Publicado em setembro-outubro de 2011 - ano 52 - número 280
Não acumular… memória que deve permanecer viva! Uma leitura de Êxodo 16,1-3.12-21
Por Maria Antônia Marques
Em nossa vida temos várias vivências de que a partilha é um momento sagrado. Vamos recordar um fato do cotidiano, que pode também ser a sua experiência: Certa vez, houve uma festa na qual estavam previstos 200 convidados para o almoço. Porém, chegaram mais de 300 pessoas. O resultado é que a comida não foi suficiente. O grupo que estava à frente da festa improvisou do jeito que pôde, mas a situação foi constrangedora, houve frustração, mal-estar, muita gente saiu insatisfeita e os comentários maldosos se prolongaram por um bom tempo.
Bem diferente é a realidade dos almoços ou lanches comunitários de que já participamos em momentos de encontros, cursos, retiros ou outros espaços de formação. Cada pessoa traz algum alimento e o põe em comum. A alegria é geral, pois a refeição é organizada por todos. Sempre há variedade e fartura, mas nada se perde, pois há outras pessoas com quem se pode partilhar.
A partilha é espaço de humanização no qual fazemos a experiência de amar e ser amados. Na partilha, Deus se faz presente. A concentração de bens nas mãos de pequena minoria impede que muitas pessoas tenham condições dignas de vida. Isso pode ser experimentado tanto nas relações cotidianas como na organização social de impérios e monarquias. A releitura da história nos ensina que o acúmulo é contrário ao projeto da partilha e da solidariedade.
Este artigo oferece alguns elementos para entendermos o domínio do Egito e o surgimento de grupos que se opõem ao sistema centralizado, dando origem a outro povo, que mais tarde se chamará Israel. Porque a história é cíclica, em Israel também haverá a concentração de excedentes na mão dos grupos dirigentes, assim como o grito de alguns grupos que procurarão manter o sistema da partilha e da solidariedade. Essa memória tem de passar sempre de novo pelo nosso coração e nos ajudar a manter vivo o milagre da partilha, que faz a vida nova acontecer ao nosso redor.
Com esse desejo, entremos na história do Egito, recordando essa lição, que pode se desdobrar em muitas outras… Depende da sensibilidade de cada leitora ou leitor.
1. O DOMÍNIO EGÍPCIO
Em torno de 1580 a.C., o Egito retoma seu domínio e esplendor, conquistando novas terras. Com o faraó Tutmósis III (1490-1436 a.C.), o Egito chega ao auge de seu poder. No norte, seu domínio se estende desde o Eufrates até a foz do Orontes e, no sul, até a quarta catarata do Nilo, na Núbia. O Egito domina Canaã, uma província que abrange o oeste da Palestina, quase toda a Fenícia e o sul da Síria. Uma região com grande população ao longo da costa na planície de Esdrelon e o vale do Jordão.
Com o domínio de Canaã, o Egito detém o controle da rota comercial e das cidades-Estado existentes na região. Os reis cananeus mantêm sua autonomia, mas não sua independência política, por meio do pagamento de tributos ao faraó. Quem mais sofre com essa situação é a população camponesa, com o aumento abusivo dos tributos. Muitos camponeses ficam endividados e são obrigados a exercer trabalhos forçados ou entregar-se a si mesmos como escravos.
A organização social do Estado egípcio é formada por uma elite dominante, menos de 5% da população, e por estratos inferiores, cerca de 90%. O primeiro grupo é composto do rei, de nobres, grandes artesãos, comerciantes, escribas (que têm funções administrativas e políticas), militares e funcionários do templo (sacerdotes e escribas). O culto visa manter o poder do rei e da ordem existente como vontade da divindade. No segundo grupo, encontramos camponeses, pastores e escravos – em geral, prisioneiros de guerras – e algumas categorias de artesãos. Os camponeses têm de entregar todo o excedente aos grupos dominantes.
Na Bíblia, há duas passagens que ilustram o funcionamento do sistema tributário do Egito. A primeira é Gn 47,13-26. Nesse sistema, a terra está nas mãos do faraó e dos sacerdotes. Em troca das sementes e do direito de trabalhar na terra, os camponeses entregam um quinto da colheita ao faraó (Gn 47,24). É importante considerar que os próprios camponeses entregam o trigo que depois eles são obrigados a comprar. Outra passagem importante é 1Sm 8,11-18: os direitos do rei. Vejamos quais são:
Ele convocará os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e de sua cavalaria e os fará correr à frente do seu carro; e os nomeará chefes de mil e chefes de cinquenta, e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros.
Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará os vossos campos, as vossas vinhas, os vossos melhores olivais, e os dará aos seus servos. Das vossas sementes e das vossas vinhas ele cobrará o dízimo, que destinará aos seus eunucos e aos seus servos. Os melhores dentre vossos servos e vossas servas, e de vossos adolescentes, bem como vossos jumentos, ele os tomará para o seu serviço. Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus servos. Então, naquele dia, clamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes escolhido, mas Javé não vos responderá, naquele dia.
Os direitos do rei representam a prática do império egípcio, dos reis cananeus e, mais tarde, dos reinos de Israel e Judá. A palavra tomar aparece seis vezes e expressa a exploração do rei sobre o povo. Quem sustenta a burocracia e o luxo da corte é o povo. O rei tem o direito de tomar filhos e filhas, terras, tributos e escravizar o povo. O rei é o senhor de tudo. Denunciando esse sistema, temos o grito profético de Miqueias: “Ouvi, pois, isto, chefes da casa de Jacó e dirigentes da casa de Israel, vós que execrais a justiça, que torceis o que é direito, vós que edificais Sião com o sangue e Jerusalém com injustiça! Seus chefes julgam por suborno, seus sacerdotes decidem por salário e seus profetas vaticinam por dinheiro” (Mq 3,9-11a).
Todo poder centralizador destrói o sistema igualitário e significa uma volta simbólica ao Egito. O início do livro do Êxodo descreve as duras condições de vida impostas aos hebreus que estavam no Egito (Ex 1,8-14). A dureza da vida foi suscitando o desejo de liberdade. As dificuldades internas e as constantes guerras enfraqueceram o império, favorecendo a fuga de escravos em diversos grupos. A saída do Egito e o tempo de deserto se tornaram elementos referenciais na espiritualidade do povo que sofre com a centralização do poder nas mãos dos grupos dirigentes nos diversos períodos da história de Israel, para que não fossem reproduzidas, no presente, as condições de exploração e opressão vividas no Egito.
É preciso manter vivas as lições da história para evitar a opressão e a exploração. Entre as lembranças do deserto, encontramos a narrativa do maná, que transmite a experiência de que ali Javé alimentou e sustentou o seu povo. A redação final desse texto, mesmo tendo sido apropriada pelo grupo de sacerdotes e escribas de Judá, por volta do ano 400 a.C., relembra que o deserto é lugar de experimentar a gratuidade de Deus, que dá o pão de cada dia e proíbe o acúmulo, cujo praticante ajunta para si apenas podridão e vermes.
2. CADA UM COLHIA O QUANTO PODIA COMER
O capítulo 16 do livro do Êxodo começa informando o itinerário da caminhada. Eles partiram de Elim, um oásis onde há abundância de águas e árvores: doze fontes e setenta palmeiras (Ex 15,27; Nm 33,9). Os números são simbólicos: doze indica as tribos, e setenta, os clãs. O sentido é que há água e comida para todos. O primeiro ponto de parada depois do mar Vermelho é o deserto de Sin, local de privação. Nesse local, os israelitas murmuram contra Moisés sobre a falta de comida (Ex 16,2-3).
Ser livre é processo difícil. O grupo da murmuração continua fazendo suas exigências, indo na contramão do processo de libertação. Será que, no Egito, as pessoas, principalmente os escravos, tinham acesso às panelas de carne? Será que a alimentação era abundante? Em tão pouco tempo, o povo apagou da memória o sofrimento provocado pela escravidão. O Egito aparece como lugar de abundância e de vida. O sofrimento do momento presente distorce a memória do passado. Em geral, o Egito é lembrado como lugar de dura opressão, mas agora, no deserto, a única lembrança é da carne e do pão. Parece que o povo sente saudade da escravidão e tem medo da liberdade.
Ex 16,13-21 faz parte de antiga tradição que descreve como o milagre do pão dos céus ocorreu:
À tarde subiram codornizes e cobriram o acampamento; e pela manhã havia uma camada de orvalho ao redor do acampamento. Quando se evaporou a camada de orvalho que caíra, apareceu na superfície do deserto uma coisa miúda, granulosa, fina como a geada sobre a terra. Tendo visto isto, os israelitas disseram entre si: “Que é isso?” Pois não sabiam o que era. Disse-lhes Moisés: “Isso é o pão que Javé vos deu para vosso alimento. Eis que Javé vos ordena: ‘Cada um colha dele quanto baste para comer, um gomor por pessoa. Cada um tomará segundo o número de pessoas que se acham na sua tenda’”.
E os israelitas assim fizeram; e apanharam, uns mais, outros menos. Quando mediram um gomor, nem aquele que tinha juntado mais tinha maior quantidade, nem aquele que tinha colhido menos encontrou menos: cada um tinha recolhido o quanto podia comer.
Moisés disse-lhes: “Ninguém guarde para a manhã seguinte”. Mas eles não deram ouvidos a Moisés, e alguns guardaram para o dia seguinte; porém, deu vermes e cheirava mal. E Moisés indignou-se contra eles. Colhiam-no, pois, manhã após manhã, cada um o quanto podia comer, e, quando o sol fazia sentir o seu ardor, se derretia.
A lição mais importante é que o Deus do êxodo continua com o seu povo e ouve as suas murmurações. O relacionamento entre Deus e Israel na história do maná parece ser positivo: “Eu ouvi as murmurações dos israelitas; dize-lhes: Ao crepúsculo comereis carne, e pela manhã vos fartareis de pão; e sabereis que eu sou Javé vosso Deus” (Ex 16,12).
O maná e as codornizes aliviam a situação do povo no deserto. “O que é isso?”, em hebraico man hû. O maná é produzido pela secreção de insetos que se alimentam de tamargueiras. Trata-se de substância composta de açúcar, que se solidifica no ar seco e frio, tornando-se semelhante a pequenas folhas, mas derrete e desaparece sob o calor do sol (cf. Nm 11,7-9). É possível encontrá-lo somente na região central do Sinai, nos meses de maio a junho.
Em setembro, quando as codornizes voltam de sua migração na Europa, impelidas pelo vento oeste, são abatidas em grande quantidade sobre a costa do deserto. É possível que esse capítulo reúna memórias de diferentes grupos que deixaram o Egito separadamente (cf. Ex 7,8; 11,1), seguindo por diferentes caminhos (Ex 13,17). Em sua fuga, o povo foi se ajeitando como era possível, alimentando-se com o que encontrava no deserto. Depois de muitos anos, o povo revê a sua trajetória e relê esses fatos como providência especial de Deus.
A ordem para que cada pessoa colhesse somente o necessário se refere ao maná. O v. 21a indica que a instrução está diretamente relacionada ao maná, não às codornizes. É lei contra o acúmulo. A abundância da comida poderá criar a ilusão de autossuficiência: “Não vás dizer no teu coração: ‘Foi a minha força e o poder das minhas mãos que me proporcionaram estas riquezas’” (Dt 8,17).
O resultado para quem acumulou foi ver o alimento estragado e com vermes. Não acumular é uma das exigências para a nova ordem social. No Novo Testamento, encontramos a mesma orientação: “Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal” (Mt 6,34).
Êxodo 16,14 e Nm 11,9 enfatizam o caráter sobrenatural do alimento: o pão que vem do céu e não da terra. O salmo relê a tradição do deserto como dom miraculoso de Deus: “Com efeito, ele feriu o rochedo, as águas correm e as torrentes transbordam: acaso também pode dar o pão ou fornecer carne ao seu povo? Contudo, ordenou às nuvens do alto e abriu as portas do céu; para os alimentar fez chover o maná, deu para eles o trigo do céu; cada um comeu do pão dos fortes; mandou-lhes provisões em fartura” (Sl 78,20.23-25; cf. Sl 105,40; Ne 9,15). No livro da Sabedoria, o maná é considerado “um alimento dos anjos” (Sb 16,20). Na tradição cristã, o maná será contraposto ao próprio Jesus, o pão vivo descido do céu (Jo 6,49-51).
O acontecimento do maná, lido e reescrito por diversos grupos, recorda, de uma forma ou de outra, a presença de Javé alimentando e sustentando o seu povo. É um olhar para o passado que ajuda a reforçar a fé no Deus da vida, o qual continua se manifestando no momento presente. Este é um verdadeiro milagre: encontrar nas narrativas de milagres forças para prosseguir na caminhada. Como entender as narrativas de milagres descritas na Bíblia?
3. O MILAGRE NA BÍBLIA
A palavra “milagre” vem do latim miraculum, cujo radical é miror, e possui diversos sentidos: pode ser traduzida por prodígio, maravilha, fato estupendo ou extraordinário. É acontecimento que provoca surpresa e admiração. Na língua hebraica, a compreensão de milagre abrange diversos significados, por exemplo: os grandes feitos de Deus (cf. Dt 3,24), as maravilhas (Ex 15,11; Sl 71,17), os prodígios ou, ainda, sinais (cf. Ex 7,3; Dt 4,34). Em grego, encontramos a palavra dynamis, que indica poder dinâmico.
No livro do Deuteronômio, lemos: “E em Israel nunca mais surgiu um profeta como Moisés – a quem Javé conhecia face a face –, seja por todos os sinais e prodígios que Javé o mandou realizar na terra do Egito, contra o faraó, contra todos os servidores e toda a sua terra, seja pela mão forte e por todos os feitos grandiosos e terríveis que Moisés realizou aos olhos de todo o Israel” (Dt 34,10-12). No mundo judaico do quarto século, surge a espera de um profeta no final dos tempos: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” (cf. Mt 11,3). Jesus foi entendido por alguns grupos como o profeta prometido no Antigo Testamento, por meio do qual se realizariam muitas curas e milagres.
A todo momento acontecem fatos extraordinários: a flor que desabrocha, o sol que desponta, anunciando novo dia, o gesto de abrir os olhos e perceber que estamos vivos, o nascimento de um novo ser. O milagre revela a força da vida que supera o que é humanamente possível. É encantamento que envolve o ser humano e o plenifica de admiração. Para as pessoas do tempo da Bíblia – tanto do Antigo quanto do Novo Testamento –, existia a certeza de que poderes invisíveis atuavam no mundo visível.
No Antigo Testamento, há alguns relatos de milagres. O livro do Êxodo descreve a intervenção divina na saída do Egito e na travessia do deserto, por exemplo: as dez pragas do Egito, a passagem do mar, o maná, as codornizes e a água da rocha. A função das narrativas de milagres no Êxodo é, em certos casos, reforçar o projeto de Deus e, em outros, legitimar a missão de Moisés. O livro dos Atos dos Apóstolos retoma esses sinais e prodígios de Moisés para confirmar a ação de Deus salvador ao longo da história do seu povo (cf. At 7,36-38).
Porém, ao ler o Antigo Testamento procurando enxergar o cotidiano das pessoas sofridas, encontramos relatos de milagres que garantem a sobrevivência, especialmente o milagre da partilha, como no caso da viúva de Sarepta, que oferece o pouco que tem ao outro. A partilha acontece no cotidiano, por isso “a vasilha de farinha não se esvaziará e a jarra de azeite não acabará” (1Rs 17,14). Em outra narrativa, temos a descrição da cidade com águas ruins e esterilidade que são curadas com o sal colocado num prato novo e, em seguida, lançado à fonte das águas (2Rs 2,19-22). Em outra ainda, o ato de jogar um pouco de farinha na panela elimina o efeito do veneno (2Rs 4,41). Esses gestos deviam ser comuns no mundo dos camponeses. São ações de cura que passam pelo uso do sal, do prato novo e da farinha. Elementos do cotidiano nos quais o sagrado se manifesta.
No tempo de Jesus, o grupo dos essênios e o dos fariseus não acreditavam nos milagres. Era prática mais aceita entre os pobres e os pequenos. No mundo greco-romano do primeiro século, havia grande divisão em relação à crença em milagres. De um lado, alguns grupos atribuíam muita importância aos prodígios e a todos os tipos de milagres. De outro, havia muita desconfiança e objeções. O mundo helênico vivia intensa busca de salvação. Por exemplo, Asclépio, também conhecido como Esculápio, era divindade ligada à cura e cultuado como o senhor e salvador de todo o universo. O título de salvador é atribuído a Deus (cf. Sl 24,5; 95,1; Is 43,11; 45,15) e a Jesus no Novo Testamento (Mt 1,21; Lc 19,10; Jo 4,42). A serpente era o símbolo do Deus Asclépio e, hoje, da medicina.
Analisando os relatos de milagres de Jesus, podem-se levantar algumas características:
- Para que o milagre aconteça, é necessária a integração de duas partes: primeiro, a fé, ou seja, a pessoa que acredita nessa realidade; segundo, a pessoa a quem se atribui a força para realizar um milagre. No Evangelho de Marcos, lemos: “E não podia realizar ali nenhum milagre, a não ser algumas curas de enfermos, impondo-lhes as mãos. E admirou-se da incredulidade deles” (6,5-6a). A falta de fé dos habitantes da Galileia limitou o poder de Jesus. Ao contrário do que Jesus disse à mulher: “Minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz, fica curada desse teu mal” (Mc 5,34).
- No tempo de Jesus e das primeiras comunidades, acreditava-se em estreita relação entre o mal, a doença e o pecado. As desgraças eram consideradas castigos de Deus por causa dos próprios pecados ou dos pecados dos pais. No Evangelho de João, os discípulos perguntam a Jesus: “Rabi, quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?” A resposta é firme: “Nem ele nem seus pais pecaram” (cf. Jo 9,2-3). Espelhado na prática de Jesus, o evangelho propõe desvincular o limite físico, ou seja, a doença, do pecado. Diante da insistência dos escribas que sustentam a teologia da retribuição, Jesus questiona: “Que é mais fácil dizer ao paralítico: ‘Os teus pecados estão perdoados’, ou dizer: ‘Levanta-te, toma o teu leito e anda?’” (Mc 2,9).
- O Evangelho de Marcos 4,35-41 narra o episódio da tempestade no mar, a qual põe em risco a vida da embarcação. Jesus “conjurou severamente o vento e disse ao mar: ‘Silêncio! Quieto!’ Logo o vento serenou, e houve grande bonança”. Conjurar, em grego epitimao, é palavra própria do exorcismo. A palavra de Jesus vence o poder demoníaco do vento e do mar. Da mesma forma, no episódio da sogra de Pedro, Jesus vence o poder da febre, entendida como poder demoníaco, com a sua palavra (Lc 4,39). Apresentar Jesus realizando curas é anúncio da antecipação da chegada do reino de Deus (Mt 11,2-6; Lc 7,18-23). Algumas curas milagrosas atribuídas a Jesus realizam a esperança anunciada por Isaías (Is 26,19; 29,18-19; 35,5-6; 61,1).
- A narrativa da multiplicação dos pães segundo o Evangelho de Marcos (6,30-44) apresenta uma multidão faminta e Jesus, que, ao olhar a realidade, “ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). Como alimentar tantas pessoas? Os discípulos logo apontam a solução: que eles comprem seus alimentos. A resposta de Jesus é convite para superar essa mentalidade: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6,37). Para que o milagre aconteça, é preciso superar a mentalidade individualista e pôr os bens em comum (Ex 18,21; Dt 1,15). Ao organizar a partilha em grupos de cem e de cinquenta, o Evangelho de Marcos relembra a organização tribal (Mc 6,40). Onde há partilha e solidariedade, ninguém passa fome. E esse alimento não é só para o povo de Israel, mas para todos os povos (cf. Mc 7,24-30; 8,1-10).
E hoje, num mundo marcado pela ciência e tecnologia, é possível acreditar em milagres? Em nossa realidade, há muitos santuários com suas salas de milagres. Há pessoas que vão a um santuário ou a um pregador em busca de milagres e nada acontece. Mas também existem as que vão e o milagre se realiza. Os milagres são manifestações concretas do Deus da vida. Como o salmista, podemos novamente cantar que Deus “realizou maravilhas porque seu amor é para sempre!” (Sl 136,4). Ele continua se manifestando na vida de homens e mulheres, “porque seu amor é para sempre!”
Nas várias tragédias ocorridas no mundo e no Brasil, presenciamos o milagre da partilha. Pessoas e grupos se mobilizam para amenizar o sofrimento de quem perdeu tudo. Esse é o milagre da solidariedade. Porém nem sempre vemos essa organização e mobilização ao redor das questões sociais, como a situação de violência presente em nossas cidades ou em nossa comunidade; o mesmo se pode dizer das condições de extrema pobreza na qual vivem milhões de pessoas ou de outras situações de injustiça ao nosso redor. Milagres acontecem, sim, e nos fazem acreditar na força da vida. É preciso pormos mais forças em ação para que o milagre da solidariedade social possa acontecer cotidianamente em nós e ao nosso redor.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BERGER, Klaus. É possível acreditar em milagres? São Paulo: Paulinas, 2007.
DOZEMAN, Thomas B. Exodus. Grand Rapids Michigan: Eerdmans, 2009.
LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Paulus: Loyola, 2008.
ZENGER, Erich (Org.). Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003.
*Assessora do Centro Bíblico Verbo, ministra cursos de Bíblia em diversas comunidades; professora de Bíblia nas seguintes faculdades: Escola Dominicana de Teologia, em São Paulo, na Faculdade Dehoniana, em Taubaté, e na Faculdade Católica de São José dos Campos.
E-mail: [email protected]
Maria Antônia Marques