a Deus é garantido a todas as pessoas. O critério é a prática da justiça, da oração, da solidariedade e do amor (Mc 2,1-12). Todas e todos têm os mesmos direitos e deveres, foram eleitos por Deus para formar a nova família de fé (1Pd 2,10; 4,7-11.17).
Esse grupo de pessoas destituído de prestígio social recebe vários títulos de honra, que anteriormente foram dados ao antigo Israel: “Vocês, porém, são raça eleita, sacerdócio régio, nação santa, povo adquirido por Deus…” (1Pd 2,9; cf. Ex 19,5-6; Is 43,20-21). Essa é a identidade do novo povo de Deus: pessoas estrangeiras residentes e forasteiras, muitas sob a condição de escravas, agora são amadas e escolhidas por Deus, ou seja, têm a mesma origem e os mesmos objetivos.
Essa parte conclui fazendo memória da profecia de Oseias: “Vocês que antes não eram povo, agora são povo de Deus; vocês que não tinham alcançado misericórdia, mas agora alcançaram” (1Pd 2,10; cf. Os 2,1-3.25). É uma palavra de esperança. Os rejeitados e os desprezados pela sociedade agora formam, pelo batismo, o novo povo de Deus, com nova identidade e nova prática: a justiça e a misericórdia (1Pd 1,17.22; 4,7; Rm 13,1-8).
6. 1Pd 2,13-25: a vivência cristã e a escravidão
Nas comunidades cristãs, as pessoas buscavam viver novas relações, baseadas na partilha e na solidariedade, na tentativa de superar as desigualdades entre servo e senhor, mulher e homem, escravos e livres. Mas essas pessoas não estavam somente na comunidade: viviam na família, na sociedade, na escola e no mundo do trabalho, em que a maioria não era cristã e seguia as regras impostas pelo império romano.
Como entender a ordem contida nessa carta: “Submetam-se a toda criatura humana por causa do Senhor” (1Pd 2,13)? E, mais adiante, a exortação dirigida aos escravos: “Escravos, sujeitai-vos, com todo o respeito, aos vossos senhores, não o só aos bons e razoáveis, mas também aos perversos (1Pd 2,18)? Para os governantes, a estrutura da sociedade seguia as leis da natureza e de Deus. Ir contra a ordem estabelecida era uma subversão.
As pessoas cristãs tinham de se adaptar ao sistema, pois não havia outra saída. Era questão de sobrevivência. O verbo grego hypotasso significa submissão consciente. Trata-se de atitude estratégica. Além da sobrevivência pessoal e da comunidade, a submissão era por causa do Senhor e tinha como objetivo evangelizar com a própria vida (1Pd 2,13.15-16).
A ordem é dada diretamente às escravas e aos escravos. Muitos convertidos ao cristianismo continuavam em situação de escravidão. Uma situação por si só desumana: pessoas sem liberdade, meras ferramentas de trabalho. No século I, no entanto, a abolição da escravidão era impensável, pois um terço da população vivia nessa situação. No entanto, nas comunidades cristãs, procurava-se viver a igualdade e a liberdade.
A submissão das escravas e dos escravos era uma necessidade em vista da sobrevivência. Ir contra a ordem dos donos colocava em risco a própria vida e a de toda a comunidade. Submeter-se, portanto, era forma de resistência e também de evangelizar com a própria vida. A pessoa era chamada, a exemplo de Jesus, a não devolver o mal com o mal.
Mas aqui há um detalhe digno de nota. As escravas e os escravos são tratados como pessoas, e não como objetos; a exortação lhes é dirigida (1Pd 2,21). E mais: existe uma relação direta entre o sofrimento de Cristo e o das escravas e escravos (1Pd 2,19-23). Cristo é o exemplo a ser seguido (1Pd 3,18). Para entender a vida e a prática de Jesus, as comunidades releem o profeta Isaías, especialmente os cânticos do servo sofredor.
O servo sofredor é chamado para o serviço da justiça (Is 42,1-9), assume e realiza a sua missão (Is 49,1-6), sofre, é perseguido e resiste (Is 50,4-11). É morto por causa da prática da justiça e da solidariedade, mas Deus o ressuscita (Is 52,13-53,12). A vida, a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus têm como pano de fundo a vida e a missão do servo sofredor (1Pd 2,21-25). A ressurreição de Cristo é fonte de esperança e de resistência para as pessoas cristãs.
As situações de sofrimento provocadas pelos constantes conflitos com a população local eram muitas. Era preciso reforçar a importância da fé cristã e dar sentido ao sofrimento, enfrentá-lo de maneira corajosa e, assim, testemunhar a própria fé. Além das pessoas que viviam em situação de escravidão e tinham de se adaptar às regras impostas pela sociedade, havia mulheres cristãs casadas com não cristãos. É possível entrever que a situação delas na família era delicada e necessitava de cuidados especiais, para que elas continuassem participando da comunidade.
7. 1Pd 3,1-12: uma exortação às mulheres
“Submetam-se aos seus maridos. Assim, se alguns são rebeldes à Palavra, a conduta de suas mulheres poderá ganhá-los sem palavras” (1Pd 3,1). No século I d.C., a subordinação do mais fraco ao mais forte era vista como lei da natureza e como vontade das divindades. Aristóteles, um filósofo grego, afirmou: “O masculino é por natureza mais apto para mandar que o feminino, do mesmo modo que o mais velho em idade é superior e mais capaz que o jovem”. Nessa lógica, era normal que as escravas e os escravos obedecessem aos seus patrões, como os jovens aos anciãos e as mulheres aos homens.
A primeira carta de Pedro 3,1-7 preocupa-se com as mulheres cristãs e seus maridos. A situação de casamentos mistos se tornava cada vez mais comum nas primeiras comunidades: as mulheres são cristãs e os maridos não. Podia acontecer também o contrário, porém, numa sociedade onde o homem tinha a primazia, isso não acarretava maiores dificuldades.
As mulheres convertidas ao cristianismo viviam novas relações na comunidade, mas a condição social delas continuava a mesma: subordinadas aos seus maridos. Porém, agora elas podiam dar novo sentido ao seu sofrimento: a submissão ao marido não por causa dele em si, mas em vista de poder continuar na comunidade e por causa do Senhor. A exortação que a primeira carta de Pedro faz às mulheres tem como objetivo diminuir as dificuldades de convivência dentro da casa e também a conversão dos maridos, não pelas palavras, mas por meio de um comportamento exemplar (1Pd 2,12).
No texto de 1Pd 3,7 a exortação é dirigida aos maridos cristãos: “sejam compreensivos” e “honrem suas esposas”, pois as mulheres são “herdeiras, como vocês, do dom da vida”. O homem cristão é chamado a ser compreensivo para com sua mulher. Nas entrelinhas desse texto, é possível perceber que o autor acredita que Deus não faz distinção entre as pessoas. Mulheres e homens são herdeiros da graça da vida (1Pd 3,7). O relacionamento amoroso e igualitário entre mulher e homem é condição para se relacionar com Deus.
As orientações para que os diferentes grupos dentro da comunidade cristã se submetam às autoridades só podem ser entendidas mediante a compreensão de que as comunidades cristãs, no final do século I, passaram por uma situação de conflito: na comunidade viviam relações novas, mas fora da comunidade a maioria das pessoas não era cristã, sendo preciso, por isso, se adaptar às regras sociais em vista da sobrevivência e da evangelização.
Quem assume a prática da justiça numa sociedade injusta corre risco de morte. Os cristãos enfrentam muitas situações de sofrimento e dificuldades, mas, apesar disso, as comunidades cristãs crescem e se desenvolvem. O que atrai as pessoas para entrar e permanecer nessas comunidades?
8. 1Pd 3,8-4,6: a mística das comunidades cristãs
As comunidades cristãs são fortalecidas com a certeza de que Deus é o Senhor da história (1Pd 3,18-22). Todos os fatos e acontecimentos estão sob o controle de Deus. A pessoa cristã é chamada a renovar os compromissos assumidos no batismo e a manter uma esperança viva (1Pd 3,21-22). Animadas por essa esperança, as comunidades criaram fortes laços de amor fraterno. Essa vivência atraía novos membros: “Finalmente, tenham todos a mesma atitude, sejam compassivos, cheios de amor fraterno, misericordiosos e de espírito humilde” (1Pd 3,8).
A ressurreição de Cristo representa a vitória sobre os poderes do mal e também a vitória dos cristãos, que será revelada na manifestação definitiva de Cristo no fim dos tempos. Em 1Pd 3,18 lemos: “De fato, o próprio Cristo morreu uma vez por todas pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de os conduzir a Deus. Ele sofreu a morte em seu corpo, mas recebeu vida pelo Espírito”. “Assim, quando aparecer o supremo pastor, recebereis a coroa imperecível da glória” (1Pd 5,3; cf. 1Pd 1,4; 5,10).
Conforme a primeira carta de Pedro, a pessoa cristã é guiada pela esperança e deve empenhar-se em fazer o bem (1Pd 3,8-12). Ela é chamada a enfrentar os sofrimentos e a suportá-los de maneira paciente: “Se sofrem por causa da justiça, felizes de vocês! Não tenham medo deles, nem fiquem assustados. Ao contrário, reconheçam o Cristo como Senhor, estando prontos a dar a razão de sua esperança a todo aquele que a pede a vocês” (1Pd 3,14-15).
As perseguições e o sofrimento são sinais de que a manifestação gloriosa de Jesus Cristo está próxima: o julgamento de Deus já começou (1Pd 3,16; cf. 4,4-5.12-19). A provação das cristãs e dos cristãos vai durar pouco tempo (1Pd 1,310; 4,7). Essa certeza aumenta a esperança e firma as comunidades na resistência e na esperança de que Deus realizará a justiça (1Pd 4,17-19).
Para as comunidades cristãs, a boa nova foi anunciada também aos mortos, “a fim de que eles vivam pelo Espírito a vida de Deus, depois de receberem, na sua carne mortal, a sentença comum a todos os homens” (1Pd 4,6). O evangelho tem o poder de fazer reviver. A prática da solidariedade e do amor antecipa a revelação definitiva de Jesus Cristo. Alimentadas por essa esperança, as pessoas cristãs são convocadas a realizar a prática da justiça, da solidariedade e do amor, cujo lado concreto é a hospitalidade.
9. 1Pd 4,7-19: ser hospitaleiros
Ser hospitaleiro… um gesto que nasce do coração. A palavra grega usada para hospitalidade é philoxenos, um adjetivo composto dos termos phileo, que significa amar, mostrar afeição, e xenos, estranho ou estrangeiro. A hospitalidade é um gesto de amor para com o estrangeiro. No antigo Israel, era um dever tão sagrado, que fazia parte da Lei judaica (Ex 22,20; 23,9; Lv 19,33-34). As comunidades cristãs são chamadas a exercer a hospitalidade (1Pd 4,9).
Antes de exortar à hospitalidade, o texto faz um apelo: “Conservem entre vocês o amor, porque o amor cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4,8). Da mesma forma que o amor de Deus tem o poder de apagar — de perdoar — os pecados, assim também o amor entre as pessoas cristãs. O amor elimina rixas, discórdias, calúnias, egoísmo e violência.
Você já pensou que o seu amor tem o poder de restaurar a vida de outra pessoa? Em situação de crise e insegurança, o amor, a mútua acolhida e a solidariedade foram essenciais para a sobrevivência das comunidades cristãs. A resistência das comunidades só foi possível graças aos vínculos de amor fraterno existentes entre seus membros.
A primeira carta de Pedro é incisiva: “Pratiquem a hospitalidade uns com os outros, sem murmurar” (1Pd 4,9). No Antigo Testamento, hospedar pessoa estrangeira ou forasteira era atitude normal. A hospitalidade é costume que perpassa toda a história do povo de Israel. Trata-se de prática concreta do amor (Rm 12,9-13; 1Pd 1,22).
No tempo de Jesus e das comunidades cristãs, havia uma insistência na prática da hospitalidade. No contexto das comunidades da Ásia Menor, a hospitalidade era um desafio constante e também tinha seu peso econômico, afinal eram pessoas pobres acolhendo pobres. Significava oferecer casa para aqueles que não tinham moradia fixa e por tempo indefinido. Além do mais, ao hospedar alguém, o dono da casa se comprometia com sua segurança e podia ser visto como seu cúmplice. Era sempre um risco.
Nas comunidades cristãs, as pessoas são chamadas a exercer os seus dons, seja por meio da fala, como porta-voz de Deus, profetisa ou profeta, instruindo, corrigindo, exortando, encorajando ou confortando, seja por meio do serviço, especialmente o serviço à mesa. Todas e todos são corresponsáveis. É uma forma de rejeitar a sociedade, na qual essas pessoas — estrangeiras, escravas e forasteiras — eram discriminadas. A nova comunidade garante aos seus membros cidadania e direitos iguais (1Pd 2,10).
10. 1Pd 5,1-11: os diferentes serviços na comunidade cristã
No início do movimento de Jesus, cabia a todos os membros a responsabilidade de construir a comunidade. Havia dons e funções diferentes, mas todas as pessoas eram iguais. Com o tempo, o movimento foi crescendo e se organizando. O poder, pouco a pouco, passou a ser concentrado nas mãos de algumas lideranças, em geral homens.
A primeira carta de Pedro reflete um período de desenvolvimento das comunidades cristãs em que, além dos anciãos, não havia ministérios e serviços especializados, nem mesmo uma organização hierárquica. O texto faz uma exortação aos presbíteros, que são apresentados como pastores e guardiões da comunidade (1Pd 5,2). Eles têm a função de cuidar da comunidade cristã. A missão dos presbíteros está em continuidade com a missão de Cristo.
Os anciãos, da mesma forma que Cristo, não são proprietários do rebanho. Eles são encarregados de cuidar e vigiar. São os administradores (1Pd 4,10). Nas comunidades cristãs, aqueles que exercem a liderança devem assumi-la com humildade e simplicidade (Mt 20,25-26; 1Pd 5,6), devem lavar os pés uns dos outros e umas das outras (Jo 13,14). Devem ser capazes de amar e acolher cada pessoa, respeitando seus limites e valorizando seus dons.
Mais uma vez deparamos com exortação dirigida a um grupo: “Igualmente, vocês jovens, obedeçam aos mais velhos” (1Pd 5,5a). Conforme a hierarquia social, os mais jovens devem obedecer às pessoas mais velhas. Mas quem são esses jovens? A maioria dos estudiosos afirma que os mais jovens são os neófitos, as pessoas que acabaram de aderir à fé cristã.
O verbo submeter, que já apareceu na exortação a todos os membros das comunidades cristãs, especialmente aos escravos e às mulheres, agora é dirigido aos jovens (1Pd 2,13.18; 3,1.5; 5,5). Os jovens são chamados a submeter-se aos mais velhos, não somente pela idade destes, mas também pela sua capacidade de liderança e por consideração com a organização da comunidade. A reverência especial à autoridade é relativizada com o chamado à humildade: “Todos vocês revistam-se de humildade no relacionamento mútuo, porque Deus resiste aos soberbos, mas dá a graça aos humildes” (1Pd 5,5b; cf. Lc 1,52).
11. Para concluir
A primeira carta de Pedro é uma palavra de vida para alimentar a fé e a esperança das pessoas que assumiram o movimento de Jesus. É um texto que lembra que todas e todos foram chamados para uma esperança viva. E conclui dizendo: “Eu vos escrevo estas palavras exortando-vos e testificando que esta é a verdadeira graça de Deus, na qual deveis permanecer firmes” (1Pd 5,12).
Essa carta revela a solidariedade e a preocupação de determinada comunidade para com as comunidades que estão vivendo situações de sofrimento e perseguição. É uma carta com exortações concretas sobre como viver, no cotidiano, a prática cristã. Mais uma vez essa Palavra chega a nós como palavra de vida, relembrando o valor da solidariedade e da sensibilidade às pessoas e aos grupos que estão ameaçados. Podemos aprender, com essas comunidades, a buscar novas formas de reavivar e alimentar a nossa caminhada de fé.
Bem, você tem algumas chaves para ler a primeira carta de Pedro. Aproveite-as para mergulhar nesse texto e encontrar, no testemunho dessas comunidades cristãs, forças para continuar testemunhando sua fé nos dias atuais.
Maria Antônia Marques