Publicado em número 135 - (pp. 33-39)
Meditações bíblicas sobre a Eucaristia
Por Pe. Luís Alonso Schökel, sj
(As meditações I-II, III-IV e V-VI foram publicadas também em 1987, respectivamente, nos números 132, 133 e 134 de Vida Pastoral.)
VII. EPICLESE
1. A palavra epiclese é um substantivo grego que vem do verbo epikaleo, que significa chamar, invocar. Em sentido técnico, significa uma invocação a Deus Pai ou a Deus Espírito. Na exposição que segue interessa particularmente a ação do Espírito: podemos invocar o Pai para que envie o Espírito ou, então, invocar o Espírito para que venha. Nós o invocamos em ordem a uma ação que está acima da nossa capacidade, que compete ao próprio Deus.
Costumamos dizer que o sacerdote consagra; mas é preciso cuidado para não entender mal a expressão. Ninguém poderá afirmar que um homem, mesmo sendo sacerdote, é a causa eficiente que transforma o pão e o vinho no corpo e sangue de Cristo. O sacerdote é um ministro, e Deus age através de seu ministério. Mais ainda, o sacerdote é ministro enquanto membro qualificado da Igreja. Uma interpretação ingênua poderia levar-nos a uma concepção mágica da ação sacramental ou eucarística.
Um dia se debateu, ainda em tom de controvérsia, a fórmula autêntica da ação sacramental. Deve-se dizer “eu te absolvo, te perdoo” ou “o Senhor te absolva, te perdoe”? Paralelamente: deve-se dizer “isto é o corpo de Cristo” ou então “que o Senhor transforme isto no corpo de Cristo”? Ora, como na Eucaristia ordinariamente se encontram duas fórmulas, uma narrativa “isto é…”, outra invocativa “que isto seja”, a controvérsia pode ser colocada em outros termos. Qual das duas é a fórmula consecratória? Qual é essencial e qual é acessória? A controvérsia dividiu Igrejas orientais e Igreja ocidental: os orientais defendiam a invocação ou epiclese, os ocidentais defendiam a narração ou anámnesis. Duas fórmulas linguísticas, enunciado ou petição, condensavam duas visões teológicas.
As controvérsias às vezes servem para esclarecer pontos teológicos e fazer-nos progredir em nossa compreensão do mistério. As controvérsias podem degenerar em polêmica, endurecendo as posições contrárias e fazendo com que cada parte esqueça um aspecto da realidade. Quero servir-me da controvérsia simplesmente para introduzir o tema, porque entre nós não é frequente comentar ou meditar um aspecto fundamental da Eucaristia. Em meus livros de cabeceira, que já citei e recomendei, o leitor poderá encontrar informação mais rica e discussão mais profunda. Sánchez Caro nos aponta a aparente ausência de “anámnesis” ou enunciado narrativo em algumas liturgias (por exemplo, p. 137). Gesteira nos oferece uma excelente exposição a partir da página 596.
Nas novas orações litúrgicas, a epiclese está mais explícita e clara do que na oração anterior e tridentina. Tentarei iluminá-la com alguma passagem do Antigo Testamento.
2. Ezequiel e o Espírito
Nenhum texto mais desenvolvido ou sugestivo do que a visão de um profeta no desterro. A vida no desterro da Babilônia e a volta à pátria se radicalizam na oposição extrema de morte e vida: morte quase mineral de ossos calcinados, vida do espírito dinâmico e animador. O profeta, por ordem de Deus, tem que conjurar ou invocar o espírito. Releiamos um texto conhecido:
“A mão de Iahweh veio sobre mim e me conduziu para fora pelo espírito de Iahweh e me pousou no meio de um vale que estava cheio de ossos. E aí fez com que eu me movesse em torno deles de todos os lados. Os ossos eram abundantes na superfície do vale e estavam muito secos. Ele me disse: ‘Filho do homem, porventura tornarão a viver estes ossos?’ Ao que respondi: ‘Senhor Iahweh, tu o sabes’. Então me disse: ‘Profetiza a respeito desses ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra de Iahweh. Assim fala o Senhor Iahweh a estes ossos: Eis que vou fazer com que sejais penetrados pelo espírito e vivereis. Cobrir-vos-ei de tendões, farei com que sejais cobertos de carne e vos revestirei de pele. Porei em vós o meu espírito e vivereis. Então sabereis que eu sou Iahweh’. Profetizei, de acordo com a ordem que recebi. Enquanto eu profetizava, houve um ruído e depois um tremor e os ossos se aproximaram uns dos outros. Vi então que estavam cobertos de tendões, estavam cobertos de carne e revestidos de pele por cima, mas não havia espírito neles. Então me disse: ‘Profetiza ao espírito, profetiza, filho do homem, e dize-lhe: Assim diz o Senhor Iahweh: Espírito, vem dos quatro ventos e sopra sobre estes ossos para que vivam’. Profetizei de acordo com o que ele me ordenou, o espírito penetrou-os e eles viveram, firmando-se sobre os seus pés como um imenso exército” (Ez 37,1-10).
É o alento ou espírito quem vivifica; o profeta é ministro da palavra de Deus, executor de uma ordem. Embora se trate de uma visão, não de uma ação litúrgica, podemos estender seu alcance simbólico a outros contextos, também ao litúrgico que tentaremos compreender.
Em uma oração penitencial o penitente invoca: “cria em mim um coração puro… que um espírito generoso me sustente” (Sl 51,12.14). Em forma enunciativa diz um hino à criação: “Escondes tua face e eles se apavoram, retiras sua respiração e eles expiram, voltando ao seu pó. Envias teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra” (Sl 104, 29-30).
Bastaria mudar o enunciado em petição para obter uma epiclese.
3. Epiclese de consagração
Em princípio poderíamos introduzir quatro invocações ao Espírito na celebração eucarística: a primeira na liturgia penitencial, a segunda na liturgia da palavra, a terceira para a consagração, a quarta para a comunhão. As duas primeiras não aparecem explícitas nos textos antigos ou modernos. Os peritos nos dizem que a terceira e a quarta formam na realidade uma só, articulada em dois aspectos. Assinalam que em tempos passados estavam unidas e lamentam que o texto atual as tenha separado. Como meu intento é explicar diferenciando, vou tomar os textos novos como são usados atualmente. A unidade de consagração e comunhão aparecerá em diversas ocasiões.
Falei dos textos novos, porque no único cânon que se usava antes do Concílio é muito difícil descobrir a epiclese. Talvez tenha influenciado negativamente a controvérsia com as Igrejas orientais. Poderíamos rastreá-la nestas palavras: “Bendize e aceita, Pai, esta oferenda, fazendo-a espiritual”. No adjetivo “espiritual” podemos entrever a presença e a ação do Espírito; a súplica é uma invocação ao Pai: a ele cabe receber a oferenda de nossos dons e transformá-los. Outros a encontram antes, nas palavras que seguem imediatamente o Sanctus: “Pai de misericórdia, a quem sobem nossos louvores, nós vos pedimos por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, que abençoeis estas oferendas apresentadas ao vosso altar”.
É uma invocação ao Pai sobre nossos dons. À nossa “bênção” (beraká, dom) responda a bênção do Pai. Esta bênção consistirá na transformação dos dons. O tema do Espírito dificilmente pode ser percebido nessas palavras.
Nos novos textos (que em grande parte são mais antigos) a epiclese soa com clareza. O cânon (ou anáfora ou oração) segundo é o mais antigo e segue de perto o texto de Hipólito. Já o prefácio ou prólogo confessou que o Filho de Deus, a Palavra, “se fez homem por obra do Espírito Santo”. Depois do Sanctus, suplica: “Santificai, pois, estas oferendas, derramando sobre elas o vosso Espírito, a fim de que se tornem para nós o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso”. A súplica se dirige ao Pai pedindo o dom do Espírito. “Santificar” equivale a consagrar, é fazer santo ou sagrado. Pedimos que nossos dons deixem de ser pão e vinho ordinários e comecem a ser uma realidade santa, o corpo e o sangue do Senhor glorificado. Como se deve realizar o mistério? Pela efusão do Espírito. O termo efusão ou derramamento procede do Antigo Testamento. Embora nos pareça pouco coerente “derramar um vento”, em hebraico a expressão sapak ruh é conhecida (o verbo pode levar como complemento líquidos, sólidos e gasosos):
“Derramarei o meu espírito sobre a casa de Israel” (Ez 39,29).
“Depois derramarei meu espírito sobre todos” (Jl 3,1-2).
“Derramarei um espírito de graça e de súplica” (Zc 12,10).
Como dizemos efusão, poderíamos dizer infusão; também nos textos citados de Joel e Zacarias se poderia ler “infundirá”. É um modo de abordar o mistério e contorná-lo mentalmente.
Além disso devemos notar a concentração trinitária da fórmula: pedimos ao Pai que envie o Espírito para que torne presente o Filho. Seria necessário meditar e explicar de vez em quando fórmulas tão densas e ricas. O sacerdote pronuncia a epiclese depois do Sanctus (que não existia nas orações eucarísticas mais antigas). Com as palavras do livro de Isaías toda a comunidade proclamou a santidade de Deus (cf. Is 6,3). Agora, por meio do presidente da liturgia, pede que essa santidade se ocupe e se manifeste em santificar, o que acontecerá quando o Espírito Santo soprar ou se infundir em nossos dons.
A anáfora terceira o formula nestes termos: “Por isso, nós vos suplicamos: santificai pelo (mesmo) Espírito Santo as oferendas que vos apresentamos para serem consagradas, a fim de que se tornem o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso”. Adjetiva “o mesmo” Espírito, porque imediatamente antes confessou que o Pai, “com a força do Espírito Santo dais vida e santidade a todas as coisas”. A ação vivificadora que Ezequiel sugestivamente descrevia continuará na ação santificadora; e um momento culminante será a “santificação” ou consagração dos dons. Nós os “separamos” do consumo ordinário, os pusemos de lado e os trouxemos como dom humilde e sentido. À nossa “beraká” responde a consagração pelo Espírito.
A anáfora quarta é criação moderna, que utiliza muitos elementos antigos e tradicionais e neles se inspira. É a mais ampla e solene, e também temos que escutá-la desde os parágrafos que seguem o Sanctus. A ação do Espírito é proclamada em dois momentos: um é a encarnação, outro o Pentecostes. Em ambos o Filho é sujeito: “concebido do Espírito Santo… enviou de vós, ó Pai, o Espírito Santo, como primeiro dom aos vossos fiéis, para santificar todas as coisas, levando à plenitude a sua obra”.
O Espírito é o primeiro e melhor dom. Dom dinâmico que começou e não deve deter-se até santificar ou consagrar tudo. Embora o texto não o diga expressamente, a consagração de todas as coisas se fará segundo a categoria e função de cada criatura. O centro é a humanidade e, dentro dela, esse grupo convocado que é a Igreja.
Com esta preparação, a anáfora chega à epiclese, formulada assim: “Que o mesmo Espírito Santo santifique estas oferendas, a fim de que se tornem o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso”.
Poderíamos continuar citando as novas anáforas que o Missal oferece, e o resultado se confirmaria. A conclusão, acima de qualquer controvérsia, é que a Eucaristia é uma ação intensa do Espírito na Igreja, talvez a mais intensa. Polarizados pelo corpo de Cristo entre nós, educados numa veneração cordial (e um pouco polêmica?) dessa presença prolongada, não esqueçamos a ação do Espírito. Poderíamos dizer: nada mais carismático do que a celebração eucarística. Se o ritmo e movimento da liturgia não dá espaço para meditar, se a atenção se cansa e não percebe o momento da epiclese, serão necessários momentos e tempos suplementares para recuperar a consciência cristã do fato.
4. Epiclese de comunhão
Já disse que originalmente não são duas epicleses, mas duas partes de uma só, atualmente separadas pelo relato da consagração.
Devemos partir de um princípio: Corpo de Cristo é o dom santificado ou consagrado, mas não menos é Corpo de Cristo, embora de outro modo, a Igreja. A isto acrescento outra consideração: da mesma raiz grega vêm a palavra “epiclesis”, invocação, e a palavra “ekklesia”, convocação. A Igreja, convocada pela palavra do evangelho, invoca agora o Espírito para que santifique-consagre os dons e os ofertantes, fazendo-os, ambos, Corpo de Cristo.
Não é que a mudança aconteça agora radicalmente, pela primeira vez. Esse grupo humano que forma uma Igreja local já é corpo de Cristo, e só porque o é pode celebrar a Eucaristia (que não é uma devoção individual). Quando começamos dizendo: “A graça e a paz..”, já existe comunidade cristã, já respondeu à convocação radical atualizando-a nesta reunião. Na Eucaristia exprime-se, consolida-se e se robustece a comunidade cristã ou messiânica, que já existe; portanto, não começa a ser Corpo de Cristo. Contudo, o Corpo pode crescer em estatura, em coesão, em vitalidade. Como Jesus em Nazaré “ia crescendo, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria, e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2,40); “e Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52).
Em português dizemos “tomar corpo”. A comunidade cristã que já é Corpo de Cristo, deve tomar corpo, fazendo-se cada vez mais “Corpo de Cristo”, “até alcançar a idade adulta, o desenvolvimento que corresponde ao complemento do Messias” (Ef 4,15). Cristo está “de corpo presente”, mas vivo nos dons consagrados, para estar “de corpo inteiro” em sua comunidade. E é como se se estabelecesse um “corpo a corpo” pacífico no abraço de dons e comunidade, corpo e corpo de Cristo.
Como se realizará a transformação? Quem é o agente? Quando Samuel se dispõe a ungir a Saul como rei, explica-lhe em seguida o que vai acontecer: “Então Samuel pegou o frasco de azeite e o derramou sobre a cabeça de Saul, beijou-o e disse-lhe: O Senhor te unge como chefe de sua herança… Então o espírito de Iahweh virá sobre ti, e entrarás em delírio com eles e te transformarás em outro homem. Quando esses sinais te sucederem, age de acordo com as circunstâncias, porque Deus está contigo” (1Sm 10,1.6-7).
No livro dos Juízes descrevem-se alguns empreendimentos violentos de Sansão; e uma frase retorna como estribilho: “O espírito de Iahweh veio sobre ele e, sem nada ter nas mãos, despedaçou-o como se fosse um cabrito; mas não contou a seu pai nem a sua mãe o que tinha feito” (Jz 14,6). “Então o espírito de Iahweh caiu sobre ele e se apossou dele, e ele desceu a Ascalon, matou trinta homens, tirou-lhes as roupas de festa e entregou-as aos que lhe tinham apresentado a solução do enigma” (14, 19). “O espírito de Iahweh veio sobre Sansão: as cordas que amarravam seus braços se tornaram como fios de linho queimados ao fogo, e os laços que o prendiam se soltaram das suas mãos” (15,14). Saul é o chefe legítimo da comunidade, Sansão um franco-atirador contra os filisteus opressores. O que nos interessa desses exemplos é essa invasão do espírito, que transforma o homem. O mesmo pode transformar uma comunidade: “Procurai conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito…” (Ef 4,3).
5. Fórmulas litúrgicas
A anáfora ou cânon segundo o formula assim: “E nós vos suplicamos que, participando do corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só corpo”.
“Congregar” (= reunir), vem do grego grex = grei, rebanho que o pastor mantém reunido e protege da dispersão. Sem empregar a palavra “corpo”, menciona a “unidade”; porque um corpo é uma unidade orgânica, não aglomeração ou justaposição. A Eucaristia pressupõe a união dos membros; seria contradição celebrá-la quando a unidade está rompida. Com a Eucaristia, a unidade existente se exprime e se reforça.
Em outro capítulo falei da nova circulação do sangue no corpo de Cristo, que é a Igreja. O sangue que circula leva o oxigênio a cada membro, a cada tecido, a cada célula; e o sangue eucarístico vai levando o Espírito a todos os membros da comunidade, vitalizando e estreitando a unidade.
A anáfora ou oração terceira abre logo portas e janelas à penetração do Espírito. Fazendo ponte com o Sanctus, como vimos, anuncia-se: “Na verdade, vós sois santo, ó Deus do universo, e tudo que criastes proclama o vosso louvor, porque, por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, e pela força do Espírito Santo dais vida e santidade a todas as coisas e não cessais de reunir o vosso povo…”. Confessa-se o dinamismo, “a força” do Espírito, como fonte de vida e consagração universal, como centro que congrega sempre de novo a comunidade. Impelidos por este vento que arrasta sem dispersar, escutamos a epiclese: “Olhai com bondade a oferenda da vossa Igreja, reconhecei o sacrifício que nos reconcilia convosco e concedei que, alimentando-nos com o corpo e o sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito”.
A comunidade vai receber alimento, comida e bebida, que a fortalecerá como organismo; através do corpo e do sangue de Cristo a comunidade se enche do Espírito que Cristo glorificado sempre comunica à sua Igreja; desse modo a comunidade forma com Cristo Cabeça um só corpo e um só espírito. A comunhão é para alimentar a unidade não principalmente para santificar indivíduos. A unidade, que se exprime como reunião externa, nasce realmente do interior, de um alento ou Espírito que a mantém compacta e viva. A epiclese invoca o Espírito para que transforme um grupo de homens numa comunidade, cristã, corpo de Cristo.
A anáfora quarta confirma o que dissemos: “Concedei a nós que vamos participar do mesmo pão e do mesmo cálice que, reunidos pelo Espírito Santo num só corpo, nos tornemos um sacrifício vivo para o louvor da nossa glória”.
Um é o pão e um é o cálice, muitos são os que compartilham. Compartilhar já é um ato de unidade. Sobrevém a invasão do Espírito e a unidade se realiza eficazmente a partir de dentro.
Passamos revista a três variações de epicleses sobre a consagração e outras três sobre a comunhão. Uma conclusão importante é a função primordial do Espírito na realização da Igreja como corpo de Cristo. Serão convenientes e necessários instrumentos externos de organização para que a nossa Igreja seja um corpo social; mas não esqueçamos que o primário, o decisivo, é a ação do Espírito. Se isto falta, seria inútil planejar, organizar, emanar normas e regras, prever e controlar tudo. Teríamos uma empresa-modelo, uma sociedade exemplar. Mas uma comunidade de homens é corpo de Cristo quando está alentada e animada pelo Espírito de Cristo. E esse é o sentido da epiclese eucarística.
6. Epiclese da penitência?
Já indiquei que a fórmula de absolvição penitencial (não a chamo sacramental) tem forma de invocação ao Pai ou a Deus Todo-poderoso. O sacerdote não diz “eu perdoo vossos pecados”, mas suplica que Deus “tenha compaixão de nós, perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna”. Invoca em nome da comunidade eclesial, incluindo-se entre os necessitados de perdão. Mas não há menção do Espírito.
Dois textos bíblicos nos ajudarão a preencher a lacuna. O primeiro é tirado da oração penitencial mais famosa do Antigo Testamento, o Salmo 51. Depois de uma confissão reiterada de pecados, delitos, culpas e maldades, o penitente invoca uma nova criação de Deus: “Cria em mim, ó Deus”. Nesta criação, como na primeira, estará presente o espírito: “Renova um espírito firme no meu peito… não retires de mim teu santo espírito… que um espírito generoso me sustente” (vv. 12.13.14). É a mais bela invocação penitencial ao espírito em toda a Bíblia (comentei-a em meu livro Treinta Salmos — Poesía y oración, pp. 217ss). Um espírito que dê consistência por dentro, contrapondo-se aos “ossos quebrantados”, espírito firme que substitua o “espírito quebrantado” (= triturado, contrito). Um espírito “santo”, que o arrebata à esfera divina, o consagra, substituindo e compensando “sacrifícios” rituais. Um espírito generoso, que seja um novo princípio dinâmico de vida e ação: não fora, mas dentro, não uma lei, mas uma espontaneidade generosa.
Esta petição tem ressonância significativa na profecia de Ezequiel: “Borrifarei água sobre vós e ficareis puros; sim, purificar-vos-ei de todas as vossas imundícies e de todos os vossos ídolos imundos. Dar-vos-ei um coração novo, porei em vosso íntimo um coração novo, tirarei de vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei no vosso íntimo o meu espírito e farei com que andeis de acordo com os meus estatutos e guardeis as minhas normas e as pratiqueis. Então habitareis na terra que dei a vossos pais: sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus” (36,25-28).
Tomamos o segundo texto do Evangelho de João. A conexão do Espírito com o perdão é explícita: “Dizendo isto, soprou sobre eles e disse-lhes: Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais não perdoardes, ser-lhes-ão retidos” (20,22). Não há sacramento se não há perdão; não há perdão sem a ação do Espírito.
7. Epiclese da Palavra?
Também não está explícita nos textos litúrgicos. Uma relíquia de epiclese
poderia ser apreciada nas palavras com que o presidente abençoa o leitor: “Que o Senhor esteja em teu coração e em teus lábios para que possas anunciar dignamente o santo evangelho”. Podemos pensar que a presença no coração e nos lábios é presença do Espírito.
A razão é clara e simples. Chamamos a Bíblia “palavra inspirada”. O adjetivo significa que a palavra se modela e se pronuncia soprada e modelada pelo Espírito. Sob a sombra e o impulso desse alento divino, uma experiência humana se transforma em palavra de comunicação; por isso é palavra inspirada. A estrutura linguística que é um texto conserva-se em uma notação ou registro convencional, a escritura, por escrito. Por isso a chamamos “sagrada escritura”. Mas a notação não é a palavra, como a partitura não é a música. A notação conserva o texto, a escritura linguística contém em potência o alento com que brotou. A palavra deve ser atualizada para que volte a existir de fato, no leitor e nos ouvintes. Mas deve brotar impelida pelo mesmo alento e deve ser recebida em sintonia com ele.
A constituição conciliar Dei Verbum nos diz que a Escritura “deve ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita” ou composta (Dei Verbum, 12). A liturgia cerca a leitura com certo aparato, como que indicando que não se trata de uma leitura qualquer. No final a assembleia corrobora o que foi dito: “Palavra do Senhor”. Teria sido possível inserir no princípio uma epiclese. A coisa ainda pode ser feita em alguma liturgia ou paraliturgia da palavra.
Pelo menos tenhamos consciência dessa realidade. Na palavra inspirada é o Espírito que se comunica feito palavra, nos invade, nos penetra, nos unifica na escuta compartilhada de um texto único.
Concluo esta reflexão sobre a epiclese repetindo o que já disse: não há nada mais carismático do que a celebração da Eucaristia.
Pe. Luís Alonso Schökel, sj