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Publicado em número 176 - (pp. 15-16)

Fundamentalismo nos “pais da Igreja”?

Por Prof. Roque Frangiotti

Seria anacronismo qualificar, simplesmente, alguns dos “pais da Igreja” de fundamentalistas, pois o fundamentalismo é um movimento recente, nascido nos meios evangélicos protestantes na segunda metade do século passado.

Não só pela distância multisecular não se pode atribuir, propriamente, o qualificativo “fundamentalista” a algum “pai da Igreja”, mas também porque este movimento surgiu como forte reação antimodernista.

A ocasião que o provocou foi um conjunto de fatores que podemos sintetizar em três polos principais: 1) desenvolvimento das ciências naturais, em particular o evolucionismo; 2) a opção feita pelo “evangelho social” por parte de um bom número de teólogos; 3) pela provocação do emprego dos métodos exegéticos histórico-críticos sobre o texto das Escrituras. Esses três acontecimentos pareciam ameaçar e invalidar, aos olhos de muitos crentes, as verdades tradicionais nas quais se fundava e se sustentava a ortodoxia religiosa.

Os fundamentalistas temiam, e temem ainda hoje, que o movimento ecumênico, impregnado para eles de certo liberalismo, contaminasse o verdadeiro cristianismo e o desfigurasse.

Contudo, se a postura “dogmática fundamental do fundamentalismo é a afirmação que a Escritura vem de Deus e é revelada em todas as suas partes”, então pode-se suspeitar que alguns dentre os “pais da Igreja” estejam bem próximos dele. Mais ainda. Se é verdade, como dizem os bispos americanos, na Carta Pastoral de 26 de março de 1987, que este movimento se caracteriza pela obstinada adesão às rígidas posições doutrinais e ideológicas, baseadas em pressupostos de que a Bíblia é a única fonte necessária para o ensinamento sobre Cristo e a vida cristã, de tal modo que a Bíblia fica isolada da história da Igreja, com suas variadas tradições litúrgicas, devocionais e doutriná­rias, então podemos estabelecer um certo paralelo entre alguns “pais da Igreja” e os fundamentalistas.

 

1. Taciano

Um dos primeiros entre os “pais da Igreja” que pode ser apontado com uma atitude radical, fechada, é um discípulo de Justino Mártir: Taciano.

Esse homem, “nascido na terra dos Assírios”, como se apresenta a si mesmo, veemente, duro e altaneiro, como é descrito por Irineu, escreveu por volta de 170 d.C. o Discurso contra os gregos no qual revela um sistema exagerado e estreito das relações de sua fé com a cultura ambiente.

Taciano era bem diferente de seu mestre Justino e de seu contemporâneo Atenágoras. Estes eram abertos, tinham posto o acento sobre a substancial coincidência entre o cristianismo e o ensinamento das várias escolas filosóficas gregas. Especialmente Justino Mártir que punha em relação a filosofia com o lógos universal, reconhecendo a presença das “sementes do Verbo” em toda cultura pagã, ponto substancial do qual se pode partir para um diálogo franco e aberto com as culturas.

Nessa mesma linha, se assiste a um desenvolvimento ulterior em Clemente de Alexandria (170-215 d.C.). Nele não se vê só uma grande abertura em relação ao pensamento grego. Consciente do fato que a religião cristã não teria jamais podido se tornar uma teologia sem a contribuição determinante do helenismo, não exita em assumir a defesa de Orígenes diante de sua própria comunidade cristã que o suspeita de heresia, justamente por sua cultura estar encharcada de helenismo. Mas sua posição ante a cultura grega pode ser melhor avaliada neste texto das Stromateis, I.V.28: “Até a vinda do Senhor a filosofia foi necessária aos gregos para alcançarem a justiça. Presentemente ela auxilia a religião verdadeira emprestando-lhe sua metodologia para guiar aqueles que chegam à fé pelo caminho da demonstração. De fato, se atribuis à Providência todo bem, quer pertença a gregos, quer seja nosso, ‘teu pé não tropeçará’. Deus é fonte de todas as coisas boas, basicamente de algumas, como o Antigo e o Novo Testamentos, consequentemente de outras, como da filosofia. Pode ser que, basicamente, aos gregos concedeu-se a filosofia até que foi possível ao Senhor vocacionar os gregos. Assim a filosofia foi um pedagogo que levou os gregos a Cristo, como a lei levou a Cristo os hebreus. A filosofia foi um preparo que abriu caminho à perfeição em Cristo”[1].

Longe de uma concepção tão corajosa, tão ecumênica e otimista de Justino, Atenágoras e Clemente, Taciano parte, já no proêmio de seu Discurso, para o ataque amargo e sem concessão aos filósofos gregos e a toda cultura pagã. Mostra só desprezo por tudo o que se refere à filosofia pagã, pois esta, para ele, está cheia de incongruências e contradições. Polemicamente agressivo, intransigente, sarcástico para com a cultura pagã, abre seu Discurso com um violento exórdio contra tudo o que o rodeia, relativizando, em tom de ironia, toda produção filosófica, artística e a cultura grega. Pergunta-lhes: “Que instituição entre vós não teve sua origem dos bárbaros?”. E continua a mostrar aos gregos que tudo o que se encontra entre eles veio dos povos “bárbaros”, isto é, os gregos não foram capazes de criar nada, só de imitar! Sem nada reconhe­cer de bom, fora das Escrituras, vai desfilando as impropriedades, a imoralidade, as injustiças, a desunião que há entre eles. Sua aversão à cultura greco-pagã o leva a contínuos ataques polêmicos contra as diversas opiniões dos gregos e se prolonga acusando de origem demoníaca o uso dos remédios, a medicina, os espetáculos, os comportamentos morais e seus regimes políticos (cf. Discurso contra os gregos, cc. 9-16; 17­-18). Nos cc. 31-35 desse livro, mostra o baixo nível moral dos famosos gregos, que suas obras de arte são vulgarmente imorais e imorais as narrativas mitológicas que ensinam a imoralidade e corrompe os jovens.

 

2. Tertuliano

Essa atitude de radical fechamento e condenação da cultura filosófica, artística e cultural de seu tempo, é encontrada também num dos grandes escrito­res latinos: Tertuliano (160-220 d.C.). Este não admite nenhum acordo, nenhum compromisso com a cultura helenística. Em nenhum outro autor do período patrístico, como em Tertuliano, aparece a recusa da filosofia grega como inutilidade, desnecessária e perigosa para a fé cristã. Para ele: “A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De fato, é a filosofia que equipa as heresias. (…) Hereges e filósofos manipulam o mesmo material e examinam os mesmos temas, a saber, a origem e a causa do mal; a origem e o como do homem e (…) a origem do próprio Deus (…). O miserável Aristóteles! que lhes proporcionaste a dialética, esse artifício hábil para construir e destruir”. Mas a atitude que mais aproxima Tertuliano dos fundamentalistas de hoje talvez esteja na continuação, do texto acima: “Ora, o que há de comum entre Atenas e Jerusalém, entre a academia e a Igreja? (…) Que novidade mais precisamos depois de Cristo? Que pesquisa necessitamos mais depois do evangelho? (grifo nosso). Possuidores da fé, nada mais esperamos de credos ulteriores. Pois a primeira coisa que cremos é que, para a fé, não existe objeto ulterior”[2].

 

3. Atitudes fundamentalistas de ontem e hoje

Esse fechamento total a tudo o que vem da cultura, sem distinção, sem reconhecer nada de bom nela, foi repetido frequentemente pela Igreja, especialmente quando se tratou de “levar o evangelho aos povos aborígenes” e se reflete, hoje, naqueles que temem um contato maior da teologia, da liturgia e da pastoral com as ciências, a arte e as filosofias modernas atuais.

Na antiguidade, o juízo negativo de Tertuliano sobre a filosofia como origem de todas as heresias foi plenamente codividida por Hipólito (170-235 d.C.). Para ele, todos os chefes das seitas heréticas aprenderam com os filósofos. Para Epifânio (315-403 d.C.), os sistemas filosóficos e as seitas judaicas devem ser considerados entre as heresias. Seu tradicionalismo não se funda em argumentações bem construídas e seguras, mas numa “justificação superficial mediante a Bíblia”. Nega “indiscriminadamente toda espécie de crítica histórica e de especulação teológica; o entrechoque da cultura clássica e do cristianismo limita-se para ele a mera negação. A própria filosofia como tal já lhe era suspeita de heresia, e não hesitou em corroborar sua opinião com os exemplos de Orígenes e Ário”[3].

 

4. Conclusão

Concluindo estas rápidas reflexões, penso que não é difícil ver e aproximar a atitude desses “pais da Igreja” com a dos que hoje procuram fundamentar sua religião somente através da Bíblia. Para isso, procuram proteger as Escrituras do contato com as ciências, negam, rejeitam e se recusam a aplicar sobre seus textos um exame mais crítico, histórico, cultural e sociológico. Seu fundamentalismo não revela espírito de fé, nem fidelidade às origens, mas pura insegurança, medo, autoritarismo para uns, oportunismo para outros. Sempre foi e sempre será assim, porque sempre existirão os inseguros, os tímidos, os autoritários e os oportunistas.



[1] Bettenson, H., Documentos da Igreja Cristã, São Paulo, Aste, 1967, p. 32.

[2] Bettenson, H., “De praescriptione haereticorum VII”, em Doc. da Igreja Cristã, idem, pp. 31-32.

[3] Altaner, B. e Stuiber, A., Patrologia, São Paulo, Ed. Paulinas, 1988, 2ª ed., p. 318. Cf. também H. Chadwick, Early Cristian Thougt and the Classical Tradition, Oxford, 1966, p. 100.

Prof. Roque Frangiotti