Qual a relação entre lei e sacramento? Será que é a lei que confere o caráter sacramental a gestos humanamente significativos? E a eficácia sacramental estará ligada apenas à observância da lei e à correta execução do rito? Quando se pensa no matrimônio as questões se agravam: seu caráter sacramental inscreve-se no horizonte de uma lei natural, válida universalmente (perspectiva da filosofia essencialista), ou ela brota da escolha de conferir a uma regra cultural (portanto histórica) um caráter sacramental? E a eficácia do matrimônio enquanto sacramento estará diretamente ligada à sua proteção por uma lei civil?
A resposta a estas perguntas encaminha toda uma pastoral matrimonial: ela pode reduzir-se a campanhas a favor da família de cunho moralista; ou então a campanhas tipo “guerra santa” contra divórcio, pornografia e até a favor da censura. Ou então, pode ser realmente uma pastoral profética, isto e, guiada pela perspectiva do Reino de Deus, do qual o matrimônio é sinal e presença.
Um olhar sobre a legislação brasileira do casamento além de mostrar o caráter relativo da lei, fará ver que ela não está presa a interesses ou normas emanadas de uma visão metafísica, mas responde a interesses sociais concretos, mais concretamente a interesses de classes. Ela nos coloca a inevitável pergunta: a que interesses de classe nossa pastoral familiar responde?
I. LEI: ENTRE A UTOPIA E A NOSTALGIA
Toda a literatura preocupada com as transformações revolucionárias da sociedade — cristã ou não — vem recuperando o tema da utopia. Tanto no campo marxista, onde um dos seus representantes contemporâneos diz que a utopia não é sinônimo do impossível, antes pelo contrário: a partir do momento em que se consegue imaginar uma sociedade coerente, é porque esta é possível[1]; como no campo cristão, onde a “utopia do Reino” é o horizonte referencial de toda prática evangélica libertadora.
Em certo sentido toda a vida sacramental da Igreja deve se enquadrar dentro desta visão “utopista” em seus objetivos e em sua prática. Os sacramentos têm um caráter utópico enquanto cristãos, comprometidos na sua prática cotidiana com a realização histórica da utopia do Reino — já presente pelo Espírito de Jesus — dão a esta utopia uma eficácia sacramental histórica e não apenas simbólica. Acreditar que a celebração ritual é por si mesma historicamente eficaz é magia. A celebração (rito) é eficaz enquanto expressa, realiza e antecipa ritualmente aquilo que na práxis da comunidade é eficaz em termos de realização e antecipação da utopia do Reino.
Entretanto, para muitos, a utopia tem outro sentido: ela se converte numa regressão ao passado. Sonham com todos os homens frequentando ou recebendo sacramentos e a salvação. Para eles, a utopia do Reino se reduz à nostalgia da cristandade, onde todos os recursos são legítimos para realizá-la, desde medo do inferno até as alianças com o Estado e suas sequelas (violência, inquisição, braço secular, lei civil etc.).
Este tipo de concepção do Reino de Deus é muito mais frequente do que parece. Sonhar com um Estado “católico”, com constituição “católica”, com instituições que “preservem o caráter cristão do nosso povo” encobre quase sempre a saudade de uma cristandade passada, que no seu limite chega a identificar “Império Cristão” com “Reino de Deus”.
Estas reflexões vêm a propósito do tema família e do seu caráter sacramental, expresso pelo matrimônio como sinal e realização visível da união de Deus com seu povo. É claro que neste sentido o matrimônio inscreve-se no horizonte utópico, ele é sacramento enquanto visibiliza a nova humanidade efetivamente reconciliada; e só o faz quando a família está a serviço da missão de reconciliar os homens. Fica claro que aqui está implícita outra questão: o que é reconciliar numa sociedade de classes que produz “ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”?[2]
Esquece-se isso quando se tenta sacramentalizar pela força um contrato reconhecido pele lei civil. Um exemplo recente foi a luta contra o divórcio, na qual tantos agentes de pastoral consumiram inutilmente suas energias. Tudo se passa como se a lei do divórcio dependesse unicamente da boa ou má vontade dos legisladores, do oportunismo dos legisladores à cata de votos ou popularidade; ou, pior ainda, como se a aprovação da lei representasse uma violência contra os “sentimentos cristãos do povo brasileiro”.
Pensar assim é ignorar que tanto as leis quanto a própria expressão religiosa integram a superestrutura ideológica da sociedade e não têm vida autônoma frente às condições econômico-políticas de uma formação social. E enquanto tais estão a serviço de interesses de classe bem concretos.
Uma visão da legislação e costumes matrimoniais em suas várias etapas mostrará isso claramente e permitirá encarar com mais lucidez e discernimento o “problema” da família que não se reduz simplesmente a um capítulo da moral.
Olhando-se a família patriarcal, onde a legislação religiosa e os padres encarregados de aplicá-la devem se dobrar às exigências do senhor de engenho que, além da mão de obra, precisa da virgindade de sua filha branca para negociar um bom casamento; na legislação imperial, que em nome de proteção submete a Igreja aos desígnios do Estado e onde o casamento religioso, único reconhecido, é um aspecto a mais nesta sujeição, mais do que expressão do “caráter cristão” do povo; e nas constituições posteriores, onde o tema do divórcio ficou sempre como um trunfo nas mãos do Estado nas suas negociações com a Igreja. Um quadro mais detalhado desta situação é dado a seguir.
II. FAMÍLIA PATRIARCAL
A situação da família patriarcal mostra a presença de pouca legislação explícita e de costumes matrimoniais onde a rigidez e a tolerância caminham lado a lado, de acordo com os interesses sociais envolvidos.
A Casa Grande é dominada pelo senhor, seu centro. Derivado da tradição lusitana e do Direito Romano, o “Direito” matrimonial vigente tinha por fim manter intactos e sem divisão os bens da família senhorial. Assim, só o filho mais velho herdava a propriedade, a não ser que o pai determinasse o contrário através de testamento. Os outros filhos ou parentes são simples agregados, subordinados ao patriarca. Os poderes do pai, praticamente ilimitados, colocam em suas mãos a decisão sobre casamentos; ele a toma sempre em troca de favores de caráter político, territorial e pessoal.
Moral sexual e interesses materiais
A moral sexual vigente estava ligada a esses interesses. De um lado a rigidez desumana para com a “sinhazinha”, a filha branca do senhor de engenho, que devia manter-se virgem a qualquer custo. Isso porque seu valor era alto em negociações casamenteiras, já que havia poucas mulheres brancas na colônia e os portugueses raramente vinham ao Brasil com sua família. Os colonos mantinham relações sexuais com as escravas, mas evitavam a todo custo o casamento, que como veremos à frente, poderia significar para elas a possibilidade de alforria. Como tinha alto preço, a filha branca era guardada numa espécie de prisão dentro da casa grande — um quarto no centro da casa, muitas vezes sem nenhuma janela. De lá saía ocasionalmente, muito bem guardada e protegida; ou então definitivamente, entregue em casamento a um desconhecido que por ela pagava bom preço.
Ao lado desta rigidez, a outra face da moeda: a promiscuidade sexual, expressa na exploração sexual das escravas, obrigadas a servirem aos caprichos eróticos dos filhos do senhor. Se não as conquistavam pela força, faziam-no às custas de presentes — roupas e alimentos. O jesuíta Jorge Benci, defensor da escravidão, denunciava em tom moralizante as senhoras que não davam o que vestir às suas escravas e no entanto as queriam bem vestidas; obrigavam-nas assim a “comprar vestidos a preço de pecado e às custas de ofensas que cometem contra Deus”.
Ou então a tolerância excessiva que chegava a exasperar os jesuítas: os colonos se amancebavam com índias, mulatas e mesmo com as pretas. Manoel da Nóbrega chegou a sugerir um remédio para a situação: recomendou em carta ao rei que fossem enviadas de Portugal “mulheres erradas” que ainda tivessem um pouco de vergonha e aceitassem o casamento com colonos, que, de acordo com um cronista da época, tinham como pretensão “comer do mantimento da terra e ter quatro mulheres”. A Igreja, batizando os filhos destas uniões, praticamente as legitimava. Diz Thales de Azevedo que “uma das explicações para a tolerância brasileira para com os nascimentos ilegítimos é, possivelmente, a atitude da Igreja, desde o período colonial, legitimando em casamentos sacramentais antigas daquelas uniões concubinatórias, antes mesmo que o governo luso se decidisse a liberalizar, somente no meado do século XVIII, a legislação que proibia o casamento de brancos com negros e mesmo com índios. Na verdade, os filhos ilegítimos e mesmo os sacrílegos, como as uniões de que os mesmos derivam, nunca foram olhados no Brasil com o horror que seria de esperar de um povo cristão”[3].
Padres, escravos e índios
A própria carreira eclesiástica subordinava-se aos interesses dos senhores de engenho, a cujo serviço o padre secular se colocava. Os jovens, muitas vezes a contragosto, eram encaminhados ao seminário de Olinda. No exercício do ministério, sua vida em nada diferia da dos outros colonos. Como eles, “tinham muitos filhos, dedicando-se a negócios, fazendo vista grossa para o hábito pouco católico da população”[4].
O quadro da vida patriarcal vai da rigidez à flexibilidade morais quase ilimitadas e tudo isso dentro de uma legislação que obedecia mais às circunstâncias que a um ideal cristão. Quadro só compreensível no interior das relações sociais de dominação colonial: “em certos casos o casamento era útil ao sistema e então fomentado por ‘faculdades’; em outros casos ele chegava a ser inútil ao sistema e consequentemente dificultado por ‘impedimentos’”[5]. Assim, para o indígena a lei era uma e para o negro outra.
Com relação ao negro, o importante é impedir e dissolver casamentos. As Constituições de 1707 prescreviam que os párocos, ao receberem escravos suspeitos de serem casados em sua terra (embora não sacramentalmente), os dispensassem do antigo casamento. Era a aplicação no Brasil do “privilégio paulino”, ratificado em 1585 por Gregório XIII, e destinava-se a separar o escravo de sua esposa africana.
Como o casamento do negro com branco representava perigo de alforria, ele era dificultado por todos os meios. Na prática vigorava o concubinato, meio por excelência de produção de mão de obra nas fazendas e nos engenhos. Casamento de livres com escravos libertava o escravo. Era preciso mão de obra abundante. Frei Francisco da Conceição foi bem claro: “Era permitido entre eles o concubinato, misturando-se batizados e não batizados e tolerando-se até relações ilícitas entre servos e pessoas livres. Os senhores favoreciam esta dissolução para aumentarem o número de crias, como quem promove o acréscimo de um rebanho”[6].
Já com os índios a atitude é diferente, procurando-se facilitar o casamento, uma das formas que o sistema colonial usa para escravizá-los: “Nos casamentos de índios livres com escravas (em que são ainda maiores inconvenientes) se tenha a mesma vigilância, se guarde a concordata que sobre esta matéria se tem feito com o Ordinário, não recebendo nem consentindo que se receba índio algum das aldeias sem primeiro ser examinado e desenganado pelo superior, para evitar dolos, em que debaixo do nome do matrimônio vêm estes casamentos a ser uma das espécies de cativar que neste estado se usa”[7].
Em resumo, “há pois uma relação entre a necessidade de mão de obra escrava, a poligamia ou o concubinato, e a moral de tolerância. Quem não perceber esta relação nunca conseguirá entender como funcionava a instituição do casamento no Brasil”[8].
III. A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL
Proclamada a Independência em 1822, a 25 de março de 1824 D. Pedro I outorgava a Constituição, após dissolver em novembro de 1823 a Assembleia Constituinte que ele mesmo convocara. Nela se declara, no artigo 5º, que a religião católica, apostólica, romana, continuaria a ser a religião do Império. Na prática significava a submissão total da Igreja ao Império, a ponto de um deputado, Leandro Bezerra Monteiro dizer que o “privilégio de nossa religião em ser do Estado torna-se um mal, porque dá presunção ao Governo de intervir em matéria espiritual e considerar os prelados e pastores como empregados, debaixo de sua jurisdição e suas ordens”[9].
O único casamento reconhecido no Império foi o casamento religioso canônico. Baseava-se tal fato na premissa de que “entre batizados não pode existir um contrato válido que não seja ao mesmo tempo sacramento” (Cânon 1012, § 2º). As competências respectivas do Estado e da Igreja neste campo não ficavam delimitadas, embora isso fosse exigido pelos próprios cânones da Igreja. Esta situação não significava a liberdade da Igreja, mesmo no campo matrimonial. Era apenas expressão da sujeição total da Igreja, uma vez que “os instrumentos usados no exercício e na influência religiosa são a rede de estruturas e grupos que constituem a sociedade”[10]. Situação em que, como diz Bruneau, “as estruturas é que fazem cristãos os homens e não o contrário”[11]. Controlando as finanças da Igreja e a nomeação das autoridades eclesiásticas, o Estado cristalizava a sujeição desta ao seu poder. A família “cristã” aparecia como mecanismo privilegiado de socialização em moldes “cristãos”. Reforçava assim a sujeição.
IV. PRIMEIRA REPÚBLICA
Se a família patriarcal mostra que as normas obedecem a interesses ligados à produção de riqueza, e o casamento religioso — único “oficial” — no Império, exprime e reforça a sujeição da Igreja ao Estado, na República há sempre uma carta no jogo complexo das relações entre Igreja e Estado. Este, na sociedade de classe, representa os interesses da classe dominante, está a serviço dela é nas suas negociações com a Igreja terá sempre em mãos a legislação sobre o divórcio como trunfo.
A primeira República põe fim ao regime de Padroado, que libertava a Igreja de um fardo. Mas ao mesmo tempo representava uma ameaça: a República significava de fato a implantação das ideias liberais condenadas por Pio IX no Syllabus. O Decreto 119-A do Governo Provisório, datado de 17 de janeiro de 1890, preconizando o Estado não confessional, abolia o nome de Deus das cerimônias públicas, dava às demais religiões o mesmo estatuto reservado ao catolicismo, instituía o casamento civil ameaçava de expropriação os bens eclesiásticos não produtivos.
A 22 de junho de 1890 o Governo Provisório apresentava o projeto constitucional que previa entre outras coisas o reconhecimento e obrigatoriedade do casamento civil, a laicização do ensino público, a secularização dos cemitérios e a proibição de se abrirem novas comunidades religiosas. A Igreja reagiu. Para ela, era temerário o Governo desconhecer seu prestígio e sua força política. Conseguiu que os bens da Igreja fossem poupados e as Ordens e Congregações admitidas sem reservas.
Casamento Civil — Profanação?
No artigo 72, parágrafo 4º, dizia a Constituição: “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. Na realidade havia algo mais que a simples instituição do casamento civil, já presente no Decreto 181 (24 de janeiro de 1890) que previa a celebração religiosa antes ou depois do ato civil. Sua existência e realidade eram um fato.
A objeção da Igreja relacionava-se com o caráter leigo, sem inspiração religiosa de ato que para ela era essencialmente religioso, ainda mais tratando-se de um país “essencialmente católico” e que, como tal deveria ter uma lei “católica”. Na realidade, para a Igreja, o casamento é por natureza uma instituição de origem divina, sua essência religiosa, provém da própria ordem estabelecida por Deus e laicizá-lo equivale a diminuí-lo, ou até mesmo a profaná-lo. Aqui a Igreja efetua claramente aquilo que Berger chama de “cosmização de tipo sacralizante” que consiste em dar caráter de sagrado e natural àquilo que é temporal e histórico. No caso, as formas que o contrato matrimonial assume são históricas (temporais) e culturais. O reconhecimento do casamento civil como algo autônomo abria caminho para a negação do caráter “necessário” natural, sagrado do casamento como a Igreja o prevê. Apesar da Lei, porém, as populações camponesas mantiveram por longo tempo o hábito de casar apenas na Igreja. Já as classes média e superior adotaram a união pelos laços civil e religioso — única forma “legítima” de constituir família.
Divórcio: um trunfo permanente
Jornal, rádio, televisão sempre colocaram em discussão o tema da família. O divórcio sempre esteve à tona. De um lado esforços para sua implantação e de outro a mobilização da Igreja no sentido de impedir sua presença na legislação.
Ralph Della Cava apresenta o Governo Getúlio Vargas com sua Constituição de 1937 como a reconstituição de fato da aliança entre Igreja e Estado. Não só porque impedia o divórcio, mas porque dizia no artigo 146 que “o casamento celebrado perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá todavia os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição, sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no registro civil” — reconhecendo assim os efeitos civis do casamento religioso.
O problema divórcio já agitava. Antônio Rodrigues de Souza dizia que o divórcio no Brasil tinha um adversário: a Religião, no caso a Igreja católica que pretende controlar a maioria do sentimento religioso nacional. Ao mesmo tempo Thomaz Lobo propunha a secularização do casamento em nome da separação legal entre Igreja e Estado. Dever-se-ia instituir “a forma civil, única reconhecida pela República como fundamento da vida da família”[12]. Então já se falava de um termo chave: secularização.
A Constituição de 1967
O problema continua presente. Na Constituição de 1967 ele voltou a ser debatido e, Nélson Carneiro tentou eliminar o § 1º do artigo 175 da Constituição que dizia “o casamento é indissolúvel”. Aduzia como argumento a liberdade religiosa.
Na época as relações entre Igreja e Estado eram até certo ponto tranquilas. Era a véspera de 1968 com tudo o que significou — implantação de uma ditadura de fato e de direito, num país já sufocado e efervescente. Não interessava ao governo arranjar um inimigo: a Igreja, que se não fazia o papel de aliada, pelo menos não fazia oposição explícita e sistemática.
Dez anos depois, graças ao famigerado “pacote de abril” o divórcio acabou introduzido na Constituição no dia 23 de junho de 1977, quando o Congresso em segunda votação aprovou por 226 contra 159 votos emenda constitucional que diz: “Art. 1º — O parágrafo primeiro do artigo 175 da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, passará a vigorar com a seguinte redação: § lº) O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos. Art. 2º — separação de que trata a nova redação do artigo anterior, poderá ser de fato, devidamente comprovada em Juízo, e pelo prazo de cinco anos, se for anterior à data da emenda”.
A mudança foi sem dúvida muito profunda. Obrigava a Igreja a repensar toda sua pastoral. Exigia reflexão aprofundada e lúcida. E ainda nos obriga, uma vez que devemos nos perguntar se a aprovação não veio apenas ratificar e consagrar problemas que já eram vividos pelos agentes pastorais. Ver na votação simples manifestação de falta de espírito cristão, de oportunismo, de lassidão moral é fugir à verdadeira compreensão do problema. Convencem menos ainda argumentos condenatórios baseados em noções míticas como a de “nação católica”
Pode-se perguntar mesmo se à luz de uma pastoral familiar mais exigente não terá sido providencial a adoção do divórcio na Constituição, já que ela não precisará mais de um amparo civil para “impor” significados sacramentais que em última análise devem brotar de uma opção radical de duas pessoas confrontadas com as exigências evangélicas. Então sim, o matrimônio adquire toda densidade sacramental e profética.
Trata-se de ser a favor do divórcio? Não, porque este não é o tipo de assunto em que se é contra ou a favor, numa espécie de torcida. É questão de ter lucidez para analisar os fatos e a partir deles denunciar profeticamente tudo o que se opõe ao Evangelho.
Tomemos a denúncia profética no caso do divórcio. Não se trata de ficar elencando citações da Bíblia, elocubrações metafísicas sobre o ser do homem e das coisas e a ordem imutável estabelecida por Deus para crentes e não crentes. O discurso profético que utiliza a Bíblia como argumento de autoridade e a mediação da filosofia essencialista perde impacto. A denúncia que ignora as contradições de classe perde-se no vazio; e a pastoral que apela para as boas intenções cai no voluntarismo estéril.
A discussão sobre o divórcio acabou desviando os olhares do fato realmente decisivo: o pacote de abril significava a marginalização total (se é que era possível torná-la maior) do povo das discussões que realmente o afetavam. Desviar a atenção para o divórcio, ou para a possibilidade de sua implantação era contribuir decisivamente para desviar a atenção do verdadeiro problema.
Então cabe perguntar: a quem interessa o divórcio?
O comunicado da CNBB (anterior à aprovação do divórcio) teve lucidez para perceber esta pergunta quando afirmava que “para a grande maioria do nosso povo, o problema não é o de dispor de instrumentos legais para desfazer a família, mas em ter meios para constituir famílias e condições mínimas de sua dignidade, estabilidade e responsabilidade”[13]. Analisado de um ponto de vista sociológico, o divórcio é problema muito mais da burguesia e pequena burguesia do que das classes envolvidas diretamente no trabalho produtivo.
Mais ainda: na prática pastoral junto às periferias vê-se que é grande o número de não casados (“juntados”) ou só casados no civil (para “dar nome ao filho”) e que absolutamente não mostram preocupação alguma com a sua situação “irregular” em termos religiosos. Cabe então a pergunta: até que ponto a insistência no casamento religioso e na sua manutenção a qualquer custo através de mecanismos da lei civil é fruto de real zelo evangélico, ou de uma moral burguesa, onde as aparências pesam mais que a realidade profunda da vida e prática cristãs? Razão têm os bispos da CEP: trata-se de criar condições para a existência da família e não criar leis para os “favorecidos” dissolverem laços que não mais os prendem.
V. DIVÓRCIO E SECULARIZAÇÃO
É preciso ser realista e ver que a Igreja não tem mais nas mãos as rédeas do processo social. Não mais o conduz. (E seria importante que os cristãos se perguntassem com sinceridade se esse é seu papel.) Usando linguagem científica, falamos de secularização e pluralismo. Já foi dito atrás que as leis não dependem somente da vontade de alguns homens. Elas estão ligadas a transformações que atingem a sociedade como um todo. Secularização e pluralismo estão ligados ao processo de industrialização e penetração do capitalismo no Brasil.
Os homens em seu agir produzem significações para sua ação. Algumas destas significações são globais, isto é, unificam o conjunto das experiências da vida cotidiana. Dão um sentido à vida do indivíduo em sua totalidade, abrangendo os setores mais diferenciados do seu agir. Há agências encarregadas de produzir, reproduzir e institucionalizar estas significações. Durante muito tempo a Igreja teve o monopólio na doação de significação.
Nas sociedades industriais modernas, ou em processo de industrialização estabelece-se o que Peter Berger chama de “situação de concorrência na ordenação institucional dos significados globais referentes à vida cotidiana”[14]. Situação de concorrência que sucede a de monopólio. Com isso, dar significados à vida em todas as suas manifestações não é mais privilégio de uma religião, mas sim fruto de uma competição não só entre várias religiões, mas também entre outros sistemas de comportamento global, como as visões de mundo veiculadas pela ciência e pela política.
Ao lado desta concorrência entre instituições às vezes tão diversas entre si — como a homilia numa comunidade de base ou o grupo de reflexão bíblica e as novelas “padrão Globo” — há a repercussão subjetiva desta competição. Berger a chama de “secularização da consciência”. As definições tradicionais da religião padecem de uma “crise de credibilidade”. Deixam de ser plausíveis, evidentes por si mesmas: “subjetivamente o homem comum sente-se inseguro em assuntos religiosos. Objetivamente encontra-se frente a uma grande variedade de organismos religiosos e outras entidades que pretendem definir a realidade e que competem (grifo nosso) por sua adesão ou ao menos por sua atenção, nenhuma das quais está em condições de obrigá-lo a dar sua adesão”[15].
Processo que escapa ao controle do poder político e religioso. Parece, diz Berger, que a própria sociedade industrial é por si mesma pluralista e secularizadora. Pouco importa uma política pró ou antirreligiosa — as duas “devem levar em conta forças sociais básicas que antecedem às políticas particulares (…) e sobre as quais os governos têm controle apenas limitado”[16].
O matrimônio entra nesta esfera. Há uma “secularização da consciência” com relação a ele. Não aparece por si mesmo carregado de conotação religiosa. Veja-se a imagem do matrimônio veiculada pela televisão e os esforços desesperados (em certos momentos) da censura para impedir a “desagregação da família brasileira”.
E mais ainda, nesta concorrência, o Estado não privilegia nenhuma religião. Ele tende a aparecer como árbitro neutro na concorrência. Naturalmente esta neutralidade é aparente. Não há mais, a não ser por má fé, a ilusão de que o Estado é neutro, acima das classes sociais, defendendo o “interesse comum”. Ele tem seus interesses e estes são sempre os da classe dominante. Se isso ficou claro na organização da família patriarcal, na legislação imperial e nas constituições republicanas, mais uma vez fica claro no caso da aprovação do divórcio. A quem interessava a discussão de tal problema na ocasião do “pacote de abril” com todo seu arbítrio?
A análise das legislações que se sucederam ao longo da história do Brasil — embora sumárias — mostram que há sempre interesses sociais concretos, de classe, por trás. E que uma pastoral familiar e sacramental não pode ignorar tal situação sem incorrer em erros. Pelo menos levanta uma suspeita: de onde vem a força do sacramento: das leis civis que o protegem? Ou sua força profética advém exatamente do contrário? Numa situação em que tudo se opõe (até a lei) o cristão testemunha profeticamente a fidelidade, o espírito de serviço e de reconciliação significados pelo sacramento do matrimônio?
E mais ainda: tem sentido lutar contra o divórcio, quando o problema real da “opção pelos pobres” é a transformação da sociedade para que seja realmente capaz de dar condições para que as famílias possam ter um mínimo de “dignidade, estabilidade e responsabilidade”?[17].
[1] “Os socialistas utópicos do princípio do século XIX não são utópicos pela visão que exprimem, mas pela ideia que têm (e propõem) do caminho para lá chegar” (Samir Amim. O Elogio do Socialismo, Textos Exemplares, Porto, 1977, p. 6).
[2] Conclusões da Conferência de Puebla, n. 30.
[3] Thales de Azevedo. Cultura e Situação Racial no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 112.
[4] Mendes Júnior e outros. Brasil História — Texto e Consulta. São Paulo: Brasiliense, vol. 1, 1977, p. 119.
[5] Eduardo Hoornaert e outros. História da Igreia no Brasil. Petrópolis: Vozes, tomo 2, 1977, p. 313.
[6] Idem, ibidem, p. 318 (grifo nosso).
[7] Idem, ibidem, p. 316.
[8] Idem, ibidem, p. 318.
[9] Citado por José Scampini. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 18.
[10] Thales de Azevedo. Igreja e Estado em tensão e crise. São Paulo: Ática, 1978, p. 87.
[11] Citado por Thales de Azevedo, op. cit., p. 87.
[12] Citado por José Scampini, em A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 167.
[13] Nota de Comissão de Pastoral da CNBB de 2/6/1977, in REB, 147, setembro de 1977, p. 600.
[14] Peter Berger e Th. Luckmann. “Aspects sociologiques du pluralisme”. Archives de Sociologie des Religions, nº 23, 1967, p. 117.
[15] Peter Berger. El Dossel Sagrado — Elementos para una Sociologia de Ia Religión. Buenos Aires: Amorrortu, 1969, p. 157.
[16] Idem, ibidem, p. 137.
[17] Cf. Nota da CNBB, de 2/7/1977, REB 37/147, setembro de 1977, p. 600.
Luiz Roberto Benedetti