Publicado em setembro-outubro de 2014 - ano 55 - número 298
“Deus conosco”: o messias da justiça e da misericórdia uma introdução ao evangelho de Mateus
Por Maria Antônia Marques
As comunidades de Mateus acolheram, reinterpretaram e transmitiram os principais fatos e palavras de Jesus à luz de suas realidades e de sua forma de compreendê-lo. Esse evangelho anuncia que Jesus é a realização das promessas do Antigo Testamento; é o Mestre que nos convida a viver a justiça e a misericórdia.
Ao abrir o Evangelho de Mateus, lemos: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1). Desde as primeiras palavras, vemos a preocupação em reforçar a identidade de Jesus como único e verdadeiro Messias. Para as comunidades de Mateus, o Messias Jesus proclama:
- “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,6-7);
- “Com efeito, eu vos asseguro que, se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20);
- “Pois, onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20);
- “Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (Mt 25,35-36).
Essas frases são exclusivas de Mateus e nos dizem quem é Jesus. Com a fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus, as comunidades de Mateus acolheram, reinterpretaram e transmitiram os principais fatos da vida dele e das palavras que ele deixou à luz de suas realidades e de sua forma de compreendê-lo. Para entender o Evangelho de Mateus, portanto, é fundamental obter algumas informações gerais sobre ele e responder às seguintes questões: Quem o escreveu? O quê e por quê? Para quem? Quando e onde foi escrito?
1. Evangelho de Mateus: data e local de redação
O Evangelho de Mateus é fruto de longo processo. A comunidade juntou, organizou, acrescentou ou modificou as várias tradições orais e escritas das palavras e da prática de Jesus para responder à sua realidade concreta e transmitir sua compreensão dele e do seu projeto.
A forma atual do Evangelho de Mateus surgiu por volta do ano 85 d.C., o que pode ser comprovado com base nos seguintes fatos:
a) Mateus usou como fonte o Evangelho de Marcos, composto por volta do ano 70. O autor relê e reescreve Marcos, abreviando ou acrescentando outros escritos (cf. Mc 6,30-44; Mt 14,13-21).
b) Em Mt 21,41 e 22,7, o autor alude a pormenores concretos da destruição de Jerusalém, a cidade santa, pelo exército romano em torno do ano 70.
c) No decorrer dos anos, com base na experiência e na vivência da comunidade, o Evangelho de Mateus considera, desenvolve e interpreta o desastre nacional como castigo de Deus, causado pelo pecado das elites religiosas ao rejeitar Jesus como Filho de Deus (Mt 24,1-31).
d) O capítulo 23 do Evangelho de Mateus evidencia o forte conflito dessas comunidades com os judeus fariseus (Mt 5,11-12; 10,17-23; 24,9-14). Mas o evangelho não chega a mencionar a expulsão dos judeo-cristãos da sinagoga, o que pode ter ocorrido por volta do ano 90 (cf. Lc 6,22; Jo 9,22; 16,2).
No fim do século I, as autoridades judaicas começaram a intensificar sua perseguição contra os grupos de judeus de tendências e tradições diferentes, especialmente contra os grupos cristãos da diáspora. As comunidades destinatárias do Evangelho de Mateus provavelmente viviam na Síria, em Antioquia. Eis alguns elementos que confirmam essa posição:
a) Em Mt 4,24, o autor relê Mc 1,28.39 e corrige “por toda a Síria”, ao invés de “por toda a Galileia”.
b) Inácio, bispo de Antioquia, martirizado por volta do ano 107 d.C., cita os textos de Mateus em suas cartas (cf. a Carta a Policarpo 2,2 e Mt 10,16b).
c) Até o momento atual, não há provas da existência de sinagogas na Galileia no primeiro século, nem antes desse período. As sinagogas surgiram fora da Palestina, na diáspora.
d) O Evangelho de Mateus atribui um papel importante a Pedro (Mt 14,28-31; 15,15; 16,22-23; 17,24-27; 18,21; 19,27), que atuou na igreja de Antioquia (cf. Gl 2,11-14).
2. Quem escreveu e para quem?
O Evangelho de Mateus é o primeiro livro do Novo Testamento, mas não foi o primeiro a ser escrito. Ele anuncia que Jesus é a realização das promessas do Antigo Testamento. Esse texto, provavelmente, constituiu a base de um conjunto de comunidades cristãs que chegaram até o fim do século II. E, por ter sido posto em primeiro lugar no cânon do Novo Testamento, deve ter sido um evangelho importante para aquele setor do cristianismo que se tornou religião oficial do império romano.
No grupo de Jesus, havia um discípulo que se chamava Mateus, nome que, em hebraico, significa “presente de Deus” e, em grego, é semelhante a mathetés, cujo sentido literal é “aprendiz”. Segundo a tradição da Igreja, o autor do evangelho seria esse Mateus. Pápias, bispo de Hierápolis, cidade da Ásia Menor, por volta do ano 130, atribui ao apóstolo Mateus a composição das palavras de Jesus. A discussão, porém, ainda continua em aberto.
A questão do nome do autor não é tão importante, pois, antes de sua redação final, os evangelhos foram ensinamentos catequéticos, orais ou escritos, sobre as palavras e os atos de Jesus. A forma como o evangelho chegou até nós é obra de um redator que organizou os documentos já existentes e elaborados comunitariamente. No caso de Mateus, o grupo de redatores seriam alguns escribas que no texto recebem destaque e são apresentados como discípulos de Jesus (Mt 8,19; 23,34).
O evangelho foi escrito para as comunidades em que viviam os redatores, provavelmente em Antioquia da Síria, por volta do ano 85 d.C., no fim do século I. Para entender melhor os antecedentes dessas comunidades, é importante relembrar a história dos judeo-cristãos.
Porvolta do ano 70 d.C., na GuerraJudaica, os romanos destruíram Jerusalém e o templo. Váriosgruposjudaicosque participaram da guerra foram massacrados. Os judeusque sobreviveram tiveram de fugir. Algumas comunidades cristãs aí existentes migraram emdireção a Pela, no ladooriental do rio Jordão; outras foram para a Fenícia, regiões da Síria, chegando até Antioquia e integrando-se nas comunidades constituídas porjudeus da diáspora e de gentios convertidos que existiam nosarredores da cidade.
É nesse contexto que surgiu o Evangelho de Mateus, com o objetivo de animar essas comunidades que, desde a Palestina, seguiam Jesus.
3. Pisando o chão da comunidade de Mateus
Na guerra dos judeus contra o império romano, nos anos 66-73 d.C., Jerusalém e o templo foram destruídos e grupos influentes, como os saduceus, os zelotas, os sicários e os herodianos, desapareceram. A destruição do templo, principal referência para milhões de judeus espalhados no império romano, desencadeou forte crise: e agora, o que significa ser judeu? Sem o templo, o que define o judaísmo? Qual o nosso futuro?
O judaísmo precisava se organizar para sobreviver e garantir sua identidade. Liderados pelo rabi Johanan ben Zakai, os judeus fariseus se empenharam na reorganização dos valores e da crença do judaísmo, tendo como instituição central a sinagoga. Esse grupo conquistou o apoio do império romano, que estava interessado na organização dos judeus fariseus, de sua Lei e suas sinagogas, para controlar o povo judeu. Após a morte de Johanan ben Zakai, as autoridades farisaicas se enrijeceram em torno da Lei e os grupos que não aceitaram a linha oficial foram perseguidos e finalmente expulsos da sinagoga, por volta do ano 90.
Em vários locais, o judaísmo e as sinagogas estavam divididos. De um lado, os judeus fariseus se consideravam o verdadeiro Israel e os intérpretes legítimos da Lei. Exerciam suas atividades nas sinagogas, de onde controlavam o cotidiano do povo, por meio da função de explicar, interpretar e impor a Lei. Acreditavam que a libertação do povo só aconteceria com a estrita observância da lei do puro e impuro (Lv 11-15). As pessoas que não tinham condições de cumprir com todas as exigências da Lei eram consideradas impuras e malditas. O número de pessoas excluídas era grande!
De outro lado, os judeo-cristãos também se consideravam o verdadeiro Israel; eles acolhiam excluídos em seu meio. Os cristãos, que estão por trás do Evangelho de Mateus, fazem a sua proposta de nova interpretação da Lei: “Ide, pois, e aprendei o que significa: ‘Misericórdia é o que eu quero, e não o sacrifício’” (Mt 9,13; cf. Os 6,6). Eles insistem: Jesus morto na cruz, escândalo para os judeus fariseus, é o verdadeiro Messias, Emanuel – Deus conosco –, e o Mestre da lei baseada na justiça e na misericórdia. Por meio da palavra e da ação de Jesus, os judeo-cristãos criticam a sociedade do império romano e dos judeus fariseus, fundamentada no poder opressor.
O conflito entre os judeus fariseus e os judeo-cristãos era grande. Nesse contexto, algumas perguntas pairavam na cabeça de muitos judeus: Quem falava verdadeiramente pelo Deus de Israel? Quem entendia e interpretava com exatidão a Torá? Quem estava capacitado para interpretar o passado e conduzir o povo de Deus ao futuro?
Com base nessas indagações, as comunidades de Mateus acolheram e reinterpretaram os principais fatos e palavras de Jesus à luz de seu contexto e produziram suas próprias reflexões para reanimar seus membros a perseverar no seguimento de Jesus. O movimento de Jesus atravessava forte crise, pois estava em via de separação do judaísmo oficial. Era um grupo minoritário, frágil, oprimido pelo império e pelas autoridades judaicas.
O conflito externo com os judeus fariseus, apoiados pelo império romano, não era o único que as comunidades de Mateus enfrentavam. Havia também os conflitos internos. Essas comunidades eram constituídas em sua maioria por judeo-cristãos, apegados à Lei e às tradições judaicas. Mas nas comunidades havia também os “gentios” e judeo-cristãos helenistas, ou seja, judeus fortemente influenciados pela cultura grega, que tinham uma posição mais aberta em relação à Lei judaica.
Os conflitos eram inevitáveis no dia a dia da vida comunitária. Divergências surgiram na interpretação e no seguimento das palavras e da prática de Jesus; giravam em torno da observância rigorosa da Lei e da tradição judaica, da adaptação ao modo de vida dos “gentios”, da superioridade dos judeo-cristãos em relação aos gentios convertidos, da disputa pela liderança, entre outros (Mt 18,1-11).
Nos conflitos com os judeus fariseus e com o império romano, as comunidades de Mateus tiveram de fortalecer sua identidade e unidade, enfrentando as divergências internas e externas, propondo um diálogo mais abrangente e fraterno. Nessa realidade, o Evangelho de Mateus foi escrito como uma catequese para suas comunidades.
4. Propostas das comunidades de Mateus
O Evangelho de Mateus nasce da resistência de pequenas comunidades de pessoas fiéis a Jesus, sinais da presença salvadora de Deus e de seu reino. Através desse evangelho podemos enxergar comunidades que estão definindo sua identidade. Trata-se de comunidades que estão se fortalecendo para resistir ao controle da sinagoga e do império romano e superar as divergências internas e externas. A volta de Jesus completará a salvação de Deus e estabelecerá o seu reinado sobre tudo.
Eis alguns pontos importantes do Evangelho de Mateus:
a)As comunidades de Mateus acreditam em Jesus como o Messias, em oposição ao messias rei poderoso e defensor da Lei, esperado pelos fariseus (Mt 1,1-2,18). É o messianismo dos excluídos (Is 42,1-9) contra o messianismo do rei (Ez 37,21-28). Ele é o Messias anunciado pelos profetas, e a sua vida e prática eram cumprimento do plano determinado por Deus.
b) Jesus é o verdadeiro intérprete da Lei: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado” (5,17-18). Jesus é o único e verdadeiro Mestre da Lei (5,1; 23,8). A Lei deve estar a serviço da vida, e não condicionada à lei do puro-impuro (Lv 11-15), que acabou se transformando numa observância mecânica e lucrativa, excluindo muitas pessoas, especialmente os pobres.
c) A prática de Jesus pobre, humilde e misericordioso corresponde à justiça de Deus (11,28-30). Ele vem ao encontro do ser humano, perdoa e salva. A sua prática é baseada no amor e na misericórdia (9,13; 12,7). Uma justiça solidária!
d) A correção fraterna contra o legalismo e o rigorismo da sinagoga (18,23-35). É preciso sair e ir ao encontro da pessoa que errou! Essa comunidade proclama que, em Jesus, Deus está conosco: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (18,20). Sempre: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (28,20b).
e) O Juízo Final e o Reino dos Céus (24-25). O critério de julgamento no Juízo Final é a fidelidade à vontade de Deus. O que o Pai quer é a prática da misericórdia e da solidariedade, oposta à teologia da retribuição. Nesta teologia, a salvação (compreendida como prosperidade, vida longa, saúde e ressurreição) é uma retribuição a quem observa a Lei, visando somente à sua salvação e promoção individual. O Reino dos Céus está presente no meio das pessoas misericordiosas e solidárias e será definitivamente estabelecido por uma intervenção de Deus e do seu Messias. O Reino é fruto da gratuidade de Deus (Mt 13)!
5. Estrutura do evangelho
A estruturação mais comum do Evangelho de Mateus é em cinco livros, com uma introdução sobre as origens de Jesus, os capítulos 1 e 2, e uma conclusão, com a narrativa da sua morte e ressurreição, nos capítulos 26 a 28. Cada um dos cinco livros contém uma parte narrativa e um discurso. Ao todo são dez partes. É uma forma de Mateus relembrar às suas comunidades o Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) e as dez palavras do Sinai ou os dez mandamentos, apresentando Jesus como o novo Moisés.
Visualizando a estrutura:
Introdução (1-2)
– Jesus dentro da história do povo de Deus (1,1-17).
– Jesus: um novo começo dentro de um novo Êxodo (1,18-2,23).
Primeira parte: A justiça do Reino de Deus (3-7)
Narração: Jesus traz o Reino de Deus (3-4).
Discurso: O sermão da montanha (5-7) – condições para entrar no Reino.
Segunda parte: Uma justiça que liberta os pobres (8-10)
Narração: os milagres, sinais do Reino (8-9).
Discurso: A missão (10) – como anunciar o Reino.
Terceira parte: Uma justiça que provoca conflitos (11,1-13,52)
Narração: as reações diante da prática de Jesus (11-12).
Discurso: As parábolas do Reino (13,1-52) – o mistério do Reino.
Quarta parte: O novo povo de Deus (13,53-18,35)
Narração: o seguimento de Jesus (13,53-17,27).
Discurso: A comunidade dos seguidores (18,1-35) – sinal do Reino.
Quinta parte: A vinda definitiva do Reino (19-25)
Narração: o Reino é para todos os que se converterem (19-23).
Discurso: a vigilância (24-25) – o futuro do Reino.
Conclusão: A páscoa da libertação (26-28).
6. Principais mensagens do Evangelho de Mateus
No Evangelho de Mateus, Jesus é o Emanuel (Mt 1,23) e se faz presente na comunidade reunida em oração: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Ele garante a sua presença constante na vida das pessoas: “E eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). Jesus é o Mestre que nos convida a viver a justiça e a misericórdia! Com base em alguns textos exclusivos do Evangelho de Mateus, é possível entender o projeto das comunidades que receberam esse evangelho e alguns dos principais ensinamentos de Jesus transmitidos por elas e dirigidos também às nossas comunidades hoje.
- Jesus é o Messias das pessoas excluídas. Há vários séculos o povo judeu esperava pela vinda de um rei-messias poderoso, que viria para restaurar o reino de Israel. De acordo com essa expectativa, o reino judaico seria estabelecido pela intervenção de um Deus poderoso e castigador, por meio de um messias da linhagem de Davi e defensor da Lei oficial. A genealogia de Jesus o apresenta como o Messias de Deus e a plenitude das gerações (1,17), mas há uma surpresa: quatro mulheres estrangeiras são nomeadas nessa lista (Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias), algo não costumeiro nessas genealogias. Elas, junto com Maria, uma mulher grávida antes do casamento, eram consideradas impuras, segundo a Lei oficial. Ou seja, todas eram excluídas da sociedade judaica. Outro aspecto importante é que, na história pessoal de Jesus, podemos ler a história do povo de Israel. As gerações passam, mas a vida permanece e cada geração é responsável pela continuidade da vida. É Deus conosco, renovando o milagre da vida!
- Viver a justiça e a misericórdia (Mt 5,1-12). Seguindo as pegadas de Jesus, somos convocadas/os a assumir nosso compromisso com a construção de uma sociedade justa e solidária. No tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, escribas e fariseus pregavam e impunham a “teologia da retribuição”, que determinava quem era puro e feliz diante de Deus. Na esteira dessa teologia, as pessoas ricas e saudáveis eram vistas como justas, recompensadas por Deus por sua justiça, e as pessoas pobres, por sua vez, eram consideradas como culpadas por suas desgraças. A pobreza, a miséria e a esterilidade eram compreendidas como castigos de Deus às pessoas consideradas pecadoras e impuras. O critério para considerar uma pessoa justa ou injusta era a rigorosa observância da Lei, com os inúmeros impostos religiosos. Havia muita gente sem condições de observar a Lei e que mal sobreviviam no dia a dia. Jesus e as comunidades cristãs propõem uma inversão social: proclamam que os malditos pela sociedade injusta são os benditos de Deus.
- A prática do amor nos aproxima de Deus (Mt 6,1-6.16-18). As obras de piedade judaica – oração, esmola e jejum – eram fortemente incentivadas desde o século 5 a.C. e se tornaram meios para ganhar a salvação individual e a promoção pessoal. Na prática da esmola, os pobres foram transformados em objetos para adquirir “pontos” ou favores de Deus. As obras de piedade acabaram perdendo a sua finalidade de estabelecer e fortalecer a comunicação com Deus e com o próximo. Para Jesus, as obras da piedade estão a serviço da vida, e não a serviço da promoção pessoal e da hipocrisia.
- Cristo está presente na comunidade reunida (Mt 18,15-22). Após a destruição do templo de Jerusalém, os fariseus se organizaram na sinagoga. Aos poucos, esse grupo assumiu a observância rigorosa da Lei, tornando-se extremamente legalista, a ponto de expulsar os grupos dissidentes. Os encontros e a vida das comunidades estavam cada vez mais centrados na prática de rituais. Na oração das dezoito bênçãos, escritas nesse período, pede-se que os “nazareus” e os “minin” pereçam. Em meio à perseguição externa e aos conflitos internos, as comunidades de Mateus, seguidoras de Jesus de Nazaré, devem fortalecer a unidade para sobreviver. Nesse sentido, convém reforçar a importância do perdão, da sensibilidade e da prática concreta da solidariedade na comunidade. A correção fraterna e o perdão são fundamentais para consolidar a vida em comunidade.
- Jesus está presente nas pessoas marginalizadas (Mt 25,31-46). Os judeus do século I acreditavam na transformação do mundo por meio da intervenção de Deus, precedida por um momento de grandes tribulações e sofrimentos. Desde a chegada dos gregos, em 333 a.C., Israel sofre com as destruições e perseguições de seus inimigos. A vinda de um Messias iria instaurar o Reino de Deus, concedendo a vitória aos justos. As comunidades de Mateus também fazem a sua releitura do Juízo Final e apresentam Jesus, o Filho do homem, como rei e juiz de todas as nações, para separar as pessoas umas das outras, tendo como critério não a lei do puro e impuro, mas a nova justiça do Reino: a prática concreta do amor solidário. Dessa forma, as comunidades de Mateus trazem o julgamento final para o seu dia a dia: não devemos nos preocupar tanto com os sinais cósmicos, mas com o que fizermos hoje com os nossos irmãos pequeninos e injustiçados, pois esse será o critério para a salvação eterna.
Pisar no chão das comunidades de Mateus é um convite para entendermos o contexto da época, especialmente a intolerância e as rivalidades existentes entre as lideranças religiosas da época e as comunidades de Mateus. O Evangelho de Mateus é intolerante com as autoridades judaicas, apresentando-as como agentes do diabo (Mt 4,1-11; 12,34; 16,1-14; 19,3; 22,15.34). É preciso ir além desse conflito e perceber a insistência de Jesus na vivência da compaixão, do serviço mútuo e na resolução não violenta dos conflitos. Como discípulas e discípulos, sentemo-nos para aprender do Mestre a viver “a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23,23).
Maria Antônia Marques
Assessora do Centro Bíblico Verbo e professora na Faculdade Dehoniana, em Taubaté, na Faculdade Católica de São José dos Campos, na Escola Dominicana e no Itesp, em São Paulo. E-mail: [email protected]