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Publicado em número 250 - (pp. 24-29)

Mais vale um bocado de lazer do que dois bocados de trabalho

Por Equipe do Centro Bíblico Verbo

Uma leitura de Eclesiastes 4,1-12

 

Era uma vez uma cigarra, que, sem pensar em guardar nada, passou o verão a cantar. Eis que chega o inverno, e então, sem provisão na despensa, como saída, ela pensa em recorrer a uma amiga, sua vizinha, a formiga, pedindo a ela, emprestado, algum grão, qualquer bocado, até o bom tempo voltar. “Antes de agosto chegar, pode estar certa a senhora: pago com juros, sem demora.” A formiga, então, lhe pergunta: “Que fizeste até outro dia?” A cigarra responde: “Eu cantava, sim, Senhora, noite e dia, sem tristeza”. A formiga então lhe diz: “Tu cantavas? Que beleza! Muito bem: pois dança agora…” (Fábulas de La Fontaine).

 

A fábula A Cigarra e a Formiga foi escrita há quase quatro séculos e continua sendo contada e recontada nas escolas, nos teatros e na televisão. O que nós pensamos do comportamento da formiga? Como agiríamos se estivéssemos no lugar dela? A competição, o trabalho excessivo e o desemprego causam solidão e desespero. Em geral, sobra pouco tempo para o lazer, que nos ajuda a recuperar as energias e fortalecer os laços com as pessoas que amamos. Precisamos trabalhar, mas também cultivar em nossa vida a dimensão do lazer. Somos chamadas e chamados a viver bem o dia a dia, encontrando alegria nas pequenas coisas. Ser feliz é o desejo de toda pessoa.

A mesma preocupação foi o tema da profunda investigação e reflexão de Coélet, um sábio do século III a.C., e de seus discípulos, que nos deixaram o livro de Eclesiastes: “Eis o que observo: o que melhor convém ao homem é comer e beber, encontrando a felicidade em todo trabalho que faz debaixo do sol, durante os dias da vida que Deus lhe concede. Pois esta é a sua porção” (Ecl 5,17); “Mais vale um bocado de lazer do que dois bocados de trabalho, correndo atrás do vento” (Ecl 4,6); “Ainda há esperança para quem está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais do que um leão morto” (Ecl 9,4). Muito instrutivo, não?

Lendo e analisando o estilo, o vocabulário e o pensamento do livro de Eclesiastes, vamos perceber que se trata de um livro surgido por volta do ano 250 a.C., durante o período em que a Palestina era dominada pelos Ptolomeus do Egito, uma dinastia grega (301-198 a.C.). Foi uma época em que o povo judeu teve maior contato com o mundo grego e sofreu influência do seu modo de organizar a sociedade, especialmente no que diz respeito ao livre comércio e ao acúmulo: “Há outro mal que observo debaixo do sol e que é grave para o homem: a um, Deus concede riquezas, recursos e honra, e nada lhe falta de tudo o que poderia desejar; Deus, porém, não lhe permite desfrutar estas coisas; é um estrangeiro que as desfruta. Isso é vaidade e sofrimento cruel” (Ecl 6,1-2). Essa prática grega vai contra o modo tradicional da economia judaica, baseada na troca.

É possível que o sábio queira entender as opressões e os sofrimentos presentes na realidade do seu tempo e procure apresentar algumas respostas aos problemas existenciais do ser humano: como viver e ser feliz? Na tentativa de entender as respostas que Coélet e seus discípulos oferecem para que a pessoa alcance a felicidade, vamos conhecer um pouco da realidade e da mentalidade do seu tempo.

 

1. Conhecendo o chão da vida

No tempo da dominação dos Ptolomeus, o livre mercado é amplamente desenvolvido, provocando a busca desenfreada de riquezas. As cidades e as aldeias, mesmo com pouca autonomia, são transformadas em verdadeiros mercados, onde se compra e se vende de tudo, também vidas humanas. A popularização da moeda facilita a troca comercial. Nessa organização, os verdadeiros donos do poder são os grandes comerciantes.

A escravidão é uma realidade constante nos países do Oriente, mas até então não havia sido o modo mais importante de produzir os bens necessários à sobrevivência. Porém, na sociedade grega, o uso de mão de obra escrava torna-se predominante. Os escravos trabalham nas atividades da casa, na agricultura, no comércio e no artesanato. Por isso, os cidadãos, ou seja, as pessoas livres, têm muito tempo disponível para se dedicar à cultura e aos vários jogos. Quem desfruta dessa vantagem é pequena parte que não precisa trabalhar para sobreviver.

Nesse contexto, num primeiro momento, a filosofia grega se preocupa com a origem da vida, do universo e do próprio ser. Aos poucos, passa a se ocupar do ser humano e de sua organização social e política. É o tempo de Sócrates, Platão e Aristóteles (séculos V-IV a.C.). No tempo de Alexandre Magno, as necessidades são outras. Ele tira a autonomia da cidade — da polis —, dando um golpe duro na vida dos gregos, pois de cidadãos eles se tornam súditos e perdem o direito de participar das decisões políticas. A filosofia dos grandes pensadores da época em torno da vida pública já não tem sentido, pois o cidadão se volta para os próprios interesses e para a busca de riquezas pessoais.

Os Ptolomeus, sucessores de Alexandre no Egito e na Palestina, seguem a mesma política dos persas, acentuando o individualismo e a busca desenfreada de riquezas: “Cada um por si e Deus para todos”. O comércio se intensifica, o livre mercado exige mais e mais produtos. Para atender a necessidade de produtos, começa a formação de grandes propriedades de terra e o aumento da mão de obra escrava. Cresce o empobrecimento da maioria, especialmente da população camponesa: “aí estão as lágrimas dos oprimidos, não há quem os console” (Ecl 4,1).

Diante dessa realidade, surgem novas correntes filosóficas com o objetivo de ajudar o ser humano a enfrentar os desafios atuais e encontrar a felicidade. Entre essas correntes estão o cinismo, o epicurismo e o estoicismo. Vejamos, em síntese, qual a proposta de cada uma delas.

 

1. Cinismo

O termo cínico tem o sentido de obstinado. O fundador é Antístenes, mas Diógenes de Sinope, contemporâneo de Alexandre Magno, é o responsável pela divulgação e radicalização das ideias dessa corrente. Ele sobrevive com o mínimo: a sacola de mendigo e o bastão. Não se fixa em uma cidade, mas se considera cidadão do mundo. Seu programa de vida pode ser resumido na seguinte frase: “Procuro o homem”. Uma ironia para expressar a busca do ser humano que vive sua autêntica essência; o ser humano que não se prende a convenções sociais e é feliz porque vive conforme a própria natureza.

O objetivo de Diógenes é demonstrar que o ser humano tem à sua disposição todos os meios para ser feliz. Segundo ele, é necessário eliminar as necessidades supérfluas para alcançar a liberdade. O ideal de vida dos cínicos é atingir a liberdade em todos os sentidos.

Diógenes recusa qualquer imposição ou norma social, chegando muitas vezes a excessos e provocando escândalos; por isso, até hoje, o termo cínico tem um significado negativo. De acordo com Diógenes, a pessoa só atinge a liberdade e a virtude por meio de uma vida austera, capaz de fortalecer-lhe o físico e o espírito e acostumá-la a dominar os prazeres, chegando até a desprezá-los.

O desprezo pelos prazeres é fundamental na vida dos cínicos, pois, a seu ver, o prazer amolece o físico e o espírito e ainda põe em risco a liberdade da pessoa. O objetivo dos cínicos é chegar à apatia e à indiferença diante de tudo. A pessoa basta-se a si mesma. Isso é chamado de autarquia. Segundo eles, para ser feliz é preciso muito pouco, pois a felicidade vem de dentro da pessoa.

A filosofia de vida dos cínicos denuncia a busca do prazer, o amor à riqueza, a sede de poder, de honra, e o desejo de sucesso. Essas coisas não garantem a felicidade para o ser humano. Tais elementos serão retomados pelo epicurismo e pelo estoicismo.

 

2. Epicurismo

Por volta de 307 a.C., surge a escola de Epicuro, que funciona num jardim, longe da agitação da vida pública. Essa corrente ensina que a felicidade é a total ausência de dor e de perturbação. Para ser feliz, o ser humano basta a si mesmo: não precisa da cidade, das instituições, da nobreza, das riquezas nem das divindades. O verdadeiro bem, que é a vida, está dentro de cada pessoa. É possível mantê-la com muito pouco, e todas as pessoas têm acesso a esse pouco.

Epicuro abre as portas do Jardim para todas as pessoas: homens livres, não livres e mulheres — também admite prostitutas que desejem mudar de vida. Para ele, o fundamento do agir humano é o prazer. Afirma que é preciso satisfazer sempre os prazeres naturais e necessários; os prazeres não naturais devem ser totalmente evitados para fortalecer o espírito. Acredita que as divindades existem, mas não interferem na vida do ser humano. Afirma ainda que a pessoa é um composto de alma e corpo; a morte é apenas a dissolução desse composto. Não é preciso temê-la, pois quem morre não sente mais nada.

Essa escola sobreviveu até o século II a.C., mas influenciou muitas pessoas no seu tempo e mesmo nos séculos posteriores. As discussões realizadas no Jardim marcam o pensamento de Zenão, fundador do estoicismo.

 

3. Estoicismo

Nasce em Atenas, no final do século IV, por volta de 312 a.C., tendo como fundador Zenão, um jovem de origem semita, nascido em Chipre. Essa escola filosófica compartilha a mesma visão de mundo dos epicuristas, mas rejeita a solução que eles propõem para resolver os problemas. Zenão considera inaceitável reduzir o ser humano a um composto de átomos e identificar o bem com o prazer.

A filosofia de Zenão é panteísta, ou seja, afirma que tudo é Deus e Deus está em tudo. Existe um todo, cujo corpo é a natureza, e Deus é a alma. Cabe ao ser humano submeter-se, pois tudo já está determinado. Essa corrente tem uma visão antropocêntrica: o ser humano está no centro, e todos os seres criados estão em função dele. Um pensamento totalmente novo para a mentalidade grega, talvez por influência da cultura do Oriente.

A morte é a separação da alma do corpo — lembrando que a alma é corpo e não sobrevive para sempre. Para Zenão e seus seguidores, o objetivo da vida é chegar à felicidade, e para isso é preciso estar integrado com a natureza. Os estoicos pregam a fraternidade do ser humano, mas não são reformadores: aceitam a realidade como ela se apresenta. Dessa forma, mesmo admitindo o escravo como irmão do seu dono, não lutam contra a escravidão. É uma filosofia que favorece os interesses do Estado.

 

O comércio favorece a circulação das mercadorias e das ideias. Surgem novos centros de cultura, como Pérgamo, Rodes e Alexandria. Buscar a felicidade passa a ser a preocupação central na era helenística. As comunidades judaicas de Jerusalém e de Alexandria recebem fortes influências da cultura helenista — como se pode observar no livro do Eclesiástico, escrito por volta do ano 180 a.C. E, bem mais tarde, entre os anos 50 e 30 a.C., ainda é possível perceber as influências da cultura helenista no livro da Sabedoria, escrito para a comunidade judaica de Alexandria.

O autor do livro da Sabedoria descreve o modo de vida dos ímpios, levando em conta alguns princípios apresentados pelos cínicos e pelos epicuristas, como a crença de que a vida é breve e por isso é preciso desfrutar o máximo dos prazeres, não importando a vida do outro: “Nossa vida é a passagem de uma sombra, e nosso fim, irreversível; o selo lhe é aposto, não há retorno. Vinde, pois, desfrutar dos bens presentes e gozar das criaturas com ânsia juvenil… Oprimamos o justo pobre, não poupemos a viúva nem respeitemos as velhas cãs do ancião” (Sb 2,5-6.10).

O livro de Coélet analisa a realidade e apresenta uma proposta de felicidade para as pessoas do seu tempo diferente das correntes comuns. Coélet constata que nada há de novo debaixo do sol… A busca desenfreada de riquezas e sucessos pessoais, prazer e conhecimento não é proporcional à felicidade; ao contrário, está causando a infelicidade de muitas pessoas, gerando empobrecimento e opressões. Diante dessa realidade, qual a proposta de Coélet? Vamos ler Ecl 4,1-12 e descobrir juntos?

 

2. Onde está a felicidade

Como pessoa comprometida com a realidade do seu tempo, Coélet observa “as opressões todas que se cometem debaixo do sol” (Ecl 4,1a). A situação de opressão sob o regime dos Ptolomeus provoca grandes sofrimentos. A população camponesa e os artesãos da cidade são os grupos mais explorados pelos dirigentes. Os altos impostos e os tributos estão empobrecendo a maioria das pessoas, obrigando-as a vender suas terras para saldar as dívidas.

O termo opressão implica violência física. Coélet vê as lágrimas dos oprimidos. Um grito silenciado: “Aí estão as lágrimas dos oprimidos, e não há quem os console; a força do lado dos opressores, e não há quem os console” (Ecl 4,1b). Lágrima expressa dor e derrota. O texto insiste que não há quem console os oprimidos — essa expressão é repetida duas vezes. Qual o sentimento do sábio ao ver essa realidade? Indignação, dor, sofrimento… Talvez o mesmo sentimento que, ainda hoje, experienciamos diante das pessoas pobres e necessitadas que encontramos em nosso caminho: angústia e impotência.

Em seguida, ele proclama uma bem-aventurança: “Então eu felicito os mortos que já morreram, mais que os vivos que ainda vivem” (Ecl 4,2). Em outros lugares do Antigo Testamento encontramos esse mesmo desejo, por exemplo: “Maldito o dia em que nasci! O dia em que minha mãe me gerou não seja abençoado!” (Jr 20,14; cf. Jó 3,3). Coélet não chega a maldizer o dia do seu nascimento; na verdade, em outro contexto, ele afirma: “um cão vivo vale mais que um leão morto” (Ecl 9,4b). Porém, o confronto com a vida no seu limite extremo o leva a felicitar os mortos.

Violência, dor, opressão, lágrimas e abandono tocam profundamente o coração do sábio, que chega a concluir: “E mais feliz que ambos é aquele que ainda não nasceu, que não vê a maldade que se comete debaixo do sol” (Ecl 4,3). O verbo ver tem o sentido de experimentar. Portanto, o não nascido é mais feliz, pois não tem ideia do que significa viver sob a bota do opressor.

Depois de apresentar uma constatação geral de opressão, Coélet focaliza um ponto específico da atividade humana: o trabalho (Ecl 4,4). O termo hebraico usado por ele para trabalho é ’âmal. Essa palavra, em geral, reforça o trabalho pesado, árduo e difícil, podendo ainda ser traduzida por fadiga, cansaço, miséria, aflição. No Antigo Testamento, ’âmal aparece 66 vezes, das quais 30 em Eclesiastes.

No livro, Coélet repete a mesma pergunta três vezes: “Que proveito tira o ’âdâm[1] de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?” (Ecl 1,3; 2,22; 3,9). Ele procura compreender “a tarefa ingrata que Deus deu aos homens para com ela se atarefarem” (Ecl 1,13). O trabalho excessivo feito debaixo do sol é uma desgraça. O sistema monárquico-imperial dos Ptolomeus está sugando ao máximo a energia das pessoas. O trabalhador quase nada aproveita, o lucro vai para as mãos dos comerciantes, dos arrecadadores de impostos, do imperador e das pessoas responsáveis pelo templo.

Para Coélet, o que provoca amargura não é o trabalho em si, mas as circunstâncias: trabalhar para que outra pessoa usufrua. Isso o faz perder as esperanças: “E meu coração ficou desenganado de todo o trabalho com que me afadiguei debaixo do sol. Há quem trabalhe com sabedoria, conhecimento e sucesso, e deixe sua porção a outro que não trabalhou”. Por fim, a sua conclusão: “Isso também é vaidade e grande desgraça” (Ecl 2,20-22).

Afinal, qual é o sentido do trabalho? Coélet responde: “Eis que a felicidade do ser humano é comer e beber, desfrutando do produto do seu trabalho; e vejo que também isso vem da mão de Deus” (Ecl 2,24). Comer, beber e usufruir os frutos do trabalho pode ser observado na experiência cotidiana das pessoas como meio de viver a felicidade. São atividades humanas que dão prazer. Melhor ainda quando são compartilhadas com outras pessoas.

Poder usufruir do fruto do trabalho constitui fonte de realização, é parte da dimensão antropológica do fazer e criar. Produzir algo é reflexo da concepção criadora existente no interior do ser humano. Por meio do trabalho, o ser humano torna-se ele mesmo, dá forma ao próprio ser. Esse é o principal produto do trabalho. Portanto, poder fazer aquilo de que se gosta é muito prazeroso e realizador. Isso é dom de Deus.

Nesse sentido, Coélet constata que a competição e a busca de riquezas e poder eliminam os valores da amizade e do companheirismo: “Observo também que todo trabalho e todo êxito se realiza porque há uma competição entre companheiros” (Ecl 4,4). A busca desenfreada de riqueza está ocupando o lugar da pessoa, provocando o excesso de trabalho e até a desvalorização do trabalho manual, considerado como uma atividade própria dos escravos. Essa é uma corrida sem sentido: “é vaidade e correr atrás do vento!”. É esforço inútil. Resta apenas o vazio.

Ampliando a sua observação, o sábio faz uso de um provérbio, tirado da sabedoria do povo, sobre o agir humano: “O insensato cruza os braços e vai se consumindo” (Ecl 4,5). Em seguida, apresenta o seu pensamento, ao afirmar que “mais vale um bocado de lazer do que dois bocados de trabalho, correndo atrás do vento” (Ecl 4,6). Há muitos provérbios que condenam as pessoas preguiçosas; por exemplo, no livro dos Provérbios lemos: “Dormir um pouco, cochilar um pouco, um pouco cruzar os braços, espreguiçando-se, e tua indigência virá como um vadio, como um mendigo a tua necessidade” (Pr 24,33-34).

Um provérbio muito popular em nosso meio reflete essa sabedoria universal: “Deus ajuda quem cedo madruga”; em outro contexto, alguém modificou essa sentença: “Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga”. Coélet não condena o trabalho, mas a competição e o trabalho excessivo. Ele apresenta a sua proposta: viver “um bocado de lazer”. É importante trabalhar, mas sem espírito competitivo, com tranquilidade, podendo desfrutar a vida que Deus nos dá.

Por fim, Coélet observa outra vaidade debaixo do sol: o trabalho realizado de maneira individualista. De que adianta trabalhar tanto se não há com quem compartilhar ou para quem deixar os próprios bens? A busca pelas riquezas não tem fim: “seus olhos não se saciam de riquezas”. Apesar de terem o suficiente, algumas pessoas são insaciáveis. O afã de possuir mais e mais é sem limites. Trabalhar exageradamente e privar-se da felicidade “é vaidade e trabalho penoso” (Ecl 4,8). Quem se joga inteiramente no trabalho acaba estressado, sozinho e infeliz.

“Mais vale dois que um só…” (Ecl 4,9). Está na Bíblia, está na vida. O ganho de duas pessoas é sempre maior. Coélet recolhe outros exemplos da vida cotidiana para mostrar que é preferível o comunitário. Se duas pessoas estiverem caminhando juntas, no caso de uma cair, a que estiver ao lado poderá levantá-la. O solitário terá de se levantar sozinho ou ficar caído no chão.

Mais um exemplo para comprovar que dois é sempre melhor: “Se eles se deitam juntos, podem se aquecer; mas alguém sozinho como vai se aquecer?” (Ecl 4,11). Nas noites frias de inverno, nas hospedarias a céu aberto, o modo mais comum de se aquecer é deitarem dois juntos na mesma cama. Mas alguém sozinho como vai se aquecer? O terceiro exemplo é que um só é derrotado, dois conseguem resistir. Atacar dois é sempre mais difícil. Insistindo na importância do comunitário, Coélet conclui: “A corda tripla não se rompe facilmente” (Ecl 4,12b).

Coélet não apresenta um pensamento novo. Há muitas passagens, tanto na literatura judaica como na de outros povos, que reforçam a importância de somar forças com pessoas e grupos. Viver em comunidade é o caminho para ser feliz e superar as dificuldades da vida. Há um cântico que exemplifica essa verdade: “Uma só formiga não dá conta da roseira, mas desfolha a mata se ajuntar o formigueiro!” A presença de pessoas amigas ajuda-nos a enfrentar as dificuldades do dia a dia e torna a vida mais leve.

 

3. Encontrar a felicidade

Os antigos valores da cultura judaica estão caindo por terra. Pouco a pouco, a cultura helenística, ou seja, o modo de vida dos gregos, orientado pela lógica do lucro e do individualismo, torna-se o modelo dominante. A busca desenfreada pelo lucro provoca competição entre as pessoas, destruindo as bases da amizade e do companheirismo. Algumas pessoas sábias da época procuram apresentar caminhos para o povo encontrar a felicidade. Eis algumas propostas:

 

a) Defender estruturas a serviço do povo: “O proveito da terra pertence a todos; um rei se beneficia da agricultura” (Ecl 5,8). Na época, o livre mercado considera os grandes comerciantes como os verdadeiros donos do poder econômico, mas, na realidade, são os camponeses(as) que produzem as riquezas. A população do campo trabalha de sol a sol, e grande parte de sua produção é expropriada. Para que trabalhar tanto se a produção vai para as mãos dos estrangeiros, ou seja, para o império dos Ptolomeus e seus aliados?

Há vários mecanismos utilizados pelo império para controlar o pagamento dos impostos. Onde não há liberdade, todo o cuidado é pouco. Em toda parte há espiões, portanto: “Nem em pensamento amaldiçoes o rei, não amaldiçoes o rico, mesmo em teu quarto, pois um pássaro do céu poderia levar a voz, e um ser alado contaria o que disse” (Ecl 10,20).

Coélet é um crítico ferrenho das estruturas que estão tirando a vida do povo: “Há um mal que vejo debaixo do sol, erro que vem do soberano: a insensatez ocupando os mais altos postos e ricos se assentando em lugar baixo. Vejo escravos a cavalo e príncipes a pé, como escravos” (Ecl 10,5-7). O autor ironiza os governantes e propõe que a estrutura do império esteja a serviço da população camponesa.

 

b) Cultivar uma religião a serviço da vida: Numa época em que o sacrifício era central, vejamos o que ele afirma: “Cuida de teus passos quando vais à casa de Deus: aproximar-se para ouvir vale mais que o sacrifício oferecido pelos insensatos, mas eles não sabem que fazem o mal” (Ecl 4,17). A sua afirmação é ousada e deve ter causado escândalo às pessoas do seu tempo.

A realidade desmente a teologia da retribuição: “Já vi de tudo em minha vida de vaidade: o justo perecer na sua justa justiça e o ímpio sobreviver na sua impiedade” (Ecl 7,15). “Há uma vaidade que se faz sobre a terra: há justos que são tratados conforme a conduta dos ímpios e há ímpios que são tratados conforme a conduta dos justos” (Ecl 8,14).

Diante da incompreensão do ser humano em relação ao futuro e da incapacidade da religião oficial de oferecer respostas que deem sentido à vida, Coélet propõe uma alternativa para a felicidade: comer, beber vinho, vestir roupas de festa, usar perfume, desfrutar a vida com a pessoa amada. Tudo isso é dom de Deus, que o ser humano deveria conseguir por meio do seu trabalho (Ecl 2,24; 3,12; 5,17-18; 8,15; 9,7-9; 11,9). Portanto, não há nada que justifique a dominação de um ser humano sobre o outro, muito menos em nome de Deus e de algumas verdades estabelecidas pela religião oficial. O sábio afirma: Deus criou o ser humano reto, ele é que buscou outros caminhos (Ecl 7,29 ou 30). Recebendo a vida gratuitamente de Deus, cabe ao ser humano vivê-la na gratuidade, agindo à imagem e semelhança de Deus.

 

c) Trabalho comunitário: O sábio reprova a acumulação e a cobiça, reafirmando o valor do comunitário em oposição ao individualismo: “todo trabalho e todo êxito se realiza porque há uma competição entre companheiros”. Diante disso, conclui: “Isso também é vaidade e correr atrás do vento!” (Ecl 4,4).

A solidão é um mal terrível para o ser humano: “Observo ainda outra vaidade debaixo do sol: alguém sozinho, sem companheiro, sem filho ou irmão; todo o seu trabalho não tem fim, e seus olhos não se saciam de riquezas: ‘Para quem trabalho e me privo da felicidade?’ Isso também é vaidade e trabalho penoso’” (Ecl 4,7-8). Em seguida, o sábio apresenta alguns argumentos sobre a importância de não viver só, iniciando e concluindo com um provérbio: “mais vale dois que um só, porque terão proveito do seu trabalho… A corda tripla não se rompe facilmente” (Ecl 4,9.12). A união é capaz de sustentar a vida.

 

d) Partilhar o fruto do trabalho para que todas(os) tenham vida: “Reparte com sete e mesmo com oito, pois não sabes que desgraça pode vir sobre a terra” (Ecl 11,2). A solidariedade é a base da organização e da sobrevivência das pessoas pobres. Como o futuro é incerto e a desgraça pode vir a qualquer hora, cabe ao ser humano viver a partilha no momento presente. É preciso arriscar. Partilhar com generosidade.

Nas suas constantes observações e buscas do sentido da vida, Coélet volta a insistir: “E eu exalto a alegria, pois não existe felicidade para o ser humano debaixo do sol, a não ser comer, beber e alegrar-se; é isso que o acompanha no seu trabalho nos dias da vida que Deus lhe dá debaixo do sol” (Ecl 8,15). Um convite para descobrir que é possível ser feliz nas coisas simples da vida, encontrando motivos para manter acesa a chama da esperança.

 

e) Encontrar prazer nas coisas simples da vida: Diante dos limites da existência humana, é fundamental viver o momento presente como dom de Deus: “Vai, come teu pão com alegria e bebe o teu vinho com satisfação, porque Deus já aceitou tuas obras. Que tuas vestes sejam brancas em todo o tempo e nunca falte perfume na tua cabeça. Desfruta a vida com a mulher amada em todos os dias da vida de vaidade que Deus te concede debaixo do sol, porque esta é a tua porção na vida e no trabalho com que te afadigas debaixo do sol” (Ecl 9,7-9).

A vida é muito breve. É preciso vivê-la intensamente: comer e beber com alegria. Não significa simplesmente o ato de comer, mas desfrutar, ter bem-estar. Comer e beber são dons de Deus. Ele acolhe a ação do ser humano na gratuidade, sem a necessidade de rituais de purificação: que a veste seja sempre branca e nunca falte perfume. Veste branca e perfume lembram festa. Festa é momento de resistência, de refazer a vida e viver de graça. É claro que ninguém pode viver festejando o tempo todo — trata-se de maneira poética de falar —, mas é importante aproveitar o momento presente. “Mais vale um bocado de lazer do que dois bocados de trabalho, correndo atrás do vento” (Ecl 4,6). É preciso manter o equilíbrio entre o trabalho e o tempo de lazer. O lazer é necessário para refazer as energias, cimentar os laços afetivos e encontrar prazer nas coisas simples da vida. Isso é desfrutar a vida que Deus nos dá.

 

4. Uma palavra final

O pensamento de Coélet continua sendo válido. É uma crítica contra a sociedade consumista, na qual as atenções estão voltadas para a minoria que pode comprar. Mas ainda resta uma pergunta: de que modo comer, beber, alegrar-se e usufruir os frutos do trabalho como dom de Deus? Há muitas trabalhadoras e trabalhadores cujo produto do seu trabalho não é suficiente para a própria sobrevivência. Há pessoas que trabalham para pagar o que já comeram. As preocupações com as dívidas são constantes. No interior de São Paulo, há trabalhadoras(es) nas lavouras de cana-de-açúcar cortando diariamente entre 13 e 14 toneladas de cana para ganhar 20 reais. O que lhes sobra? Uma canseira danada e dívidas.

Preocupações constantes com o pão de cada dia fazem parte do cotidiano da grande maioria. É importante lembrar que milhões de pessoas estão totalmente fora do mercado de trabalho. Uma pesquisa do IBGE, em dezembro de 2005, realizada nas seis maiores capitais do país, registrou que 23% dos jovens de 16 a 24 não estavam estudando nem trabalhando. Em São Paulo, esse índice é de 27,1%[2]. Comer, beber, alegrar-se, amar, usufruindo o fruto do trabalho, é dom de Deus. É direito do ser humano. Precisamos unir forças com as pessoas e os grupos que denunciam as injustiças verificadas no mundo do trabalho. “Uma andorinha só não faz verão”. É preciso proclamar que é direito de todas as pessoas trabalhar e sonhar com outro mundo factível.

 

 

Bibliografia consultada

CENTRO BÍBLICO VERBO, Come teu pão com alegria! Eclesiastes: roteiros e orientações para encontros, São Paulo, Paulus, 2006.

LÉVÊQUE, Pierre, A aventura grega, v. 3, Lisboa, Edição Cosmos, 1967.

MICHAUD, Robert, Qohelet y el helenismo, Estella (Navarra), Editorial Verbo Divino, 1988.

REALE, Giovanni, “Os sistemas da era helenística”, in História da filosofia antiga, v. 3, São Paulo, Loyola, 1994.

STORNIOLO, Ivo, Trabalho e felicidade: o livro de Eclesiastes, São Paulo, Paulus, 2002.

TAMEZ, Elsa, Cuando los horizontes se cierran, San José (Costa Rica), DEI, 1998.

VÍLCHEZ LÍNDEZ, Eclesiastes ou Qohelet, São Paulo, Paulus, 1999.

ZENGER, Erich (org.), Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2003.



[1] Na maioria das vezes, a palavra ’âdâm é traduzida por homem nas Bíblias em português, mas o seu sentido é mais abrangente, refere-se à espécie humana. É interessante constatar que Coélet especifica o sexo masculino usando o termo ’îsh.

[2] Antônio GOIS e Amarílis LAGE, “Caderno Cotidiano”, in Folha de S. Paulo, página C1, 20/2/2006.

Equipe do Centro Bíblico Verbo