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Publicado em número 244 - (pp. 3-10)

No amor e na ternura, a vida renasce!

Por Maria Antônia Marques

Uma introdução ao livro de Oseias

A violência bate à nossa porta todos os dias. Estamos sujeitas(os) a inúmeros impostos diretos e indiretos. Aumenta o número de miseráveis e excluídas(os). Os conflitos em torno da posse da terra provocam a morte de pessoas. O desemprego e o subemprego são realidades cotidianas na vida de milhões de pessoas. A todo o instante somos confrontadas(os) com o desafio da sobrevivência.

Há algum tempo, num curso bíblico, um dos participantes estava visivelmente triste e muito abatido. Eu me aproximei dele e lhe perguntei: “Como vai?” A resposta demorou a sair, e, com a voz embargada, ele disse: “Fui demitido e do serviço vim direto para o curso. Tenho cinquenta anos e trabalhava nessa firma há quinze anos. Ajudo a pagar os estudos de duas filhas que estão cursando faculdade. Ainda não voltei para casa. Como vou encarar minha mulher e minhas filhas?” Em seguida, começou a chorar.

O desemprego traz uma insegurança muito grande. Além da situação econômica, que provoca o medo de não ter o necessário para sobreviver, há também o lado afetivo: muitas vezes, a pessoa fica sem rumo, sem perspectivas e, pior ainda, sente-se inútil e humilhada. O relacionamento com a própria família e consigo mesmo fica muito ruim. Com a instabilidade econômica do país e com o excesso de mão de obra, o desemprego ou o medo de ficar desempregado são verdadeiros fantasmas que assustam milhões de pessoas.

Hoje, como ontem, a violência e a destruição fazem parte do cotidiano do povo. No tempo do profeta Oseias, o reino do norte está caminhando para o seu fim. As elites estão preocupadas com os seus interesses e seus privilégios. As alianças com as nações estrangeiras e as constantes guerras geram aumento de tributos, endividamento, desapropriação de terras e crescente empobrecimento das famílias camponesas. É com o pé nesse chão que queremos ouvir a comunidade de Oseias. Vamos conhecer seus valores, suas dificuldades e seus projetos de reconstrução da sociedade do seu tempo, para buscar luzes para as nossas comunidades de hoje.

 

1. Contexto histórico

“Palavra de Javé dirigida a Oseias, filho de Beeri, no tempo de Ozias, Joatão, Acaz e Ezequias, reis de Judá, enquanto Jeroboão, filho de Joás, era rei de Israel” (Os 1,1).

Oseias exerce o seu ministério entre os anos 750 e 724 a.C. no reino do norte. A sua profecia tem início no final do reinado de Jeroboão II (783-743) e vai até um pouco antes da invasão dos assírios, em 722 a.C. No tempo de Jeroboão II, Israel faz uma aliança de paz com o reino do sul, Judá, e juntos detêm o controle das rotas comerciais. Um tempo de grande prosperidade para as elites do norte (cf. 2Rs 14,25-27; Am 6,1-7).

O reino do norte, Israel, também chamado de Efraim por Oseias, está situado numa região privilegiada, constituída de vales produtivos e montanhas elevadas. As principais rotas comerciais cruzam o país. No tempo de Jeroboão II, as grandes potências — Egito e Assíria — estão enfraquecidas. O momento é favorável para aumentar o comércio e o lucro. O rei e as elites aumentam os tributos. Muitas famílias camponesas ficam endividadas e são forçadas a vender suas propriedades (cf. Am 2,6-8).

A terra passa a pertencer a alguns proprietários que controlam a produção em vista do comércio. Pouco a pouco, a economia diversificada em vista da sobrevivência é transformada em monocultura, atendendo às necessidades do comércio. O Estado importa artigos de luxo e equipamento militar e exporta produtos agrícolas, especialmente vinho, trigo e óleo. Os produtos importados são bem mais caros e desequilibram a balança comercial. As elites obtêm altos lucros com esse sistema, mas aumenta o número de famílias empobrecidas, sem terra e sem perspectivas de futuro.

A morte de Jeroboão II e a retomada da Assíria, com Teglat Falasar III (745-727 a.C.), mudam completamente o cenário político. No reino do norte se formam duas facções: uma favorável e outra contrária à Assíria. Instala-se uma guerra civil. Em pouco mais de vinte anos, Israel passa pelo governo de seis reis. Medo, insegurança e conchavos políticos tecem o cotidiano da corte.

É possível imaginar a situação de insegurança e instabilidade: quatro reis são assassinados. Quem assume o reinado se preocupa apenas em manter o seu poder e seus privilégios, ampliando e fortalecendo o exército.

Entre os anos 734 e 732 a.C., a ambição e a ganância do rei e das elites quase acabam com a nação. Para impedir o avanço da Assíria e deixar de pagar-lhe o tributo, o rei de Israel faz aliança com o rei de Damasco da Síria. Os dois reis tentam incluir o rei de Judá, Acaz, que não aceita entrar na coalizão contra a Assíria. Síria e Israel invadem Judá, que, por sua vez, pede ajuda ao império assírio. A partir desse momento, Judá se torna vassalo da Assíria.

Teglat Falasar III, rei da Assíria, põe fim à resistência dos países aliados, luta contra Israel, apodera-se dos territórios israelitas da Galileia e da Transjordânia e realiza várias deportações (cf. 2Rs 15,29). Por fim, arrasa Damasco, mata o seu rei e deporta parte da população. Nesse momento, o reino do norte só não é totalmente destruído porque um tal de Oseias (que não é o profeta), de tendência pró-assíria, mata o rei Faceia, assume o poder e se submete à Assíria.

Em 727 a.C., após a morte de Teglat Falasar III, seu filho Salmanasar V assume o trono da Assíria. O rei Oseias vê nessa mudança o momento favorável para se livrar do jugo imperial. Ele pede ajuda ao Egito, mas, quando a Assíria ataca o reino do norte, o Egito, ainda enfraquecido, não consegue socorrer Israel. Em 724 a.C., Salmanasar ataca e prende o rei Oseias. Dois anos depois, em 722 a.C., a Samaria é ocupada e parte da população é deportada para a Mesopotâmia e a Média, alguns fogem para Judá. É o fim do reino do norte!

Essa realidade de destruição política, econômica, social e religiosa está presente na profecia de Oseias. Mas quem é o profeta Oseias?

 

2. Referências de Oseias

Temos poucos dados biográficos a respeito de Oseias. No livro aparece apenas o nome de seu pai, Beeri, cujo sentido é meu poço, mas não tem referencial histórico (cf. Os 1,1). Alguns acreditam que o profeta seja membro, ou até mesmo dirigente, de uma comunidade profética levita (cf. Os 12,14).

Oseias é conhecido como o profeta do amor e da misericórdia. Ele nasce no reino do norte e, provavelmente, pertence ao grupo de sacerdotes levitas do interior, o qual ajuda na organização das aldeias e do culto. Exerce seu ministério no reino do norte, Israel, e deve ter circulado pela Samaria, por Betel, Guilgal e outras localidades do interior. O nome de Oseias, que quer dizer “Javé salva”, é significativo, pois ele apresenta um projeto de reorganização da sociedade por meio de estruturas justas e solidárias. Vejamos qual é a sua mensagem.

 

3. A mensagem de Oseias

Em geral, as pessoas conhecem a história de Oseias como a do profeta que se casou com uma prostituta, conforme a ordem de Javé. A comparação do casamento para falar da aliança entre o povo de Israel e Deus corre à boca miúda. A palavra prostituição perpassa todo o livro de Oseias. A profecia passa pelo corpo da mulher.

Em Os 1,2 lemos: “Vá! Tome uma prostituta e filhos da prostituição, porque o país se prostituiu, afastando-se de Javé”. Nesse versículo, a palavra prostituição assume um significado político e religioso. O termo prostituição na profecia de Oseias é usado no sentido real e simbólico: indica aliança com as nações estrangeiras, infidelidade religiosa (cf. Os 4,10.12.18) e relações sexuais fora do casamento (cf. Os 4,14). A própria nação é chamada de prostituta (cf. Os 4,15; 5,3; 9,1).

Oseias adota o vocábulo prostituição para representar os mecanismos geradores de morte. Na sua visão, o uso da religião oficial para extorquir mais produtos do povo é uma forma de prostituição. Ele chama os líderes políticos e religiosos de adúlteros, pois buscam apenas os próprios interesses (cf. Os 7,4).

As alianças com as grandes potências são ilegais, pois visam ao poder e ao lucro de uma pequena elite, enquanto a vida do povo pobre, especialmente das famílias camponesas, está no mais completo abandono. Isso é prostituição! Vamos olhar, mais de perto, como funciona a política externa.

 

a) “Estrangeiros devoram o seu vigor” (Os 7,9)

A política externa de Israel é frágil, dependente e instável. A partir da morte de Jeroboão II, Israel se vê envolvido em contínuas alianças: Assíria, Egito e Síria. Essas alianças enfraquecem a nação. Oseias percebe essa realidade e constata que o rei e as elites são ingênuos e inconsequentes. Na busca de manter seu próprio poder, estão causando a ruína da nação: “Os estrangeiros devoram o seu vigor, mas ele não se dá conta! Até mesmo os cabelos brancos se espalham nele, mas ele não se dá conta” (Os 7,9). A situação é muito grave. Sem perceber, eles estão entregando o país para outras nações.

“Israel foi devorado. Entre as nações ele agora é objeto sem valor. Quando foram pedir socorro à Assíria, então Efraim, jumento solitário, tentou contratar amantes para si” (Os 8,8s). Quem devora as riquezas de Efraim? Quando a Assíria novamente se reergue como potência, submete os países vizinhos e os obriga a pagar tributos. Desde 738 a.C. Israel é obrigado a pagar um elevado tributo para a Assíria.

As guerras causam a diminuição da população e do território e arrasam a economia. Muitos territórios israelitas são transformados em províncias assírias. Os tributos para a Assíria e para o abastecimento do comércio pesam nos ombros da população. Efraim é chamado de “pomba ingênua, sem inteligência: pedem ajuda ao Egito, vão à Assíria” (Os 7,11). Israel é uma presa fácil nas mãos das nações estrangeiras.

A nação é comparada a passarinhos que cairão facilmente na rede, e Deus a um caçador disposto a castigar o seu povo por sua maldade (cf. Os 7,12). Para entender essa imagem, é preciso ter presente o conjunto da profecia de Oseias. O castigo tem a intenção de provocar a conversão (cf. Os 2-3.5,2; 5,15-6,3). Ao mencionar o julgamento de Javé, o profeta convoca o povo para refazer a aliança com Javé, o Deus da vida, e retomar ao projeto inicial: uma sociedade baseada na solidariedade e na justiça.

A aliança com as nações estrangeiras e o interesse das elites em garantir os lucros provenientes do comércio influenciam na política interna. O Estado impõe o aumento dos tributos, apertando ainda mais a vida da população camponesa. Vamos buscar alguns textos em Oseias que nos ajudem a entender o funcionamento da política interna.

 

b)O ladrão invade a casa” (Os 7,1)

As constantes guerras destroem o campo e a casa. Como as autoridades precisam de grandes quantidades de produtos, a exigência de tributos aumenta. Muitas famílias endividadas se veem obrigadas a vender suas terras. A formação de grandes proprietários de terras beneficia a elite, que, dessa maneira, passa a deter o controle sobre a produção agrícola. A economia da casa baseada na agricultura diversificada em vista da subsistência é transformada em cultura de dois ou três produtos em vista do comércio. A casa desmorona e não consegue mais garantir a sobrevivência das pessoas que estão ligadas a ela.

Essa realidade está refletida na profecia de Oseias. Ele tenta conscientizar o povo sobre a situação e grita com insistência: “Quando eu estou para curar Israel, aparece a culpa de Efraim e a maldade de Samaria, pois essa gente só pratica a mentira. O ladrão invade a casa, enquanto, do lado de fora, uma quadrilha assalta” (Os 7,1). A vida está ameaçada dentro e fora da casa. O povo é constantemente saqueado.

As elites rompem a aliança com Javé. Os governantes de Israel adotam um sistema de morte. É uma política que está destruindo a vida. Os usurpadores do poder, entre os quais está o grupo dos sacerdotes oficiais, são chamados de adúlteros (cf. Os 7,4). Os usurpadores vivem tramando: “Todos eles ficam acesos como um forno e acabam queimando seus próprios governantes” (Os 7,7). Os reis da Samaria assumem o poder por meio da força e da violência, não por direito (cf. Os 7,6-7). São filhos bastardos, ou seja, reis ilegítimos (cf. Os 5,7).

Oseias condena os governantes e os grupos políticos influentes. É bom lembrar que, desde a morte de Jeroboão II (743 a.C.), somente Manaém não é assassinado. As intrigas políticas do norte, nos últimos anos de Israel, fazem correr muito sangue. A política interna e externa exige que o Estado fortaleça o seu próprio exército.

 

c) A espada devastará suas cidades, exterminará seus filhos” (Os 11,6)

As autoridades se esquecem de Javé e confiam unicamente na força de seus próprios exércitos: “Porque você confiou em seus carros e na multidão de seus guerreiros” (10,13). A presença do exército nas aldeias é cruel e devastadora. É ele que garante a extorsão de produtos, recruta homens e mulheres, deixando o campo sem trabalhadores e sem cuidado, e reprime as insatisfações e revoltas pela força das armas.

O Estado forte é construído à custa do empobrecimento de muitas pessoas, especialmente por causa do aumento abusivo na arrecadação dos tributos para sustentar o exército e o comércio internacional. Essa realidade faz surgir uma profecia contra a monarquia e contra o exército: “Destruirei o reino da casa de Israel. Nesse dia, quebrarei o arco de Israel no vale de Jezrael” (Os 1,4b-5). O dia a dia das pessoas é marcado pela brutalidade do militarismo: “sangue derramado se ajunta a sangue derramado” (Os 4,2).

O exército e a religião são as duas colunas que sustentam o Estado. Enquanto a violência do exército garante a arrecadação dos tributos, a religião oferece uma justificativa para que as pessoas entreguem sua produção. A religião é usada a serviço do rei e de sua elite.

 

d) “Eu levanto acusação contra você, sacerdote!” (Os 4,4)

Nos santuários do rei nas cidades-Estado de Canaã são oferecidos cultos, sacrifícios, oferendas e rituais de fertilidade ao Baal oficial, deus da chuva e da fertilidade.

No tempo do profeta Oseias, o Estado atribui a Javé oficial as mesmas características de Baal oficial. A necessidade de mais produtos para o comércio e de pessoas para manter o exército e os trabalhos do Estado exige novas estratégias. Os sacerdotes oficiais, então, invadem as aldeias e as eiras, apropriando-se da religião popular, de suas festas e de seus rituais de fertilidade. A eira é o lugar onde se deposita a colheita e onde se fazem as celebrações comunitárias e as festas do povo em agradecimento às divindades pelas colheitas abundantes e pelas novas crias.

Com o controle sobre as festas e os cultos, o Estado quer aumentar sua arrecadação de tributos. Os sacerdotes instruem o povo a oferecer sacrifícios e a participar das festas e dos rituais do Javé baalizado.

Por isso, a profecia de Oseias diz que as filhas e noras não serão castigadas por se prostituírem (cf. Os 4,14), mas sim os sacerdotes. Eles são os que possuem um espírito de prostituição, ao interferirem na vida das aldeias exclusivamente para aumentarem o lucro. A manipulação das famílias é o último grau de exploração e corrupção, pois inviabiliza a estrutura da casa, base da organização do povo.

 

e) A terra geme e seus moradores desfalecem” (Os 4,3)

No Antigo Israel, a vida é organizada a partir da casa. A casa é uma instituição que pode designar a família próxima, os parentes no sentido mais amplo, toda a nação ou apenas um grupo. Uma casa é formada por pessoas ligadas por vínculos de parentesco, agrupando várias gerações: pai, mãe, filhos, filhas, noras, mulheres solteiras, tios, sobrinhos, netos. Além dos parentes, existem outras pessoas, como servas e servos, estrangeiras(os), viúvas e pessoas contratadas. Trata-se de uma família ampliada, com muitos membros. Algumas casas chegam a ter entre cinquenta e oitenta pessoas.

Na casa há laços de solidariedade, fortalecidos e sacralizados pela herança, a terra da família, e pelos túmulos de seus antepassados aí colocados. O trabalho e seus frutos são partilhados entre todas as pessoas que fazem parte da casa. O cuidado com a terra pertence ao homem; a mulher assume a responsabilidade de preparar a comida, buscar água, lenha, cuidar dos rebanhos, além de outras funções como a tecelagem, o trabalho com o couro e a cerâmica. Uma vez que o trabalho é distribuído de maneira igualitária, sobra muito tempo para a convivência humana, as festas e outras diversões.

Mas o Estado, com seu exército e sua religião oficial, mina a estrutura da casa, por fora e por dentro. Muitas famílias camponesas, endividadas, são obrigadas a vender a terra. As mulheres são forçadas a assumir trabalhos domésticos na corte e nos santuários, e os homens, devido às constantes guerras, são recrutados para o exército. Não há quem cuide da casa e das lavouras. Além disso, a presença do exército provoca devastação nos campos. Os sinais de destruição estão estampados em todos os cantos da terra: “as feras, aves do céu e até peixes do mar estão desaparecendo” (Os 4,3). É nesse chão que nasce a voz profética de Oseias.

 

f) Eu me casarei com você na justiça e no direito, no amor e na ternura” (Os 2,21b)

Oseias apresenta um projeto de salvação para o povo. Ele faz duas propostas fundamentais:

1. Desmilitarização do Estado. É preciso acabar com o exército, um dos mecanismos que sustenta o Estado: “Eliminarei da terra o arco, a espada e a guerra; e, então, vou fazê-los dormir em segurança” (Os 2,20).

2. Desbaalização. Desmascarar a opressão religiosa e refazer a aliança com Javé: “Eu sou Javé, seu Deus, desde a terra do Egito. Eu farei você morar novamente em tendas, como nos dias do Encontro” (Os 12,10). Voltar para as tendas significa restabelecer uma organização social que promova a vida das pessoas. Refazer a aliança com Javé supõe estabelecer novas relações, baseadas “na justiça e no direito, no amor e na ternura… na fidelidade” (Os 2,21.22). A realização da nova sociedade implica refazer a aliança com Javé, o Deus da vida.

 

g) “O meu coração salta no meu peito, as minhas entranhas se comovem dentro de mim” (Os 11,8b)

No fundo do poço, em meio à realidade de morte e destruição, devastação e desolação, a comunidade profética ajuda o povo a fazer uma nova experiência de Deus. Um Deus que se abaixa para acolher o seu povo: “Eu me inclinava para ele e o alimentava” (11,4b). Um Deus que pede ao seu povo que viva a misericórdia e a solidariedade: “Eu quero amor e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6).

Na vida sofrida, a comunidade de Oseias experimenta a presença de Deus pai-mãe, que é fiel à aliança; isso pode ser confirmado pela expressão “meu povo”, repetida várias vezes (cf. Os 4,6.8.12; 6,11; 11,7). O povo sente que Deus está ao seu lado, sendo parceiro contra os opressores (cf. Os 7,2). É a experiência de Deus que ajuda o povo a resistir. Pensando na multidão sem eira nem beira, estando ao lado dela, até é possível ouvir: “Só Deus é por nós!” O mesmo ato de fé que ouvimos hoje nas ruas de nossas cidades e no clamor das pessoas que vivem momentos de extrema dificuldade.

Mas, na leitura de Oseias, além de imagens que falam da renovação da vida, como: “Serei como orvalho para Israel”; “Sou como o cipreste frondoso” (14,6.9), encontramos outras imagens de Deus violentas; falam de um Deus que castiga, fere e machuca. Por exemplo: “Pois eu serei um leão para Efraim, um filhote de leão para a casa de Judá. Estraçalho tudo e vou-me embora, carrego minha presa e ninguém vai tirá-la de mim” (5,14).

Para entender os diferentes traços do rosto de Deus e as propostas da comunidade de Oseias, é preciso entender como esse livro, da forma como está na Bíblia, chegou até nós. É um livro que passou por diversas releituras e acréscimos em diferentes períodos da história. Vamos lá. É preciso identificar alguns retalhos dessa profecia.

 

4. O livro de Oseias: uma colcha de retalhos

O livro de Oseias que temos na Bíblia tem uma longa história. Existem quatro etapas importantes: o tempo da profecia (750 a 724 a.C.); a primeira redação, logo após a queda da Samaria, em 722 a.C.; a segunda redação por mãos deuteronomistas do tempo do rei Josias, por volta de 620 a.C.; e a redação exílica, entre os anos 587 e 539 a.C.

 

a) Tempo de Oseias e a primeira redação

Oseias começa o seu ministério no final do reinado de Jeroboão II, por volta de 750 a.C. Nesse tempo, à custa do sofrimento das pessoas pobres, o Estado atinge o seu auge. Após a morte de Jeroboão II, Israel enfrenta várias crises políticas e sociais, culminando com a sua destruição. O grupo de Oseias representa uma voz que se levanta contra a política da casa real do norte. Ele assume uma posição radical contra o militarismo, a monarquia e a opressão da religião. Os oráculos de Oseias são pronunciados nesse período.

Em 722 a.C., a Assíria invade a Samaria e destrói o reino de Israel, as elites são deportadas para outras partes do império assírio e outros povos dominados são trazidos para ocupar as terras de Israel. Alguns grupos do norte fogem para o sul, levando consigo suas tradições; entre estes estão os discípulos de Oseias.

Esses discípulos colecionam os discursos do profeta, põem uma ordem, modificam alguns deles e, sendo fiéis ao estilo de Oseias, fazem a primeira redação. A história de que Javé ordena Oseias a se casar com uma mulher de prostituição e assumir os filhos dela pode ter sido criação dos primeiros escritores. O objetivo é contextualizar a profecia, relacionando-a com a vida pessoal do profeta para dar credibilidade à profecia, pois era comum o profeta narrar o chamado de Deus para legitimar o seu ministério diante de seus opositores.

 

b) Segunda redação e os monarquistas

No tempo do rei Ezequias (716-687 a.C.), a Assíria entra em crise, o que favorece a expansão e o nacionalismo do reino do sul. Ezequias desenvolve uma política de centralização econômica e religiosa (cf. 2Rs 18). Para justificar a sua reforma, especialmente a instituição do templo como único lugar oficial de culto e a de Javé como Deus único, os escribas da corte retomam as leis vindas do reino do norte e apresentam uma nova redação, dando origem ao núcleo antigo do Deuteronômio (12-26). Mais tarde, esses escribas serão chamados de deuteronomistas.

Mas a Assíria retoma o fôlego e submete novamente Judá; os reformistas são obrigados a esconder o Livro da Lei e fugir. Josias (640-609 a.C.) retoma as reformas iniciadas por Ezequias e reforça a centralização econômica, política e religiosa (cf. 2Rs 22,1-23,30). Por volta de 620 a.C., para justificar suas medidas, o rei pede que os seus escribas escrevam a história de Israel. Surge a primeira redação dessa história: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis e uma nova redação e ampliação do livro do Deuteronômio. Um dos temas principais dessa escola é criticar os reis do norte, começando por Jeroboão I (931-910 a.C.), e condenar os santuários javistas construídos por ele, como o de Betel e Dã, pois o único lugar oficial para o culto é Jerusalém, morada de Javé, o Deus único. Na visão dos deuteronomistas do tempo de Josias, a queda de Israel é consequência de sua infidelidade.

Nessa época, o texto de Oseias é retomado e novos oráculos são acrescentados, por exemplo: os protestos contra as romarias feitas aos santuários do norte — Betel e Guilgal (cf. 4,15; 6,10; 9,15); a forte rejeição ao bezerro de ouro (cf. 8,5-6; 10,5-6); as denúncias contra as práticas religiosas (cf. 4,17-19; 9,4); e a condenação das festas que Jeroboão I estabelece no norte (cf. 9,5-6; 1Rs 12,32-33). Outro forte acento dessa releitura é que Javé colocará fim ao culto aos baalim, com seus altares e pilares (cf. 10,1-2.8; 13,1-3). Há oráculos que insistem na eliminação de outras divindades, no culto a Javé como Deus único (cf. 13,4) e na obediência à Lei (cf. 8,1.12). Provavelmente esses aspectos são mais do tempo do rei Josias do que propriamente do tempo de Oseias.

 

c) Redação exílica

Após a morte de Josias, o reino do sul enfrenta vários conflitos com a Assíria, o Egito e a Babilônia. Em 597 a.C., as elites de Judá são deportadas para a Babilônia. Dez anos depois, em 587 a.C., nova onda de revoltas provoca a segunda deportação, só que desta vez o estrago é maior: a cidade de Jerusalém é destruída, o templo é saqueado e queimado. Em 582 a.C., novos conflitos provocam a terceira deportação.

O exílio da Babilônia gera uma crise profunda na vida do povo judeu. O povo está sem rei, sem terra, sem nome, sem vida. O povo está no chão, fracassado. Há grande vazio e humilhação. Quem vai para a Babilônia acaba assumindo os costumes e a religião do novo país. Quem fica em Judá chora e se lamenta diante das ruínas. Mas, passada a tempestade, ressurgem os grupos de resistência. Nesse momento, há nova redação da História Deuteronomista.

A História Deuteronomista do exílio fala da destruição (cf. Os 11,6), do exílio (cf. Os 9,17) e da rejeição à realeza (cf. Os 13,9-11). Essa redação procura explicar teologicamente as razões da queda do reino do sul. Para os historiadores deuteronomistas do exílio, a queda e a destruição são consequências da infidelidade a Javé. Os antigos oráculos de Oseias são retomados, especialmente os que falam do exílio do norte, por exemplo: “Porque os filhos de Israel ficarão por muito tempo sem rei e sem chefe, sem sacrifícios e sem monumentos sagrados, sem adivinhação e sem imagem de ídolos” (3,4; cf. 9,1-6; 11,5-7). Esses textos falam da queda do norte, mas também servem para explicar a queda do reino do sul, Judá.

No exílio, em meio à falta de perspectivas e à escravidão, os oráculos de Oseias são retomados para animar e reavivar a esperança do povo. Um tema muito frequente na redação final é a volta a Javé, o Deus único: “Venham, voltemos a Javé: ele nos despedaçou, mas ele nos vai curar; ele nos feriu, mas ele vai atar nossa ferida” (Os 6,1; cf. 3,5). Possivelmente, a teologia do Deus único é reforçada e alimentada pelos teocratas no pós-exílio.

Complicado, não!? Mas também muito importante, pois nos ajuda a não fazer uma leitura fundamentalista da profecia de Oseias. É preciso cuidadosa atenção para perceber qual o tempo da redação, quais os objetivos dos redatores e para quem foi escrito.

A proposta da comunidade profética de Oseias é restabelecer estruturas que favoreçam a vida das pessoas. Ele era um idealista, um sonhador, um acendedor de lampiões. Ao longo da história alguns se apropriam desse projeto e o usam a serviço dos interesses do Estado. É o risco. Mas outros, como Jeremias, o Segundo Isaías e os deuteronomistas exílicos, releem Oseias e ajudam a construir novos caminhos para o povo sofrido, alimentando seus sonhos: “Voltarão a sentar-se à minha sombra, farão reviver o trigo, florescerão como videiras” (Os 14,8). A profecia convida o povo a sentar-se à sombra de Javé, o Deus da vida.

A semente está em nossas mãos! Cabe a nós dar continuidade ao projeto de reconstrução da vida apresentado por Oseias e assumido por muitas outras pessoas ao longo da história. Entrando na corrente de profetisas e profetas, vamos mergulhar nessa profecia e deixar emergir novas luzes para as nossas comunidades de hoje. Lancemos as sementes de vida!

Maria Antônia Marques