“Vaidade das vaidades — diz Coélet —; vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1,2). O Eclesiastes é, sem dúvida, um dos livros mais fascinantes e desconcertantes de toda a Bíblia. Sua leitura implica paixão, e dificilmente o leitor fica sem tomar posição e apresentar uma opinião sobre a obra. Para uns trata-se de um autor pessimista, que não vê sentido em nada; para outros ele é um cético que perdeu a fé; outros ainda o veem como um otimista, ou um fatalista, ou ainda um hedonista à cata de prazeres imediatos e passageiros. Uma leitura atenta do livro, porém, mostra-nos logo o quanto de parcial e injusto têm todas essas classificações. O autor é um homem sincero e realista, aberto à vida e à fé, buscando um sentido em meio às perplexidades do seu ambiente. Ele soube analisar profundamente a condição humana, chegou a intuir uma perspectiva nova e concreta para o homem encarar sua própria realização, e deixou uma questão aberta.
1. Ambiente histórico
O autor do livro do Eclesiastes, que chamaremos com o nome hebraico de Coélet (pregador, orador que fala numa assembleia), viveu com a maior probabilidade em Jerusalém, durante o século III a.C., e escreveu seu livro entre 250 e 200 a.C.
Pouco sabemos sobre esse tempo. Depois da conquista de Alexandre Magno (332 a.C.) a Palestina ficou um século sob o domínio dos Ptolomeus (301-200 a.C.), que se estabeleceram no Egito, tendo a cidade de Alexandria como capital. Seu estado era pequeno, mas unido, e sofria forte influência da cultura grega. Nesse tempo o número de judeus no Egito aumentou consideravelmente: de início foram como prisioneiros de Ptolomeu I; mais tarde para aí se dirigiam livremente, como mercenários ou imigrantes voluntários, em busca de oportunidades.
Alexandria tornou-se aos poucos o centro do mundo judaico, uma vez que os judeus eram mais numerosos fora do que dentro da Palestina. No Egito os judeus adotaram o grego como língua nativa e, a partir do século III a.C., foi feita a tradução para o grego, primeiro do Pentateuco, depois dos outros livros da Bíblia. A adoção da língua não só abriu um caminho de maior comunicação entre judeus e pagãos, mas também preparou o terreno para uma influência grega na mentalidade judaica.
O distrito da Judeia estava incorporado à província siro-fenícia, formando um Estado vassalo dos Ptolomeus. As relações com o suserano foram sempre pacíficas. O Estado judaico era governado pelo Sumo Sacerdote, cujo cargo passava de pai para filho. Além de chefe espiritual da comunidade, o Sumo Sacerdote foi aos poucos se tornando um príncipe secular, ao que logo se seguiu o desenvolvimento de uma aristocracia sacerdotal, que cada vez mais se consolidou em seus privilégios. Ao lado da classe sacerdotal nota-se a ascensão de algumas famílias, principalmente da família dos Tobias, fixada numa fortaleza na Transjordânia, mas cujo poder se estendia até Jerusalém, onde possuía um ofício no Templo. Os Tobias eram fiéis ao Estado ptolomaico, para o qual recolhiam os tributos e taxas que os judeus deviam pagar na Palestina, e comerciavam, principalmente escravos e cavalos. O poder dessa família cresceu a tal ponto que José Tobias tornou-se governador da Palestina no tempo de Ptolomeu III.
A situação do século III a.C. era, portanto, favorável ao desenvolvimento de uma sociedade poderosa e culta, com forte influência da cultura estrangeira, e também à formação de grandes contrastes sociais, bem refletidos no livro de Coélet. A alta sociedade, a cúpula dirigente e os altos funcionários se enriqueciam graças aos trâmites do sistema tributário e à agiotagem, às expensas da grande massa de agricultores e pequenos comerciantes, que se tornavam cada vez mais pobres. Coélet testemunha a corrupção das estruturas, a injustiça institucionalizada, a competição social, a desagregação das classes, a exploração dos pobres, e acima de tudo a crise dos valores.
A obra de Coélet deve, portanto, ser compreendida no contexto de dominações estrangeiras que já se protraíam por séculos, sem deixar esperança de qualquer emancipação. O passado áureo de Israel estava distante, e o futuro não apresentava grandes perspectivas. A situação social, por outro lado, mostrava contrastes em constante aceleração. Em meio a isso tudo, Coélet faz o balanço da vida num ambiente que não esperava mais grandes transformações. Sua reflexão vai ser uma análise crítica da experiência de sua época.
2. Uma busca fundamental
Coélet levanta uma pergunta fundamental, que o lança numa séria pesquisa: “que proveito tem o homem de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?” (1,3; 2,22; 3,9). Notemos bem que o autor se coloca do lado do povo que trabalha, questionando-se a respeito do proveito ou fruição que o povo tira do seu trabalho. A palavra trabalho aqui, em hebraico amal, exprime em geral o trabalho penoso do escravo, e é sinônimo de fadiga. Essa palavra é frequente no seu livro: aparece vinte vezes em forma de substantivo e treze em forma de verbo. Podemos dizer, portanto, que o problema do trabalho e da sua fruição está no centro de toda a pesquisa de Coélet.
2.1. O problema da felicidade
O homem busca sempre uma realização para sua vida, ou, em outros termos, busca a felicidade. Esta é, antes de tudo, o estar bem, sentir-se pleno, alegre, confortável e realizado. Mas, para chegar a isso, o homem deve discernir e encontrar o bem que o realiza no espaço e no tempo da sua vida. Assim, Coélet procura examinar criticamente as diversas buscas e soluções com que a sociedade do seu tempo procura enfrentar e resolver o problema da vida.
2.2. Tentativas frustradas
Coélet faz uma pesquisa completa e metódica sobre a condição humana e as tentativas de realização (1,12-14), chegando a um decepcionante resultado: “tudo é vaidade” (1,2), isto é, vazio, frágil, sem consistência e, portanto, ilusório. Assim, Coélet percebe que, nas tentativas de encontrar a felicidade, os homens não chegam à realização, mas à ilusão e, consequentemente, à alienação de si mesmos. A quais tentativas ele se refere? Praticamente a todas aquelas que se apresentam à fantasia humana: riqueza, poder, ciência, prazeres, status social, trabalho desenfreado em vista do enriquecimento etc. Uma leitura da obra mostra que tudo aquilo que o homem imagina como um absoluto que lhe traz segurança para resolver de vez o problema da vida é ilusório e alienante: o homem nunca satisfaz sua fome e sede de vida (1,8b; 6,7), e a segurança sempre lhe escapa, pois ele não é capaz de saber a sua hora, e o amanhã permanece imprevisível (3,11; 5,12; 6,12; 8,7-8; 9,12). Assim, por trás de todas as tentativas com que se procura possuir e segurar a vida, resta a frustração e a desilusão.
2.3. Uma crítica teológica
Onde Coélet quer chegar? Um olhar atento mostra que ele não está apenas criticando as tentativas em si, mas chega ao ponto nevrálgico que se esconde por trás delas: a autossuficência humana que quer a todo custo apoderar-se de um domínio cabal sobre a própria vida. Sua crítica básica dirige-se à pretensão que o homem tem de tornar-se um deus, capaz de discernir absolutamente e possuir a vida de uma vez por todas. Esta é a grande ilusão que se disfarça por trás de todas as frustrações, a suprema alienação que atinge o homem na raiz: deixar de viver como um ser relativo, aberto e dependente de relações, para tornar-se ilusoriamente um ser absoluto, fechado, capaz de bastar-se a si mesmo.
A crítica de Coélet chega, portanto, a ser uma crítica teológica. Em outras palavras, é a crítica do ateísmo prático do homem que imagina assegurar totalmente a vida através da riqueza e do seu instrumento usual, o poder. Sua avaliação negativa atinge, pois, a classe dominante que detém a riqueza e o poder, conseguidos à custa da exploração e da opressão do povo. Mas não só. Atinge também a classe inferior e dominada, enquanto esta procura freneticamente a ascensão social e, para consegui-la, alimenta as mesmas ilusões e procura usar os mesmos meios com que a classe dos ricos e poderosos continuamente se impõe e sustenta.
3. O Deus não manipulável
Às tentativas humanas de se tornar autossuficiente e possuir um domínio global sobre a vida Coélet opõe a apresentação de um Deus transcendente e soberano, absoluto e impenetrável nos seus desígnios (3,10-11; 11,5). Ele é o Senhor do universo e da vida, e detém o curso de todas as coisas, tanto no mundo da natureza como no mundo da história humana. Sobretudo é um Deus inteiramente livre, que não se vê obrigado a prestar contas de sua ação aos homens (3,14; 7,13). Ele colocou no coração do homem o senso da eternidade ou da realização plena (3,11), mas só ele conhece e dispõe dos momentos dialéticos da história e da vida (3,1-8; 8,6-8.16-17; 9,12).
3.1. O temor de Deus
A apresentação que Coélet faz de Deus abala e compromete inteiramente uma concepção autossuficiente que o homem possa ter de si mesmo. O que resta? Resta para o homem abrir-se a Deus numa relação de temor (cf. 3,14; 7,18; 8,12-13; 12,13). Isso não significa, porém, que a atitude fundamental do homem para com Deus deva ser a do medo. Como podemos ver na grande catequese que encontramos em Dt 8,6-20, temer a Deus é basicamente um reconhecimento que funda uma nova atitude do homem: trata-se de reconhecer que Deus é o único absoluto, e que o homem é um ser relativo e dependente, entregue completamente às mãos de Deus (9,1).
A relação de temor implica, portanto, uma consciência que leva a uma nova concepção de vida. O homem não se concebe mais como um ser autossuficiente e fechado, mas abre-se para viver de modo dependente e relativo. Dependente em relação a Deus, relativo em relação aos outros homens. Na dependência para com Deus o homem descobre que a vida é fundamentalmente um dom contínuo de Deus (2,24; 3,13; 5,18-19; 8,15; 9,9) e, em resposta, torna-se um ser aberto na gratidão para com Deus. O dom de Deus, porém, é para todos. Portanto, na relação com os outros homens o homem descobre a gratuidade: o dom de Deus é para todos (6,9) e deve ser partilhado entre todos (11,2). Isso relativiza o conceito de posse, impedindo que o homem acumule e se aliene com as riquezas, que pervertem a relação social através dos mecanismos de exploração e opressão.
3.2. O Deus presente
O cerne da apresentação que Coélet faz de Deus está em 3,15. Após considerar a vida como uma dialética de momentos que se sucedem de modo previsível para Deus, mas imprevisível para o homem (3,1-14), Coélet termina dizendo, literalmente: “Deus persegue aquilo que foge” (3,15b).
O que significa isso? Coélet mostra que a vida do homem é uma história feita de momentos transitórios, de instantes presentes que fogem em direção a novos instantes presentes. Deus é aquele que está presente a tudo, no espaço e no tempo, mas o homem só pode encontrá-lo no momento presente, no instante que passa. A relação contínua com Deus, portanto, supõe abertura contínua do homem ao presente fugidio. O momento presente torna-se, pois, o lugar do encontro com Deus que persegue os momentos presentes e, consequentemente, transforma-se em momento de eternidade.
Coélet descobriu o verdadeiro sentido da eternidade. Eternidade não é um tempo antes ou depois do tempo, nem um espaço aquém ou além do espaço. Eternidade para o homem é o momento presente do tempo e do espaço em que Deus, o eterno presente, se manifesta. Em outras palavras, a eternidade está na intensidade com que o homem vive o momento presente, onde Deus concede o dom da vida. Encontrar e responder a Deus, portanto, significa abrir-se para o presente que Deus dá, vivendo na gratidão para com Deus e na gratuidade para com os homens, repartindo o dom de Deus. É assim que o homem descobre e se realiza na porção de vida que Deus lhe dá.
4. A porção do homem é o presente
Para Coélet a única dimensão concreta e real da vida é o presente. A vida é uma história formada pela sucessão de momentos dialéticos em que o cruzamento do tempo (agora) com o espaço (aqui) forma o momento presente (3,1-8). O homem é alguém que vai passando de presente para presente. Assim, se quiser realizar-se ou ser feliz, o homem deve soltar as amarras que poderiam prendê-lo à ilusão de um passado que já se foi (saudade: 7,10) ou à de um futuro que ainda não existe (preocupação, ambição e tensão), para abrir-se ao momento fugitivo em que se encontra.
O presente é a “porção” ou “parte” (outros traduzem por “paga”, “prêmio”, “recompensa”) que o homem recebeu de Deus para realizar a sua vida. No livro de Coélet encontramos quatro textos em que o autor caracteriza essa “porção” reservada ao homem: 2,10; 3,22; 5,17-19 (ou 18-20); 9,7-10. O conteúdo dessas passagens permite-nos identificar outras quatro onde, embora sem a menção da palavra “porção”, encontramos o mesmo pensamento: 2,24-25; 3,12-13; 8,15; 11,9-10.
A interpretação dessas passagens muitas vezes deu lugar a mal-entendidos, pois em base a elas muitos estudiosos chegaram a classificar Coélet como oportunista ou hedonista, alguém que prega a filosofia conformista do “carpe diem”: viver aproveitando o prazer momentâneo e passageiro que a vida oferece. Isso, porem, é uma não compreensão do que o autor realmente quer dizer. Observadas atentamente, veremos que essas passagens caracterizam o momento presente com muito realismo. Trata-se de:
— alegrar-se, desfrutando o resultado do próprio trabalho (2,10);
— comer e beber, desfrutando o resultado do próprio trabalho (2,24-25);
— alegrar-se, passar bem, comer e beber, desfrutando o resultado do próprio trabalho (3,12-13);
— alegrar-se, desfrutando o resultado do próprio trabalho (3,22);
— comer e beber, desfrutando o resultado do próprio trabalho; alegrar-se, vivendo o real e não a lembrança (5,17-19);
— alegrar-se, comer e beber (8,15);
— comer e beber, vestir-se bem, perfumar-se, usufruir a vida com a mulher amada, desfrutando o resultado do próprio trabalho; fazer tudo o que está ao alcance (9,7-10);
— alegrar-se na adolescência, ser feliz na mocidade; seguir o impulso do coração e o atrativo dos olhos, com prudência (11,9-10).
Os textos apontam para coisas que o homem só pode realizar no presente. E Coélet é concreto. Sabe que o povo tem que trabalhar para viver. Por isso, a primeira dimensão de uma realização no presente é a alegria ou satisfação com o próprio trabalho, ou seja, sentir-se bem e recompensado pelas energias que despende. Essa alegria vem da possibilidade de desfrutar o resultado do trabalho, atendendo às diversas dimensões do próprio ser: primeiro a existência física, respondendo às necessidades básicas de comer e beber, para manter-se fisicamente vivo; depois o atendimento das dimensões psíquicas e espirituais (passar bem, vestir-se bem, perfumar-se, fruir a relação com as outras pessoas, desfrutar as possibilidades do período da vida em que se encontra etc.). Numa palavra, o presente é a dimensão em que o homem se faz e se refaz, continuamente.
O presente é, acima de tudo, o momento religioso, o instante privilegiado em que o homem se liga a Deus, pois o presente é dom de Deus (2,24; 3,13; 5,18-19; 8,15; 9,9). Momento de encontro e fruição da vida concreta, ele é também o momento do encontro com o Deus que concede o dom da vida no presente. Torna-se o tempo e o lugar da abertura e da gratidão do homem para com Deus, e abre uma perspectiva nova para toda a vida: viver em ação de graças para com Deus e, em consequência, descobrir a gratuidade para com o semelhante, repartindo o dom de Deus com os outros (11,2). Deste modo o homem se desliga da saudade em relação ao passado e da preocupação em relação ao futuro, para viver na confiança em Deus, que está sempre presente na limitação da vida humana, eternizando-a com momentos de vida plena. Vivida assim, a vida se torna uma grande celebração da graça e da confiança.
Isso não é tudo, porém. No centro da reflexão que Coélet faz sobre o presente está o problema do trabalho e da sua fruição.
5. Trabalho e fruição
Não é qualquer presente que realiza o homem. Coélet é realista. Ele afirma seis vezes que o único presente real é aquele em que o homem pode tirar proveito, usufruir o resultado do próprio trabalho [cf. 2,10; 2,24; 3,13; 3,22; 5,18-19 (ou 19-20); 9,9]. Coélet, portanto, deixa de ser um filósofo para se tornar um crítico social desde o momento em que se pergunta: “que proveito tem o homem de todo seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?” (1,3; 2,22; 3,9).
O centro da reflexão de Coélet detém-se, portanto, na vida do povo comum, que trabalha para subsistir e realizar-se. Ele sabe que trabalho sem a fruição aliena o homem, deixando-o no vazio (2,11.18-23; 4,7-8). Trabalho significa esforço para produzir uma obra, transformando a natureza para atender às necessidades da vida humana. Perdendo o acesso à obra que produziu o homem se aliena em três níveis: — em relação à natureza, porque esta não volta ao trabalhador de forma humanizada; — em relação a si mesmo, porque o trabalhador não recupera as energias despendidas e não pode atender às necessidades das diversas dimensões do próprio ser; — em relação ao outro homem, porque este também se encontra alienado de si mesmo, seja por não fruir do próprio trabalho, seja por fruir do trabalho de outro.
O homem pode ser roubado na fruição do seu trabalho. O que ele produziu não volta a Ele, mas vai para outro. Desse modo o homem se vê privado do presente, a única dimensão de realização concreta de sua vida. Já não pode alegrar-se com o trabalho, pois este se torna trabalho escravo; não pode manter sua vida física, e muito menos suas necessidades psíquicas e espirituais. Em consequência, ou foge para a saudade dos dias melhores (passado), ou para a preocupação, ambição e tensão (futuro). Sobretudo, perde a sua relação real com Deus, pois a presença de Deus como dom no presente lhe é roubada, e daí os derivativos alienantes das formas mágicas de relação com Deus. Por fim, perde a chance de viver a vida como um jogo de graça e confiança, e sua relação com os homens se perverte, deixando de ser relação de gratuidade e partilha, para se tornar dependência servil.
Coélet denuncia a problemática social do seu tempo. Trata-se de um mundo de desigualdade, onde há ricos que vivem fartamente à custa dos pobres (6,12; 10,19), e onde a relação social se perverte em competição e rivalidade (4,4). A sociedade é uma pirâmide de injustiça, fabricada com a exploração do pobre e a opressão do fraco, numa escala que se perde de vista (6,8; 7,7). As estruturas de justiça, que deveriam zelar e defender o direito do pobre, estão corrompidas (3,16;7,7) e tornam-se o estimulo para a injustiça institucionalizada como ordem (7,15; 8,11.14).
6. Conclusão: uma questão aberta
Coélet parece ter-se limitado a constatar com perplexidade as contradições internas da condição humana mergulhada numa sociedade injusta, sem chegar a qualquer conclusão, a não ser a de que “tudo é vaidade”, isto é, sem consistência (12,8). Aos seus contemporâneos sua obra deve ter parecido tão pessimista que um de seus discípulos acrescentou um apêndice, elogiando o autor e acrescentando “guarda os mandamentos” de Deus (12,9.14).
O pensamento de Coélet, porém, permanece aberto, num questionamento contínuo para os homens que vivem em condições semelhantes à que ele viveu. A julgar pelos escritos posteriores, e principalmente pelo NT, as condições não mudaram. Pelo contrário, a dominação estrangeira tornou-se mais intensa e os contrastes sociais se aceleraram, cada vez mais clamando por um julgamento de Deus, já acenado por Coélet (3,17; 11,9) e retomado por seu discípulo (12,14).
O NT, principalmente nos evangelhos, abre-se com a perspectiva do julgamento e do Reino, que se tornam presentes na pessoa e na ação de Jesus Cristo. Segundo Mateus, a missão de Jesus é “cumprir toda a justiça” (Mt 3,15), vencendo as tentações que deformam a Sociedade (Mt 4,1-11), para anunciar o Reino que vem trazer a justiça e a felicidade esperada pelos pobres e oprimidos (Mt 5,1-12).
O texto de Mt 6,25-34 (cf. Lc 12,22-32) parece retomar o pensamento de Coélet. Aí se fala das necessidades mais básicas da vida, como o comer, o beber e o vestir-se. Mas o evangelho salienta que de nada adianta preocupar-se com essas coisas. Deus já as concedeu a todos os homens assim como providencia continuamente para a vida de todos os seres da natureza. Se o homem não recebe os dons de Deus como os pássaros e os lírios, é porque estes dons estão sendo roubados pela estrutura de uma sociedade injusta, que explora e oprime. O que fazer? Realizar uma busca fundamental: buscar, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça (Mt 6,33). E isso significa: lutar aqui e agora por uma sociedade justa e fraterna, onde os dons de Deus possam ser usufruídos por todos. Tal coisa, porém, só é possível numa busca de conversão e transformação das estruturas, para formar um projeto alternativo de sociedade, onde o espírito de posse se transforme em espírito de gratuidade e partilha, e onde a busca de poder dê lugar à participação na fraternidade. Partilha e fraternidade são os eixos básicos do Reino que se concretiza no meio dos homens através da ação de Jesus Cristo.
Desse modo o livro de Coélet recebe uma resposta à questão perplexa da busca da vida e felicidade. Vida e felicidade não são coisas ou estados que o homem pode procurar e encontrar. São antes o clima de uma nova sociedade, onde se vive o que é justo, isto é, o desígnio de Deus, que é vida e dá vida para todos. Uma sociedade capaz de ser grata para com Deus e gratuita nas suas relações, repartindo fraternalmente todos os dons para o benefício de todos. Tal sociedade não existe, mas é uma utopia, um horizonte para o qual caminhamos através de uma luta histórica que busca concretizar essa utopia em modelos mais justos e igualitários de convivência humana.
A todos os que buscam a vida e a felicidade, portanto, fica um convite aberto ao compromisso: “Buscai em primeiro lugar o Reino e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,33).
Ivo Storniolo