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Publicado em número 268 - (pp. 16-24)

Cristo Jesus se despojou, tomando a condição de escravo: Uma leitura de Filipenses 2,1-11

Por Pe. Shigeyuki Nakanose, svd

Essa paixão pelo anúncio da boa-nova levou-o a buscar estratégias que o ajudassem a conquistar o maior número de pessoas para participar desse novo modelo de vida. Paulo continua sendo figura que questiona e impulsiona todas as pessoas que se comprometem com o anúncio da boa-nova de Jesus e acreditam que outro mundo com terra, água, vida, justiça, igualdade, ternura, solidariedade… para todas e todos é possível.

No dia 27 de julho de 2002, o avião pousou no aeroporto de Imperatriz, no Maranhão. Eram por volta das 23 horas. Padre Sebastião Leite, ex-aluno do Centro Bíblico Verbo e pároco na cidade de Riachão, recebeu-me com largo sorriso e juntos partimos para Balsas, local onde se realizaria mais um curso bíblico. A distância entre Imperatriz e Balsas é de 400 quilômetros, a ser percorrida em uma estrada cheia de buracos por causa do trânsito intenso de caminhões — a cidade de Balsas é conhecida como o “novo eldorado da soja”.

Após um pneu ter furado, entramos num posto de gasolina. Foi então que tive uma experiência chocante, que marcou a minha vida. Uma cena dolorida! O posto estava cheio de caminhões para o pernoite. Já era 1 hora da madrugada. Embora o movimento estivesse fraco, ainda havia caminhões que entravam e saíam. Para minha surpresa, cada chegada provocava a correria de um grupo de meninas, até com idade de 10 anos. Muita gritaria! Rostos maquiados. Roupas coloridas. A disputa pelo freguês era grande. Pela primeira vez, vi-me frente a frente com a prostituição infantil. Era um verdadeiro mercado de corpo. Corpos exibidos, vendidos, submetidos… Corpos preparados para serem olhados e desejados.

A maioria das meninas era filha de ex-lavradores. A mecanização das atividades rurais e a “indústria da seca” contribuíram para aumentar a centralização de terras. Na região de Balsas, a plantação de soja provocou a expulsão dos trabalhadores do campo. Os lavradores, sem qualificação em outras áreas, ficaram sem rumo na vida. No desespero, a sobrevivência obrigou os pais a vender os corpos das próprias filhas.

Nos últimos anos, constantemente acontecem assaltos à noite no trajeto entre Imperatriz e Balsas. Uma vez ao ano vou a essa região. Viajo durante o dia. Não vejo mais as meninas prostituídas na estrada. Mas ouço falar da realidade sofrida da prostituição infantil e de suas consequências, entre as quais violência, saúde debilitada, evasão escolar e famílias destruídas. É a verdadeira condição desumana de “escravas”.

Ontem, como hoje, cada povo tem histórias de pessoas escravizadas: prisioneiros de guerra, camponeses endividados e vendidos, filhos e filhas de escravos etc. A Bíblia registra muitas histórias de pessoas em condição de escravidão:

•   os egípcios obrigavam os israelitas ao trabalho e tornavam-lhes amarga a vida com duros trabalhos (Ex 1,13-14);

•   Davi venceu os moabitas e eles lhe ficaram sujeitos e lhe pagaram tributo (2Sm 8,2);

•   “Assim falou Iahweh: Por três crimes de Israel, e por quatro, não o revogarei! Porque vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e tornam torto o caminho dos pobres; um homem e seu pai vão à mesma jovem para profanar o meu santo nome” (Am 2,6-7);

•   “Entretanto, este povo foi despojado e saqueado; todos eles estão presos em cavernas, estão retidos em calabouços. Foram submetidos ao saque, e não há quem os liberte; foram levados como despojo, não há quem reclame a sua devolução” (Is 42,22);

•   “Observo ainda as opressões todas que se cometem debaixo do sol: aí estão as lágrimas dos oprimidos, e não há quem console; ninguém os apoia contra a violência de seus opressores” (Ecl 4,1).

 

Sem dúvida, poderíamos enumerar outros textos do Primeiro Testamento sobre pessoas empobrecidas e escravizadas. Se, porém, lermos atentamente esses textos, descobriremos um mistério: o Deus da vida escuta os pobres, fracos e empobrecidos, tem compaixão por eles e caminha ao seu lado. No Segundo Testamento, o mistério se acentua na vida de Jesus de Nazaré e no movimento de seguidores: “Cristo Jesus, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tomando a condição de escravo” (Fl 2,6-7).

Deus, na encarnação, assumiu a condição de escravo? Frequentemente foi motivo de surpresa e até de escândalo que os cristãos tenham declarado sua fé em Jesus de Nazaré, o crucificado (cf. 1Cor 1,17-25). Os cristãos continuam confessando Cristo Jesus por Deus. Então, nós nos perguntamos: Deus continua tomando a condição de escravo hoje? Ele escuta e caminha ao lado daquelas meninas prostituídas de Balsas? Quem é o nosso Deus? E nós, cristãos, como poderíamos viver?

Isso nos faz pensar em quanto é importante entender alguns textos bíblicos, como Fl 2,1-11, que exaltam a encarnação do Senhor Jesus como escravo e insistem nisso para orientar as pessoas cristãs e sua vida na sociedade greco-romana. Vamos dialogar com Paulo, autor da carta aos Filipenses, e conhecer um pouco mais tanto o chão de onde nasce a carta quanto as pessoas escravizadas de seu tempo, das quais ele se faz porta-voz.

 

1. “Levai uma vida de cidadãos”

O conjunto Fl 1,27-30 fala de sofrimento e se inicia com um termo grego, bem conhecido na sociedade greco-romana: politeuesthai, que significa literalmente “levai uma vida de cidadão”. A expressão exalta uma conduta civil, conforme as normas estabelecidas pela pólis grega. No contexto da cidade de Filipos, colônia romana, o termo politeuesthai manifesta o orgulho dos filipenses, que possuem cidadania romana e desfrutam da organização socioeconômica do império. Por sinal, a cidade de Filipos adota o modelo romano: as instituições administrativas e judiciárias; a estrutura arquitetônica, com teatro, biblioteca, fórum, banhos, aquedutos e templos; as ruas ligadas à via Egnatia, importante rota romana que liga a Itália à Turquia, a Europa à Ásia; a presença permanente do exército romano etc.

Por trás do orgulho dos filipenses e do seu apego ao império romano há uma história. A região de Filipos foi o palco da guerra civil romana. Em outubro do ano 42 a.C., as legiões de Marco Antônio e Otávio derrotaram os republicanos Brutus e Cassius. Anos depois, em 31 a.C., Otávio e Marco Antônio deixaram de ser aliados e entraram em disputa. Otávio saiu vencedor na batalha de Actium. Para recompensar seus aliados e reconhecendo a importância da posição geográfica de Filipos, Otávio elevou-a à categoria de colônia Julia Augusta Philippensis e instalou na cidade veteranos das legiões romanas e, também, agricultores da Itália, dando-lhes grandes extensões de terra.

Com a elevação à categoria de colônia romana, o território filipense e suas riquezas foram entregues aos novos habitantes romanos à custa da expropriação dos antigos moradores da região. As elites desfrutavam de todos os privilégios do status de ser colônia romana e de todos os direitos da cidadania romana: a isenção do imposto provincial; o direito de adquirir, conservar e transferir propriedades; a emissão de moedas próprias cunhadas com inscrições latinas; o direito de regulamentar seus próprios assuntos cívicos etc.

É compreensível, portanto, que os habitantes de Filipos, especialmente os romanos — 40% de toda a população no tempo de Paulo —, se orgulhassem da condição de colônia romana da cidade e a organizassem de acordo com o modelo da administração sociocultural de Roma: as instituições municipais, as construções de edifícios públicos e monumentos em homenagem à família imperial, o culto imperial e os espetáculos teatrais. A cidade de Filipos era uma miniatura de Roma. Consequentemente, Filipos apresentava a mesma estrutura social do império: o modelo “senhor-escravo”.

A sociedade greco-romana era piramidal: havia os nobres (entre 1 e 5% da população), o grupo trabalhador (mestres, comerciantes, artesãos e outros) e, abaixo dessa classe, os pobres e os mendigos. No último patamar social estavam os escravos e as escravas, pessoas sem liberdade e sem direitos e, em certos casos, sujeitas a abusos e espancamentos. Uma pessoa podia ser escrava por ter sido feita prisioneira, por ter nascido de mãe escrava ou por endividamento. A maioria dessas pessoas poderia ter sido comerciante ou pequeno proprietário cujos estabelecimentos e terras foram confiscados pelo império.

Uma testemunha desse gênero de violência é o poeta Marcial, do século I de nossa era, conforme revela o seguinte epigrama: “A ti pareço cruel, Rústico, pareço glutão, por espancar meu cozinheiro que me preparou um mau jantar. Se não te parece merecer esta falta o azorrague (açoite), por que motivo queres seja espancado um cozinheiro?”

Os escravos trabalhavam na agricultura, na pecuária, no setor de artesanato manual e, sobretudo, no porto marítimo, carregando e descarregando produtos trazidos de diversas regiões do Mediterrâneo. Era um trabalho penoso. Seus donos não hesitavam em exigir deles tudo o que as forças humanas poderiam suportar, levando-os, por vezes, à morte. Corpos suados, violentados, massacrados… Alguns estudiosos declaram que tais escravos eram “máquinas com voz humana” ou “um instrumento com alma”. Eram pessoas desprovidas de liberdade e de dignidade humana, cuja vida estava integralmente nas mãos de seu senhor e amo (kyrios, dominus).

Conhecendo a realidade de Filipos e o modelo de sociedade “senhor-escravo”, Paulo proclama o hino ao Cristo (Kyrios): “Cristo Jesus se despojou, tomando a condição de escravo”. Não hesita em adotar “Cristo Jesus escravo” como modelo para os cristãos. Cristo Jesus? Escravos? Os escravos são forçados a trabalhar como máquinas.

Chegamos agora a uma questão instigante: o que levou Paulo a escrever Fl 2,1-11? O que estava acontecendo na comunidade cristã de Filipos? Onde está o nosso Deus? Quem é ele?

 

2. “Nada fazendo por competição e vanglória”

Em seu bilhete, Paulo aponta a divisão existente na comunidade: “nada fazendo por competição e vanglória, mas com humildade, julgando cada um os outros superiores a si mesmo” (Fl 2,3). Há outros versículos desta carta que evidenciam a divisão na comunidade. Vejamos: “É verdade que alguns proclamam Cristo por inveja e porfia, e outros por boa vontade; estes por amor proclamam a Cristo, sabendo que fui posto para a defesa do evangelho, e aqueles por rivalidade, não sinceramente, julgando com isso acrescentar sofrimento às minhas prisões” (Fl 1,15-17); “Fazei tudo sem murmurações nem reclamações” (Fl 2,14); “Exorto Evódia e Síntique a serem unânimes no Senhor” (Fl 4,2). Competição, vanglória, superioridade, inveja, porfia, rivalidade, murmurações e reclamações… Qual é a causa da divisão? Onde está o problema?

Destacamos, entre outros, o termo “competição”, em grego eritheia, pela seguinte razão: nas cidades romanizadas, com intenso comércio e muito dinheiro circulando, a palavra “competição” está na ordem do dia. Filipos é assim. Quando foi romanizada, em 31 a.C., foram levados para lá muitos ex-militares, colonos e comerciantes que viviam em Roma. Essas pessoas adquiriram terras e oportunidades para melhorar sua situação social. A busca por riqueza e reconhecimento social, “honras públicas e privilégios”, movia os romanos recém-chegados. O tempo passou, mas o espírito de competição continua a reinar em Filipos, colônia romana cujos habitantes são verdadeiros adoradores da moda, em todos os sentidos: “levai uma vida de cidadão romano”.

A maior parte dos membros da comunidade cristã de Filipos são pessoas pobres. Há quem trabalhe na produção da púrpura vegetal, um trabalho penoso, mas há também gente abastada, com bens, poderes e honras. Segundo recente pesquisa histórica e arqueológica, os cristãos de Filipos eram entre 50 e 100 pessoas, das quais 35% eram romanas. Nenhuma outra comunidade fundada por Paulo teve um número tão grande de romanos. É inevitável que o espírito de “competição”, presente no contexto do império, tenha entrado na comunidade, provocando rivalidade, porfia, inveja e outros sentimentos afins. Sem contar que já existiam na comunidade atritos e desprezo aos cristãos sem cidadania romana.

Em resposta às dificuldades da comunidade, Paulo escreve: “Portanto, pelo conforto que há em Cristo, pela consolação que há no amor, pela comunhão no Espírito, por toda ternura e compaixão, levai à plenitude minha alegria, pondo-vos acordes no mesmo sentimento, no mesmo amor, numa só alma, num só pensamento” (Fl 2,1-2). Conforto, consolação, amor, comunhão, ternura, compaixão, unidade… A exortação é insistente.

Paulo pode ter vivido e experimentado esse sentimento, ou seja, “minha alegria”, na convivência com a comunidade cristã de Filipos desde “o primeiro dia até agora”: acolhida, partilha, serviços prestados, apoio financeiro (Fl 1,3-11). Ele sabe, por experiência, como nasce a unidade na comunidade. A unidade só se realiza por meio de uma vida de humildade e de caridade, segundo o exemplo de Cristo: “Tendo em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus” (Fl 2,5).

 

 

3. “Cristo Jesus se despojou, tomando a condição de escravo”

A insistente exortação à unidade recebe outra argumentação. Para aprofundar Cristo como o modelo da humildade, Paulo cita, com alguns retoques, um hino cristão muito antigo, semelhante a Cl 1,15-20, 2Tm 2,11-13 e Ap 5,9-14. O hino é composto de duas estrofes: a primeira celebra a humilhação voluntária de Cristo (vv. 6-9); a segunda, a sua exaltação por Deus (vv. 10-11). É o esquema “humilhação/exaltação” conhecido nos textos bíblicos, por exemplo: “Deus ergue o fraco da poeira e tira o indigente do lixão” (Sl 113,7-8; cf. 1Sm 2; Sl 22; 118).

É possível que Paulo, ex-fariseu e conhecedor da Escritura, tenha entendido o hino a Cristo Jesus à luz do “quarto cântico do servo de Iahweh” (Is 52,13-53,12), descrito num esquema semelhante de humilhação/exaltação. Na primeira parte do cântico, lemos:

Eis que meu servo (…) desprezado e abandonado pelos homens, homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento, como pessoa de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum dele (…). Foi maltratado, mas livremente humilhou-se, não abriu a boca, como cordeiro conduzido ao matadouro: como ovelha que permanece muda na presença dos tosquiadores, ele não abriu a boca (Is 52,13; 53,3.7).

 

O servo — o povo oprimido de Israel — não parece mais gente. O sofrimento o desfigura, provavelmente, por causa da fome e da violência dos opressores no tempo exílico e pós-exílico (550-450 a.C.). A humilhação, a dor e o silêncio pesam no cântico. A imagem é forte: cordeiro conduzido ao matadouro. Em seguida, o cântico narra o ponto culminante da humilhação humana: a condenação, a execução e a sepultura (Is 53,8-9). Essa mesma imagem do servo humilhado e desfigurado, de quem todos escondem o rosto, é aplicada a Jesus, descrito na primeira parte do hino a Cristo Jesus:

Ele (Cristo Jesus), estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem, abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, a morte sobre uma cruz (Fl 2,6-8).

 

Constata-se que o servo de Iahweh, descrito no livro de Isaías, é relido e ampliado pelos cristãos, conforme a sua fé em Jesus e a realidade que os cerca:

a) Cristo Jesus (2,5): como César, imperador romano (4,22), Jesus é de filiação divina. Ele é chamado de Senhor, kyrios, título destinado aos donos de escravos e a César. Enquanto o imperador adota a divindade imperial como forma de dominação, Jesus a recebe como forma de humildade (2,6).

b) Jesus na forma de Deus (2,6): no mundo greco-romano, a divindade possui “forma” ou “figura”, em grego morphe, e se apresenta de maneira configurada diante dos seres humanos. César, considerado como a forma da divindade, é adorado no culto ao imperador. Ao proclamar e adorar a Cristo Jesus crucificado como a forma de Deus, os cristãos desafiam a teologia imperial romana.

c)  Jesus na forma de Deus no Primeiro Testamento: a “forma” ou a imagem de Deus, predicado de Adão (Gn 1,27). Enquanto Adão procura pôr-se no lugar de Deus (Gn 3,1-7; Rm 5,19), Jesus, o segundo ou último Adão (1Cor 15,45), escolhe ser humilde e obediente até a morte, e morte de cruz.

d) Jesus e seu direito de ser tratado como um deus (2,6): segundo a tradição judaica tardia, como o livro da Sabedoria e o de Henoc, um não pecador não deve morrer, pois a morte é castigo pelo pecado. Portanto, Jesus, sendo divino e não pecador, não deveria ter morrido (2Cor 5,21).

e) Jesus, homem escravo (2,7): “Ele se despojou, tomando a forma de escravo”. No mundo greco-romano, não é estranho que uma divindade tome a “forma” presente no imperador. No entanto, as comunidades cristãs proclamam que a divindade assume a forma de escravo. Trata-se exatamente do estrato social mais baixo da sociedade greco-romana, pois o escravo não tem direito civil algum, nem sequer o direito de se defender de acusações injustas.

f)  Jesus crucificado e morto (2,8): a crucifixão, que tem sua origem na Pérsia, no período greco-romano é uma penalidade infligida aos escravos e aos habitantes das províncias por faltas maiores, como furto grave e rebelião. Na tradição judaica, o suplício da cruz é considerado “maldição de Deus” e “ato de impureza” (Dt 21,22-23).

 

Jesus se despoja de tudo. Total humilhação. Como escravo morto na cruz, Jesus se torna nada. Mas não há outro caminho. Para ele e seus seguidores e seguidoras, o projeto do Deus da vida é despojar-se de tudo o que a sociedade greco-romana, controlada pelo império, prega e busca: poder, riqueza, posição social, honra, fama etc.

O essencial da pregação de Paulo é: “Anunciamos Cristo crucificado, que, para os judeus, é escândalo, para os gentios é loucura (…). Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1,22-25). Ao atingir o ponto mais baixo da humilhação, realiza-se a exaltação por Deus. É o movimento de subida. Mistério da salvação.

 

4. “Deus soberanamente elevou Jesus”

No quarto cântico do servo, que inspira e fortalece Paulo, lemos:

Mas Iahweh quis esmagá-lo pelo sofrimento. Porém, se ele oferece a sua vida no lugar de sacrifício expiatório, certamente verá uma descendência, prolongará seus dias, e por meio dele o desígnio de Deus triunfará. Após o trabalho fatigante da sua alma, verá luz e se fartará. Pelo seu conhecimento, o justo, meu servo, justificará a muitos e levará sobre si as suas transgressões (Is 53,10-11).

 

“Iahweh quis esmagá-lo”? Que Deus é esse, que quer o sofrimento da pessoa? É provável que os quatro cânticos tenham surgido nas comunidades do Segundo Isaías, entre 550-540 a.C., na Babilônia. Mais tarde, as comunidades de Judá, no contexto da dominação persa (520-400 a.C.), fizeram uma releitura desses textos, procurando encontrar novas luzes para ajudar o povo esmagado e sofrido a enfrentar a opressão da elite religiosa e política de Judá, que se aliara ao império persa.

O império persa, em proveito de seus interesses, apoiou a formação da teocracia, governo de sacerdotes e escribas. Introduziu-se o sistema do templo com seus sacrifícios, e a teologia oficial do puro e impuro foi reforçada. Conforme essa teologia, uma pessoa impura não podia participar do culto e, consequentemente, estava excluída da sociedade e afastada do deus oficial. O sacrifício com alto custo (cf. Lv 14,4.10.21) era condição para a pessoa poder voltar a participar da sociedade teocrática. Provavelmente, o “sacrifício de expiação”, ‘asham em hebraico, descrito em Is 53,10 e muito frequente no livro do Levítico como “culpa pelo pecado” (Lv 5,6), era uma das peças principais do sistema sacrificial, o sacrifício exigido pelo Deus do templo.

As leis da pureza definiam quem estava mais perto e quem estava mais longe do Deus oficial, um Deus que nem dava ouvido às vítimas da elite corrupta de Jerusalém e seus aliados: “Da cidade sobem os gemidos dos moribundos e, suspirando, os feridos pedem socorro, e Deus não ouve a sua súplica” (Jó 24,12). É a imagem de um deus autoritário e interesseiro, que exigia muitos sacrifícios. O quarto cântico do servo afirma: “Iahweh quis esmagá-lo pelo sofrimento”. Trata-se de uma visão de deus descrita no centro do cântico (Is 53,1-11a), um deus muito diferente do Deus da vida, que aparece no início (52,13-15) e no fim (53,11b-12), que confirma e exalta a missão do servo.

O servo tem a missão de “oferecer a sua vida no lugar do sacrifício expiatório”. A prática do amor, da doação e da solidariedade substitui o sacrifício da purificação, das leis da pureza, da teologia da retribuição, imposto pela religião oficial. A salvação não está no cumprimento da lei do sacrifício, mas na prática da solidariedade, por meio da qual o Deus da vida se manifesta. Esse é o sonho e a proposta do quarto cântico. Mas é também o sonho de Jesus e de seus seguidores e seguidoras. Por isso, Deus eleva Jesus:

Por isso Deus soberanamente o elevou e lhe conferiu o nome que está acima de todo nome, a fim de que, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre nos céus, sobre a terra e sob a terra e que toda língua proclame que o Senhor é Jesus Cristo para a glória de Deus Pai (Fl 2,9-11).

 

Como o servo sofredor (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12), o sofrimento e a morte de Jesus não são castigos nem projeto de Deus, mas consequência de sua prática de justiça e solidariedade. A cruz é resultado do seu amor e da sua fidelidade à missão que lhe foi confiada pelo Deus da vida e do compromisso extremo com as pessoas crucificadas. E é exatamente na cruz que acontece uma reviravolta. Deus exalta Jesus crucificado, um impuro, cujo nome é o Senhor — o Kyrios (cf. Rm 10,5-13). É o mesmo título do imperador César. Agora, o senhorio de Cristo Jesus no lugar do senhorio do imperador César. Enquanto este domina o povo com poder e riqueza, Jesus serve ao povo com amor/caridade, ágape.

Por sua vez, Paulo traduz esse amor concretamente no serviço à comunidade: “Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pela caridade, colocai-vos a serviço uns dos outros” (Gl 5,13). Não se trata apenas de ter amor e fé em Cristo Jesus, mas de se empenhar como Cristo escravo, pessoa sofrida e desprovida de direito humano, num trabalho que pode formar uma sociedade sem senhores e sem escravos. O hino a Cristo Jesus é uma exortação à comunidade cristã de Filipos: “Deus me é testemunha de que vos amo a todos com a ternura de Cristo Jesus. E é isto o que peço; que vosso amor cresça cada vez mais, em conhecimento e em sensibilidade” (Fl 1,8-9).

 

5. Deus dos oprimidos

O autor do hino a Cristo utilizou a tradição judaica do “servo sofredor”, cântico baseado no esquema “humilhação/exaltação”. Do fundo da experiência da vida sofrida, brota a fé no Deus da vida, e nela o pobre humilhado e oprimido não cessa de depositar a sua esperança: “Tua força não está no número, nem tua autoridade nos violentos, mas tu és o Deus dos humildes, o socorro dos oprimidos, o protetor dos fracos, o abrigo dos abandonados, o salvador dos desesperados” (Jt 9,11). A fé no Deus dos oprimidos é testemunhada e transmitida por meio de homens e mulheres em busca de vida.

 

a) Pobre sofredor

Sim, pois ele não desprezou, não desdenhou a pobreza do pobre, nem lhe ocultou sua face, mas ouviu-o, quando a ele gritou. De ti vem meu louvor na grande assembleia, cumprirei meus votos frente àqueles que o temem. Os pobres comerão e ficarão saciados, louvarão a Iahweh aqueles que o buscam: “Que vosso coração viva para sempre” (Sl 22,25-27).

 

Os pobres insistem que Deus não despreza a pobreza nem lhes oculta a sua face. Ao contrário, ele escuta o clamor do pobre. Parece que o insistente clamor nos mostra o abandono do pobre no dia a dia da realidade do salmista. No pós-exílio, consolida-se uma sociedade governada pelos teocratas, de acordo com os interesses do império persa (cf. Esd 7,26-28). A maioria da população, especialmente a camponesa sem-terra, experimenta exploração, fome, escravidão: “Os pobres da terra se escondem todos juntos. Nus passam a noite, sem roupa e sem coberta contra o frio (…). O órfão é arrancado do seio materno e a criança do pobre é penhorada” (Jó 24,4.7.9).

O pobre é reduzido a nada e considerado maldito aos olhos dos homens: “Quanto a mim, sou verme, não homem, riso dos homens e desprezo do povo” (Sl 22,7). Aparentemente também é considerado maldito aos olhos de Deus (Sl 22,2), aquele deus oficial da teologia da retribuição, segundo a qual os pobres são amaldiçoados. O deus do templo está atento às ofertas dos ricos, mas não ao clamor dos pobres (Jó 24,12).

Mas os pobres teimam em clamar por Deus libertador: “Tu, porém, Iahweh, não fiques longe! Força minha, vem socorrer-me depressa!” (Sl 22,20). É a fé no Deus dos pobres. Deus que escuta e exalta os humilhados. Ele se encarna no sofrimento, na dor e na morte dos pobres: “Eu sei que meu Defensor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó; quando tiverem arrancado esta minha pele, fora de minha carne verei a Deus” (Jó 19,25; cf. Jó 42,5; Is 41,8-20).

 

b) Justo pobre

Oprimamos o justo pobre, não poupemos a viúva nem respeitemos os cabelos brancos do ancião. Que nossa força seja a lei da justiça, pois o fraco, com certeza, é inútil. Cerquemos o justo, porque nos incomoda e se opõe às nossas ações, nos censura as faltas contra a Lei, nos acusa de faltas contra a nossa educação (Sb 2,10-12).

 

Ao ler o livro da Sabedoria, surpreende-nos a convicção que o autor manifesta em relação à presença absoluta e eterna de Deus na vida dos justos sofredores: “A justiça é imortal” (Sb 1,15). Fazendo longa meditação sobre o êxodo (Sb 10,1-19,21), o autor reaviva a tradição judaica do Deus dos oprimidos para fortalecer a fé dos justos desprezados, hostilizados e perseguidos em Alexandria, no Egito, uma cidade importante do mundo helenístico.

Para os “ímpios” (gregos), criticados no livro da Sabedoria, é preciso “desfrutar dos bens presentes e gozar das criaturas com ânsia juvenil” (Sb 2,6). O acúmulo de riqueza deve estar na ordem do dia para viverem no prazer. A busca desenfreada de riquezas e poderes provoca, porém, o aumento da desigualdade social, a exploração, a pobreza, a violência e a morte. Para viver no ócio e na abundância, é preciso explorar os justos pobres, como descrito em Sb 2,10-12.

Mas os justos sofredores, que experimentam os sinais de morte no dia a dia, exprimem a fé no Deus da vida. A fé que não teme sequer a própria morte: “A vida dos justos está nas mãos de Deus, nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos pareceram mortos; sua partida foi tida como uma desgraça, sua viagem para longe de nós como um aniquilamento, mas eles estão em paz. Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança estava cheia de imortalidade” (Sb 3,1-4).

 

c) Jesus de Nazaré

Ao entardecer, quando o sol se pôs, trouxeram-lhe todos os que estavam enfermos e endemoninhados. E a cidade inteira aglomerou-se à porta. E ele curou muitos doentes de diversas enfermidades e expulsou muitos demônios (Mc 1,32-34).

 

No tempo de Jesus, o povo acredita que os espíritos são os responsáveis por todos os males: doenças, pobreza, desastre natural e até mesmo o pecado. De acordo com a visão daquela época, a riqueza é compreendida como bênção de Deus, e a pobreza, como maldição. Os pobres e os doentes são considerados impuros, malditos e “endemoninhados” e por isso estão impedidos de participar do convívio dos puros.

Mas é com esses endemoninhados que Jesus de Nazaré convive. Ele se encarna no meio dos impuros: toca o doente (Mc 1,31); estende a mão ao leproso (Mc 1,41); come com os pecadores (Mc 2,15); toca a mulher que sofre de corrimento de sangue (Mc 5,25-34); pega a mão da menina morta (Mc 5,41); encontra e dialoga com a mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30); põe os dedos no ouvido de um surdo, cospe e toca sua língua (Mc 7,33).

Jesus prega o reino de Deus, no qual todos e todas são filhos e filhas do mesmo Pai. E ainda proclama: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado” (Lc 10,21). Só os pobres humilhados conseguem penetrar no mistério da construção do reino de Deus: “Pois todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 14,11).

Jesus é subversivo à medida que prega e pratica um relacionamento social e religioso baseado no amor, na compaixão e na justiça, o que o leva a um confronto com as autoridades e, consequentemente, à cruz. Mas ele é fiel ao projeto da vida até a morte, porque acredita no Deus encarnado nos pobres explorados, desfigurados e impuros. Jesus, criado em Nazaré da Galileia, é um judeu fiel à tradição do justo sofredor.

 

d) Paulo

Até o momento presente ainda sofremos fome, sede e nudez; somos maltratados, não temos morada certa e fatigamo-nos trabalhando com as próprias mãos. Somos amaldiçoados, e bendizemos; somos perseguidos, e suportamos; somos caluniados, e consolamos. Até o presente somos considerados como lixo do mundo, a escória do universo (1Cor 4,11-13).

 

Essa é a palavra de Paulo para os cristãos “poderosos” e “sábios” de Corinto (cf. 1Cor 1,10-13). Palavra de um homem que se faz um com o “lixo” e experimenta a presença do sagrado no cotidiano de sua vida.

Ao chegar a Corinto, Paulo opta por ganhar o próprio sustento. Trabalhando como fabricante de tendas, mergulha no mundo dos trabalhadores: comerciantes, artesãos e escravos, sobretudo, os carregadores nos portos marítimos de Laqueu (oeste) e Cencreia (leste). Os escravos carregam as mercadorias e empurram os navios por uma distância de cerca de seis quilômetros entre os dois portos. Trabalho de cão! Corpos suados, violentados, massacrados… Olhares de crucificados.

Pondo-se ao lado dos crucificados da sociedade, Paulo aprende, aprofunda e anuncia o Cristo crucificado: “o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1,25). Na cruz, Deus inverte a lógica imperial do poder e propõe a do amor, da gratuidade e da solidariedade. Ele está atento aos olhares e clamores dos oprimidos e se põe ao lado deles.

 

6. Uma palavra final

Deus continua pondo-se ao lado dos crucificados de hoje. A presença maciça dos crucificados se faz realidade no meio de nós. Conhecemos quem são eles e elas? Depende de cada um. Depende da experiência do nosso cotidiano. Basta olhar ao nosso redor com mínima sensibilidade humana. Ou — para nós, cristãos — olhar com a fé no Cristo Jesus encarnado, crucificado e ressuscitado no meio das pessoas escravizadas: “Cristo Jesus se despojou, tomando a condição de escravo”.

Nossos olhares. Os olhares dos escravos de hoje. Os olhares das meninas prostituídas da região de Balsas… O cântico Romaria, de Renato Teixeira, expressa um desses olhares:

O meu pai foi peão,

Minha mãe solidão,

Meus irmãos

Perderam-se na vida

À custa de aventuras.

Descasei, joguei,

Investi, desisti,

Se há sorte, eu não sei,

Nunca vi.

Sou caipira…

Me disseram, porém,

Que eu viesse aqui

Pra pedir de romaria e prece

Paz nos desaventos.

Como eu não sei rezar,

Só queria mostrar

Meu olhar, meu olhar,

Meu olhar…

 

Os olhares continuam presentes, ao nosso redor. São os olhares dos servos sofredores que marcam, orientam e ditam a vida cristã. Olhares que fazem repensar nossa pastoral, nossas liturgias, catequeses, teologias, ações sociais, nosso jeito de ler a Bíblia. Quem é Cristo Jesus? Onde ele está?

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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Pe. Shigeyuki Nakanose, svd