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Publicado em setembro-outubro de 2014 - ano 55 - número 298

“Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6)

Por Maria Antônia Marques e Shigeyuki Nakanose, svd

Com base na leitura das bem-aventuranças do Evangelho de Mateus, podemos enxergar a realidade dessas comunidades. São comunidades oprimidas e empobrecidas. Deus se coloca ao lado dos pobres e indigentes que vivem em uma situação estruturalmente injusta. Por isso, a insistência na prática da justiça, da misericórdia e da construção da paz.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou, em 2012, uma estimativa global quanto ao tráfico humano: as vítimas do trabalho forçado e exploração sexual são 20,9 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que o número de traficados na América Latina e Caribe é de 1,8 milhões [sic], uma estimativa de 3,1 casos por mil habitantes (Jornal Eletrônico Rondoniaovivo.com/Campanha da Fraternidade – “Fraternidade e Tráfico de Pessoas”/. Acesso em: 3 mar. 2014).

No Brasil, a realidade presente do tráfico de pessoas permanece gritante. Por exemplo, de acordo com o Ministério do Trabalho, desde 1995, quase 34 mil escravos foram libertos. Em 2013, 1.967 pessoas ganharam a liberdade. Estima-se que deve ser muito maior o número real de pessoas traficadas que ainda não foram resgatadas por fiscalizações realizadas pelo governo federal. Mais de 200 anos após a abolição da escravatura, muitas pessoas ainda vivem em uma situação desumana no dia a dia, em cada região do Brasil. Boa parte desses trabalhadores foi vítima de promessas fraudulentas e tráfico humano.

Por exemplo, uma menina indígena da etnia carajá, aldeia Aruana, foi aliciada por uma mulher desconhecida para trabalhar num evento em uma fazenda. Apesar da proibição da mãe, ela foi convidada para tomar sorvete e ali foi raptada, sob ameaça de um revólver. Foi levada para Minas Gerais, onde foi obrigada a mendigar nas estradas. Se recusasse o trabalho, receberia até pedradas. Depois, foi levada ao Paraguai para trabalhar no tráfico de armas. É uma menina que passou por uma situação “infernal” de escravidão.

Um dos desafios existentes nas comunidades de Mateus era a necessidade de conviver e trabalhar com as pessoas injustiçadas, empobrecidas e escravizadas. Em diversos textos exclusivos do Evangelho de Mateus, vemos a realidade sofrida das pessoas. Por exemplo:

“Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (Mt 25,35-36).

Se um pobre deplorável fosse judeu, a situação ainda era pior. Segundo a lei judaica do puro e do impuro, ele era considerado como impuro e amaldiçoado por Deus. O critério para considerar uma pessoa pura ou impura era a rigorosa observância da Lei, com os inúmeros impostos religiosos. Havia muita gente que não podia seguir a Lei nem sobreviver no dia a dia: na maioria eram camponeses sem terra, desempregados, famintos, forasteiros, doentes, perseguidos etc. Eram taxados de impuros, infelizes e malditos.

Jesus e as comunidades cristãs propõem uma inversão: proclamam que os malditos pela sociedade injusta são os benditos, e o critério para essa bênção é a vivência da justiça e da misericórdia. Para refletir sobre essa proposta cristã de inversão à luz de Mt 5,1-12, vamos conhecer, primeiramente, a realidade dos judeo-cristãos pobres e amaldiçoados pelas autoridades judaicas do tempo de Mateus.

1. Quem são as pessoas felizes e justas?

Bem-aventurado o homem de quem o Senhor se lembra com convicção; será rodeado pelo caminho do mal com açoite, para ser purificado dos pecados e para que eles não se multipliquem. O que tem a retaguarda preparada por açoites será purificado; o bondoso Senhor é para os que preservaram a disciplina. Estabelecerá os caminhos dos justos, e não se desviará no ensino; a misericórdia do Senhor está sobre os que o amam em verdade. E o Senhor será lembrado pelos seus servos em misericórdia; e o testemunho na lei da Aliança Eterna é o testemunho do Senhor acerca dos caminhos dos homens na visitação. Justo e Santo é o nosso Senhor em seus decretos para sempre, e Israel com regozijo louvará o nome do Senhor. E os justos confessarão na assembleia do povo, e Deus no regozijo de Israel terá misericórdia dos pobres. Porque bondoso e misericordioso é Deus para sempre, e as sinagogas de Israel glorificarão o nome do Senhor. Do Senhor é a salvação sobre a casa de Israel, para eterno regozijo (Salmo de Salomão 10,1-8 – texto apócrifo).

Os Salmos de Salomão, escritos por volta do ano 50 a.C., apresentam os assuntos debatidos pelo grupo dos fariseus em suas sinagogas. Entre outros, destaca-se a insistência na observância da Lei, a teologia da retribuição divina, a expectativa messiânica e a justiça como o resultado da observância da Lei.

O grupo do judaísmo farisaico declara “felizes” e “justos” os que observam a Lei. Sua teologia afirma que Deus abençoa a pessoa justa com riqueza, vida longa e descendência, mas a pessoa injusta ele castiga com doença, pobreza e sofrimento. Nessa teologia, quem não consegue observar a Lei é considerado impuro, amaldiçoado e endemoninhado. Os sinais externos de riqueza ou pobreza são vistos respectivamente como sinais da bênção ou da maldição de Deus. Havia muitos judeus que não conseguiam honrar as leis e os tributos religiosos, como o dízimo. Após a destruição do templo, os judeus pobres sofriam toda a carga de restrições legais da sinagoga.

Os evangelhos registram a presença de numerosas pessoas impuras no tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs: “Ao entardecer, quando o sol se pôs, trouxeram-lhe todos os que estavam enfermos e endemoninhados. E a cidade inteira aglomerou-se à porta. E ele curou muitos doentes de diversas enfermidades e expulsou muitos demônios” (Mc 1,32-34).

Nas comunidades de Mateus a realidade não é diferente, há muitos problemas sociais, como podemos perceber nas entrelinhas de alguns relatos, por exemplo:

Porque o Reino dos Céus é semelhante ao pai de família que saiu de manhã cedo para contratar trabalhadores para sua vinha. Depois de combinar com os trabalhadores um denário por dia, mandou-os para a vinha. Tornando a sair pela hora terceira, viu outros que estavam na praça, desocupados, e disse-lhes: “Ide, também vós para a vinha, eu vos darei o que for justo”. Eles foram. Tornando a sair pela hora sexta e pela hora nona, fez a mesma coisa. Saindo pela hora undécima, encontrou outros que lá estavam e disse-lhes: “Por que ficais aí o dia inteiro sem trabalhar?” Responderam: “Porque ninguém nos contratou” (Mt 20,1-7).

As parábolas nascem da realidade cotidiana, de situações corriqueiras. A parábola dos “trabalhadores enviados à vinha” é um texto exclusivo do Evangelho de Mateus, que apresenta a realidade dos membros das comunidades, situadas no interior da Síria e de Antioquia, em torno do ano 85 d.C.

Cerca de 90% da população da Palestina e da Síria no tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs vive na zona rural, com atividade agropastoril. Isso pressupõe que a maioria dos membros das comunidades de Mateus se ocupa com esse trabalho. Porém, eles têm uma história sofrida. Em torno do ano 67 d.C., a Guerra Judaica explodiu e só terminou alguns anos depois, por volta do ano 73 d.C. Os judeo-cristãos de Jerusalém fugiram para Pela, na Transjordânia, e para a Síria. O mesmo fizeram os judeo-cristãos da Galileia, que eram, em sua maioria, agricultores.

A Guerra Judaica deixou os agricultores em situação crítica. Ainda antes da guerra, muitos deles eram empobrecidos e até já tinham perdido seus bens por meio de impostos e de empréstimos a altas taxas de juros. Era um meio comum para empobrecer e até escravizar os agricultores, destruindo suas famílias. Há outra parábola exclusiva do Evangelho de Mateus que testemunha essa realidade cotidiana na cobrança de empréstimo, prisão ou escravidão por dívidas:

Eis por que o Reino dos céus é semelhante a um rei que resolveu acertar contas com seus servos. Ao começar o acerto, trouxeram-lhe um que devia dez mil talentos. Não tendo este com que pagar, o senhor ordenou que o vendessem, juntamente com a mulher e com os filhos e todos os seus bens, para o pagamento da dívida (Mt 18,23-25).

Os agricultores sem terra eram mão de obra barata para os proprietários de terra e moradores ricos da cidade. Eles estavam desesperados para alimentar suas famílias nessa realidade injusta, o que transparece na angústia do trabalhador desocupado na parábola: “Porque ninguém me contratou” (20,7). No mundo patriarcal do tempo de Mateus, o homem era o responsável por sua família e sua herança (terra, casa, animais, filhos etc.).

Em geral, a sorte dos trabalhadores sem terra dependia da natureza e dos proprietários de terra. Durante o plantio e a colheita, a procura por trabalhadores era alta; porém o mesmo não acontecia no período entre safras. A vida da família dos trabalhadores rurais era marcada por muito sofrimento: desemprego, fome, doença, morte prematura etc.

Se um trabalhador sem terra fosse judeu, a situação era pior. Ele ficaria sob o jugo da lei do puro e do impuro. Sem conseguir observar a lei e honrar seu dever religioso, era taxado de “injusto” e “infeliz”. Nem sequer poderia participar na sinagoga, por não ter sua herança. Ele era considerado amaldiçoado por Deus.

A situação de um pobre judeo-cristão que professava sua fé em Jesus de Nazaré como o Messias e o Filho de Deus era ainda pior. Um dos textos exclusivos de Mateus expressa o sentimento de quem segue Jesus, perseguido e condenado como “infeliz” pelo grupo de fariseus:

Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrais descanso para vossas almas, pois meu jugo é suave e meu fardo é leve (Mt 11,28-30).

No sermão da montanha, Jesus disse: “Felizes os pobres em espírito; felizes os mansos, porque herdarão a terra…”. As comunidades de Mateus animam e orientam seus membros oprimidos pelos “jugos”, no caminho das bem-aventuranças, de forma diferente dos judeus fariseus.

2. Reino de Deus, Reino da justiça e da paz!

Alguns anos após a morte e ressurreição de Jesus, as comunidades começaram a se reunir em torno da vida dele, de sua prática e seus ensinamentos. Devia circular uma fonte com os ditos do Mestre, documento esse conhecido como Fonte Q (inicial da palavra “Quelle”, que em alemão significa fonte). No caso, essa Fonte Q refere-se a um texto escrito ou antigo evangelho, com ditos sobre Jesus, que teria sido perdido, mas teria servido como fonte de informações para Mateus e Lucas e por isso poderia ser reconstituído com base nos textos comuns apenas a estes dois evangelhos.

As bem-aventuranças do Evangelho de Mateus foram ampliadas e reescritas com base em informações do Evangelho Q e na realidade das comunidades mateanas. Vejamos algumas de suas peculiaridades:

– Em Lucas, o sermão acontece na planície (Lc 6,20-26), ao passo que em Mateus Jesus sobe à montanha, senta-se e se põe a falar e ensinar seus discípulos, os destinatários mais próximos (Mt 5,1-2). Mas a multidão permanece em segundo plano e também ouve o sermão, pois, no final da proclamação da nova lei, testemunhamos a sua reação: “Aconteceu que, ao terminar Jesus essas palavras, as multidões ficaram extasiadas com o seu ensinamento, porque as ensinava com autoridade e não como os seus escribas” (Mt 7,28-29; cf. 5,1-2). De acordo com a tradição judaica, Moisés subiu à montanha para receber a Lei (cf. Ex 24,1.12). A montanha é lugar de oração (Mt 14,23; 21,1), de ensino (Mt 5,29-31), da transfiguração de Jesus e também seu lugar de refúgio (Mt 17,1; 24,3). Jesus não sobe à montanha só; com ele estão seus discípulos e as multidões. A posição de sentar-se é a do mestre e do rei; portanto, a palavra de Jesus está revestida de autoridade. É o sagrado no meio do povo.

– Em Lucas encontramos apenas “felizes os pobres” (Lc 6,20b). Esse termo designa o indigente, alguém que perdera todos os laços familiares e sociais. Mateus acrescenta em espírito (Mt 5,3). A palavra espírito em hebraico é ruah e indica a totalidade da pessoa. Pobres em espírito indica uma situação de pobreza extrema: sem recursos econômicos e sem esperanças. Quem são os pobres em espírito? É um termo que pode indicar as pessoas simples do campo, que não conhecem a Lei ensinada na sinagoga. Entre elas encontramos agricultores empobrecidos, sem-terra, pescadores, enfermos, endemoninhados, lunáticos, paralíticos (Mt 4,23-25). Pessoas desprezadas e marginalizadas, submetidas à elite governante e que não veem perspectivas de saída. Na proclamação das bem-aventuranças, as pessoas pobres e injustiçadas são os novos sujeitos históricos. Elas são felizes porque o Reino dos Céus chegou: “os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (Mt 11,5).

– “Felizes os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5,4). Essa bem-aventurança é exclusiva de Mateus. Trata-se de uma citação do Salmo 37,11. No contexto desse salmo, o termo utilizado designa o impotente e o humilhado. Eles são exortados a confiar em Javé e não fazer justiça com as próprias mãos (Sl 37,3-6). Eles herdarão a terra. Em Mateus, muitas pessoas estão sem a terra. Essa promessa propõe um tempo novo, sem acúmulo de terra na mão de um pequeno grupo.

– Os aflitos serão consolados (Mt 5,5). Essa afirmação de Mateus é semelhante a Lucas: “vós que agora chorais, haveis de rir” (Lc 6,21b). A aflição e o choro são formas de externar dor, violência e opressão. Mas são também um protesto, uma forma de condenar a dominação das elites governantes. Os aflitos são aquelas pessoas que vivem na própria pele as consequências das desigualdades sociais. A opressão, porém, terá fim: “Eles serão consolados”. A nova justiça será estabelecida.

– “Felizes os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5,6). Essa bem-aventurança também aparece em Lucas (Lc 6,21); porém, Mateus acrescenta “sede de justiça”. Pessoas que anseiam pela prática da nova justiça, na qual todas/os possam ter direito à terra e ao pão, bens necessários para a sobrevivência. É uma forma de devolver a esperança aos desesperados.

As quatro primeiras bem-aventuranças nomeiam situações de injustiça econômica, social, política e religiosa e projetam a realização da justiça do Reino. O objetivo é reacender a chama da vida que está se apagando. Os v. 7-10 do capítulo 5 são exclusivos do Evangelho de Mateus. A partir do v. 7, as bem-aventuranças nomeiam ações humanas nas quais o reinado de Deus já está presente. O Reino de Deus depende da colaboração de cada pessoa.

– “Felizes os misericordiosos” (Mt 5,7a). Aquele que é capaz de ter compaixão das pessoas que sofrem situações de dor e aflição. Uma atitude solidária e gratuita, que ultrapassa a exigência da Lei. Ser misericordioso é ter o coração aberto para as pessoas necessitadas (Mt 6,2-4; 25,31-46); é perdoar; é amar até mesmo os inimigos (Mt 5,38-48) e aquelas/es que se encontram às margens: estrangeiros e mulheres (Mt 15,22).

– “Felizes os puros de coração” (Mt 5,8). O coração indica o ser humano em sua totalidade. Puros de coração são as pessoas comprometidas com a nova justiça. Essas pessoas recebem a promessa de que verão a Deus. A prática da religião não está codificada em normas e preceitos, mas no compromisso com a defesa e a promoção da vida ameaçada, com a construção de uma sociedade que cuide da vida para todas e todos.

– Os que promovem a paz serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9). É um projeto que se opõe à Pax Romana, a qual exige a submissão de todos os povos dominados. Muitos acreditam que os romanos receberam das divindades a missão de impor leis e garantir a ordem para todos os povos. Uma paz baseada no poderio militar, tendo como avalista o desejo das divindades. No Reino de Deus, a paz significa condições dignas de vida para todas as pessoas (Sl 127). A paz exige acabar com a situação de opressão e exploração dos fracos e indigentes e estabelecer relações igualitárias. Os promotores da paz serão chamados filhos de Deus, pois devem assumir, em sua vida, o mesmo agir de Deus: “orai pelos que vos perseguem; desse modo, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,44-45).

– “Felizes os que são perseguidos por causa da justiça” (Mt 5,10). Aquele que assume o projeto da justiça desafia a ordem estabelecida, por isso será perseguido. E mais. A perseguição é dirigida contra as seguidoras e os seguidores de Jesus e assume duas formas: violência física, chegando até a morte, e violência verbal, por difamação e calúnia, destruindo a honra e a dignidade da pessoa atingida. A primeira bem-aventurança tem como destinatários os pobres, e a oitava, os que são perseguidos. Ambas estão no presente, evidenciando que a realidade da comunidade e a presença do Reino dos Céus já estão no seu meio. No contexto de Mateus, os judeo-cristãos são minoria e enfrentam perseguição por parte da administração romana e do judaísmo oficial (Mt 10,16-18.21.34-36; 23,13.23.34-35). A chave para a realização do Reino é o cumprimento da nova justiça: “Com efeito, eu vos asseguro que, se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20).

Com base na leitura das bem-aventuranças do Evangelho de Mateus, podemos enxergar a realidade dessas comunidades, formadas, em sua maioria, por judeus. São comunidades oprimidas e empobrecidas. Deus se coloca ao lado dos pobres e indigentes, que vivem em uma situação estruturalmente injusta. Por isso, a insistência na prática da justiça, da misericórdia e da construção da paz. É um texto que denuncia situações de injustiça e exige a realização da nova justiça para todas as pessoas. Esse projeto depende da aliança entre Deus e o ser humano. Quem assume a justiça do reino é perseguido.

3. As instruções sapienciais no Evangelho Q

As bem-aventuranças de Mateus nascem da releitura e do seguimento do já mencionado Evangelho Q, chamado também de “Evangelho da Galileia”, um conjunto de materiais comuns a Lucas e Mateus e ausente em Marcos. Possivelmente, é um evangelho composto durante a década de 40 d.C. na região ao redor do lago de Genesaré ou da Galileia. As pequenas cidades dessa região, como Cafarnaum, Betsaida e Corazin, são mencionadas nesse dito evangelho.[1]

Cafarnaum é, sobretudo, o centro da atividade de Jesus na Galileia. Muitos acontecimentos na primeira parte dos evangelhos sinóticos desenvolvem-se em Cafarnaum e em suas redondezas, de modo que os ditos de Jesus no Evangelho Q devem ser interpretados primeiro como resposta à dura realidade dos camponeses dessa região.

O Evangelho Q não contém referência em nenhuma parte da narrativa da paixão, morte e ressurreição. Não há muitas parábolas. Também conta apenas a narrativa da tentação de Jesus e os dois “milagres” (a cura do filho do centurião de Cafarnaum e a cura de um endemoninhado). Essencialmente, o Evangelho Q, então, é composto de discursos ou ditos de Jesus.

Os temas predominantes desses discursos são o julgamento escatológico (sobre o “Reino de Deus” e o “Filho do homem”) e a instrução ética na vida cotidiana, bem presente na tradição sapiencial judaica. Foram as instruções sapienciais decorrentes das preocupações e angústias cotidianas dos pobres camponeses da Galileia sob o domínio do império romano, durante a década de 40 d.C.

As mesmas preocupações estão bem presentes nas comunidades de Mateus que fazem sua releitura dos ditos de Jesus como instruções de sobrevivência perante o imperialismo romano e a perseguição dos judeus fariseus, por volta do ano 85 a.C. Preocupações assim é que não faltam hoje: desemprego, pobreza, fome, doença e violência. Os ditos sapienciais de Jesus continuam exigindo uma pergunta: como e até que ponto interpretamos e assumimos as instruções de Jesus? Eis aqui algumas instruções sapienciais, nascidas da experiência cotidiana na Palestina:

a) Crítica aos fariseus e aos escribas: “Agora, vós, ó fariseus! Purificais o exterior do copo e do prato e por dentro estais cheios de rapina e de perversidade! Insensatos! Quem fez o exterior não fez também o interior? Mas ai de vós, fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus. Ai de vós, legistas, porque tomastes a chave da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam entrar” (Lc 11,39-40.42.52; Mt 23,13.23.26). Para Jesus, por trás da observância obsessiva e escrupulosa da lei do puro e do impuro no “exterior” ou nas aparências, os fariseus e os legistas escondem seus interesses de alcançar prestígio, favorecimento e acumulação de riqueza. A verdadeira pureza diante de Deus se baseia em uma prática “interior”, que se exprime concretamente na caridade e na justiça. Os grupos dirigentes da religião não devem manipular, controlar e monopolizar o poder sagrado, impedindo o povo de se aproximar do amor de Deus por meio dos gestos de fraternidade, ou seja, vivendo o Reino de Deus. A vida é um dom de Deus e seu reino é de gratuidade (Lc 12,22-33; Mt 6,25-33).

b) O Reino de Deus revelado aos pobres: “Naquela mesma hora, ele exultou no Espírito Santo e disse: ‘Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim houve agrado diante de ti’” (Lc 10,21; Mt 11,25). O Deus da vida não se encontra na observância legalista de normas e doutrinas dos “sábios” autossuficientes, mas no seguimento dos “pequeninos” ao amor de Deus: a promoção da vida e da dignidade humana acontece por meio da misericórdia, da compaixão e da solidariedade.

c) Promover a gratuidade e a generosidade: “E se emprestardes aos de quem esperais receber, qual [é] vossa graça? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para que recebam de volta o igual. Todavia, amai os vossos inimigos, fazei o bem e prestai ajuda sem esperar nada em troca, e vosso salário será muito, e sereis filhos de Altíssimo. Porque ele é bondoso também para com os ingratos e maus” (Lc 6,34-35: Mt 5,42.45-47). Jesus prega o relacionamento humano de gratuidade e de generosidade, que gera a vida. A misericórdia dos seres humanos, semelhante à misericórdia de Deus, busca instituir relações de partilha e solidariedade, que diminuem as desigualdades e derrubam os relacionamentos de interesse, geradores do poder e do prestígio, criadores de dependências e, ao mesmo tempo, legitimadores das injustiças sociais.

d) Promover o perdão: “‘Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; absolvei, e sereis absolvidos. Dai e vos será dado: uma medida boa, calcada, sacudida, transbordante, dará no vosso regaço, pois com a medida com que medirdes, medir-se-á para vós’. Ele disse-lhes também uma parábola: ‘Pode um cego guiar um cego? Não cairão ambos num buraco?’” (Lc 6,37-39; Mt 7,1-2; 15,14). Os fariseus se posicionam como juízes do próximo e condenam sem compaixão e misericórdia. O farisaísmo, assim, gera atritos, divisões e exclusões nas comunidades. Diante da miséria, da fome, da fraqueza humana, os seguidores de Jesus devem expressar a misericórdia em acolhida e perdão. Quem condena o próximo condena o amor de Deus e a si mesmo (Lc 12,57-59; Mt 5,25-26; Lc 17,3b-4; Mt 18,15.21-22).

e) “Um doutor da Lei lhe disse: ‘Eu te seguirei aonde fores’. E Jesus lhe disse: ‘As raposas têm tocas e os pássaros do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça’. Outro lhe disse: ‘Senhor, permite que eu vá primeiro sepultar meu pai’. Jesus lhe disse: ‘Siga-me, e deixe que os mortos sepultem seus mortos’. Um outro também lhe disse: ‘Eu te seguirei, Senhor, permite-me, porém, primeiro despedir-me dos de minha casa’. Jesus, porém, lhe respondeu: ‘Quem põe a mão no arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus’” (Lc 9,57-62: Mt 8,19-22). Diante da realidade sofrida do povo, sua pobreza e insegurança, é preciso urgentemente anunciar o Reino de Deus, reino do amor e da fraternidade. Exige-se um seguimento incondicional dos discípulos de Jesus: “Quem não carrega sua cruz e vem atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27; Mt 10,38); “Nenhum doméstico pode ser servo de dois senhores, porque ou odiará um e amará o outro ou se apegará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Lc16,13; Mt 6,24).

f) O grão de mostarda: “Dizia, pois: ‘A que é semelhante o Reino de Deus, e a que o compararei? É semelhante a um grão de mostarda que um homem lançou em sua horta. Ele aumentou e tornou-se uma árvore, e os pássaros do céu fizeram ninhos nos seus ramos. E novamente disse: ‘A que compararei o Reino de Deus? É semelhante ao fermento que uma mulher misturou em três porções de farinha, até tudo ficar fermentado (Lc 13,18-21; cf. Mt 13,31-33). As imagens de uma semente de mostarda e do fermento na massa traduzem algo pequeno e insignificante que tem força transformadora. Assim, a presença do Reino de Deus não deve ser um poder ostensivo, glorioso e excludente, mas se faz de modo inexpressível e oculto entre os pequenos e humildes. Os seguidores de Jesus, como um grão de mostarda, devem ter a força de transformar a sociedade num mundo de acolhida para os empobrecidos e excluídos – esperança e paciência histórica!

Os ditos sapienciais do Evangelho Q teriam surgido da realidade sofrida do povo das margens do mar da Galileia: a constante ameaça da fome e do desabrigo. Apresentam as possíveis orientações para construir o Reino de Deus, o qual promete a felicidade da vida cotidiana: “Felizes os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! Felizes os famintos agora, porque sereis saciados! Felizes os que chorais agora, porque rireis!” (Lc 6,20-21: Mt 5,3-4).

No Evangelho Q, os pobres têm direito a tudo o que é necessário para uma vida humana digna (alimentação, saúde, bem-estar etc.), mas também o dever de empenhar-se na conquista desses bens: “Todavia, procurai o seu Reino, e isso vos será acrescentado” (Lc 12,31; Mt 6,33); “E na cidade em que entrardes e vos receberem, comei do que vos apresentarem, e curai os doentes nela e dizei-lhes: ‘Chegou perto de vós o Reino de Deus’” (Lc 10,8-9; Mt 10,7-8).

Porém não basta somente ouvir os ditos de Jesus, é preciso pô-los em prática: “Todo o que vem a mim e ouve as minhas palavras e as pratica, demonstrar-vos-ei a quem é semelhante: é semelhante a um homem construindo uma casa, que cavou e aprofundou e colocou o alicerce sobre a rocha. Vindo a enchente, o rio lançou-se contra aquela casa, não a conseguiu abalar, por ela estar bem construída” (Lc 6,46-48; Mt 7,24-25), diz assim o Evangelho Q. Ao reclamar e procurar seus direitos, os pobres semeiam o grão de mostarda ou o fermento na massa, para a transformação de uma sociedade injusta e desumana: “Sim, Pai, porque assim houve agrado diante de ti”.

4. Uma palavra final

Até os nossos dias persiste, imposta pela sociedade desumana, a realidade das pessoas injustiçadas, empobrecidas e escravizadas. Como transformar a realidade dessas pessoas? Jesus e as comunidades cristãs responderam, vivenciando uma inversão de atitudes: elas devem ser libertas, acolhidas e abençoadas pelo Deus da vida mediante a prática comunitária da misericórdia, da justiça e da solidariedade. Uma das propostas concretas para os nossos dias se verifica no depoimento de Josenilda Santos Silva, que já foi traficada e atualmente, recuperada, trabalha na ONG “Sodireitos”, movimento contra o tráfico de pessoas, em Belém do Pará:

É muito importante que a comunidade entenda que uma pessoa que foi traficada, que passou pelo trabalho escravo, já sofreu bastante e não precisa de mais um julgamento; ela não precisa de mais um dedo apontado; ela não precisa de mais alguém dizendo: “Aí você sabia o que você ia fazer, por que você foi?” Ela precisa de alguém que acolha e, infelizmente, não são todas as pessoas que acolhem, mas uma pessoa que dê um abraço humilde e que diga: “Não, eu não estou aqui para julgar. Eu estou aqui para ser seu amigo, eu estou aqui para lhe dar a mão”. É disso que a gente precisa (Tráfico de pessoas, São Paulo, Verbo Filmes, 2014).

Em outras palavras, devemos participar dos movimentos de acolhimento e solidariedade entre as pessoas no dia a dia; conscientizar e promover a dignidade humana; defender a vida e a natureza. Nessa prática, a pessoa se sente feliz e faz as outras felizes. Josenilda termina seu depoimento com esta reflexão:

Não o julgamento, mas o acolhimento. É o que nós encontramos na “Sodireitos”; é o que nós temos umas com as outras e é isso que nos fortalece e muito. Isso nos “empodera” muito. Isso nos deixa cada vez mais felizes e cada vez mais fortes no enfrentamento do tráfico, e é isso que a gente quer encontrar na comunidade.

[1] O texto da Fonte Q foi extraído do livro de Johan Konings, Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”, São Paulo, Loyola, 2005.

Maria Antônia Marques e Shigeyuki Nakanose, svd

Professores na área de Bíblia, escritores e membros da equipe do Centro Bíblico Verbo.
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