Publicado em edição especial – 1º centenário dos paulinos - ano 55 - número 300
Comunidade de comunidades: Evangelização e cultura do encontro. Impulsos para uma Agenda Pastoral
Por Paulo Suess
A cultura do encontro é, segundo o papa Francisco, avessa ao “assédio espiritual”. A paciência de escutar e servir é mais importante do que a fala normativa e imperativa daquele que quer que o outro assuma suas convicções. Qual é a finalidade e quem é o destinatário desse encontro? O papa responde: a carência daquele que tem a maior necessidade “multiplica a capacidade de amar”. Além da gratuidade do amor, a cultura do encontro aponta também para a racionalidade da verdade. Nosso “ir ao encontro” é a atitude de deixar Deus, através de nós, “atrair” os fugitivos de sua bondade e verdade. No encontro, em 29 de agosto de 2013, com jovens da diocese italiana de Piacenza-Bobbio, o papa Francisco deu também à verdade essa dimensão do encontro: “A gente não tem a verdade, não a carregamos conosco, mas a gente vai ao seu encontro. É o encontro com a verdade, que é Deus, mas precisamos procurá-la”, às vezes jogada na lama (EG 49).
O berço das obras de Tiago Alberione, cujo centenário celebramos neste simpósio, era a Escola Tipográfica Pequeno Operário que, como “escola”, aponta para um programa educativo, como “tipografia”, para uma ampla divulgação, e, com seus destinatários, que seriam “pequenos operários”, adverte para uma nova “sensibilidade social”. Dessa obra nasceu a Pia Sociedade de São Paulo, com suas ramificações e toda a Família Paulina que antecipou um princípio de hoje: a diversificação dos empreendimentos aos quais deu o significado de comunicação sem fronteiras, de ruptura paroquial e missão até os confins do mundo. Quando os primeiros emissários da Família Paulina chegaram ao Brasil de Getúlio Vargas, em 1931, a missão dessa família religiosa iniciava sua presença internacional.
Proponho rever a longa caminhada da comunicação da humanidade. Essa evolução foi acelerada por grandes invenções tecnológicas, até chegar ao mundo digitalizado e seus desafios. Por fim, procuro ver até que ponto essas invenções favorecem ou estorvam a comunicação e a construção de uma cultura do encontro.
1. Genealogia da comunicação
Grosso modo, podem-se elencar quatro passos relevantes para a transmissão e divulgação do pensamento humano: o surgimento da língua, da escrita, do livro e do mundo digitalizado. Com cada passo dessa evolução, cresceu o número de usuários e possíveis destinatários. Hoje diríamos: cresceu a potencialidade do mercado editorial e da ação pastoral. Nessa caminhada, a missão dirigida ad gentes transformou-se em missão real e virtual sem fronteiras.
1.1. Da oralidade à escrita
Em algum momento na Antiguidade, entre 800 e 200 a.C., e em lugares geograficamente muito distantes, se produziu uma ruptura nessas regiões. É o tempo dos pensadores ambulantes na China, dos ascetas na Índia e dos filósofos na Grécia. Na Palestina, surgiram os profetas Isaías, Jeremias e o Deutero-Isaías. Karl Jaspers cunhou para essa época a expressão “tempo axial”. Esse “tempo axial” forjou “religiões segundas” que até hoje coexistem com as “religiões primeiras”. As “religiões segundas” são religiões da escrita e do livro sagrado, religiões monoteístas que remotam a atos ou eventos de fundação e revelação. São religiões universais e mundiais, com fortes convicções de sua ortodoxia e verdade. O judeu-cristianismo é uma dessas “religiões segundas”.
A conquista da escrita, incluindo China, México, Europa e o mundo árabe, já é urbana. Nesse mundo, as novas religiões se emanciparam não só da natureza e da cosmovisão correspondente, mas também da tribo, do povo, do próprio Estado e da cultura local. Essa “emancipação” permite que a religião ultrapasse as fronteiras de um país e se torne missionária até os confins do mundo. O ponto central desse surgimento das “religiões segundas” é o discernimento entre o Deus verdadeiro e os deuses falsos, entre a “verdadeira religião” e a “falsa religião”, entre ortodoxia e heresia. As verdades dos outros são mentiras. As “religiões segundas” encontram nas “religiões primeiras” idolatria e magia. Na colonização das Américas, repetiu-se essa desclassificação das “religiões primeiras”, cujo pluralismo representou um grande obstáculo para a missão. A oralidade diversificada representava um obstáculo insuperável para a transmissão do Evangelho.
O jesuíta José de Acosta, provincial no vice-reinado do Peru, lamenta em seu Tratado De procuranda indorum salute (1576) com certa resignação: “Dizem que, em outros tempos, com 72 línguas, entrou a confusão no gênero humano; mas esses bárbaros têm mais de 700 línguas […]”[1]. E Antônio Vieira, em seu Sermão da Epifania, lamenta um século mais tarde: “Na antiga Babel houve setenta e duas línguas; na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de cento e cinquenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega; e assim, quando lá chegamos, todos nós somos mudos e todos eles surdos”.[2]
A solução que os primeiros missionários encontraram foi o bilinguismo: trabalharam, segundo as regiões, com uma língua geral, segundo as regiões guarani, kechua, nauhatl e com a língua do colonizador. Ainda hoje temos catecismos daquela época em línguas indígenas.
Mas a escrita e a tradução de conteúdos essenciais não rompeu com a colonização. A voz autorizada de Lévi-Strauss, em seu diário de campo entre os bororo do Mato Grosso, nos faz pensar sobre a ambivalência da escrita:
O único fenômeno que a tem fielmente acompanhado [a escrita] é a formação das cidades e dos impérios, isto é, a integração num sistema político de um número considerável de indivíduos e a sua hierarquização em castas e em classes. Essa é, em todo caso, a evolução típica à qual se assiste desde o Egito até a China, quando a escrita surge: ela parece favorecer a exploração dos homens, antes da sua iluminação. […] Se a minha hipótese for exata, é necessário admitir que a função primária da publicação escrita foi a de facilitar a servidão.[3]
A escrita rompeu com a inocência e ingenuidade da oralidade local, mas está na origem de uma memória de longo alcance. A ambivalência faz parte intrínseca de todas as invenções culturais. Sempre têm qualidades de um phármakon, que significa, na língua de Sócrates, “remédio” e “veneno”, porque podem ser referenciais para invocar a paz e para praticar a violência.
1.2. Do livro sagrado ao mercado editorial digitalizado
A escrita permitiu confeccionar livros sagrados que sustentaram guerras sangrentas em nome de verdades absolutas guardadas nesses livros. As religiões que assumiram o poder do Estado eram incapazes de garantir a paz entre os povos. A modernidade, com seus eixos de esclarecimento, individualização e secularização, produziu um segundo “tempo axial”, através da separação entre Igreja, credo e Estado. Agora, os mitos e as verdades das respectivas religiões e suas práticas rituais e/ou sacramentais não pertencem mais a uma esfera do cultural e politicamente correto. As religiões podem ter a sua vida própria numa escala entre exotismo e contestação, entre alienação e engajamento, desde que aceitem coexistir com outros credos. As religiões saíram da clandestinidade mantida pelos credos hegemônicos.
2. Desafios, promessas e ambivalências do mundo digital
O aprendizado da convivência pacífica num mundo pluricultural e a passagem do mundo analógico ao cosmo digitalizado abriram espaços necessários para a comunicação sem fronteiras. Cada passo dessa evolução da oralidade à digitalização amplia as possibilidades dos passos anteriores, sem suspendê-los. As redes digitalizadas não suspendem a comunicação oral; a distância física mantida e, ao mesmo tempo, superada pelo e-mail não dispensa a proximidade do corpo a corpo do encontro. Oralidade, escrita, mundo analógico e digitalizado convivem numa tensão produtiva. A pastoral precisa se reinventar em sua oralidade, escrita e no mundo digital.
O mundo digital produziu o fenômeno do crescimento numérico dos usuários, clientes ou destinatários, subordinados ao crescimento dos lucros comerciais. A prosperidade comercial – o sonho de alguns setores eclesiais – deveria oferecer possibilidades de domesticação a serviço de uma pastoral sem fronteiras. Mas sabemos também que tudo que alimenta perspectivas de lucro e não gratuidade nunca serviu de suporte para o anúncio da Boa-Nova.
2.1. Fronteiras no mundo sem fronteiras
As novas oportunidades do mundo digitalizado nos permitem realmente chegar aos confins do mundo e do tempo. Quem puxa a evolução tecnológica rasante é a dinâmica do capitalismo e sua perspectiva de lucro. Hoje, dois terços do comércio da Europa passam pelo e-commerce, que exige confiança dos clientes e velocidade dos seus funcionários e racionalidade comercial dos produtores. Racionalidade comercial significa atitudes concorrenciais impiedosas. Como “pastoral e comunicação” se encaixam nesse mundo digitalizado, cuja velocidade anula as possibilidades do encontro ou reduz o encontro a passagens de relâmpagos e transforma os evangelizadores em motoristas da Fórmula 1? A Evangelii gaudium nos responde:
Um dos pecados que, às vezes, se nota na atividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente […]. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços (EG 223).
Para quem considera uma de suas prioridades pastorais “a propagação da Palavra de Deus”, como as fundações de Tiago Alberione, obrigatoriamente está de olho nesse e-commerce que oferece seus trilhos para a divulgação não comercial não só da Bíblia, mas também de tudo que está sendo escrito para dar sentido à caminhada humana e divulgar testemunhos de vida doadas para o bem do outro. Divulgação não comercial não quer dizer divulgação gratuita. O que na internet é oferecido como “gratuito”, como “brinde” ou como boa notícia do “você ganhou”, tudo é mentiroso e pago pela propaganda ou pela espionagem.
A pergunta, aparentemente inocente, que precede cada postagem no Facebook: “No que você está pensando?”, parece mais apropriada para o confessionário ou para uma sessão psicoterapêutica do que para uma declaração pública na rede. Com nossa resposta à pergunta “no que você está pensando”, a rede aproveita para nos enviar uma seleção de “amigos” e oferta de “mercadorias” com afinidade às nossas respostas. Precisamos ter medo diante do Facebook, Google, Wikipedia, Android, Dropbox, OneDrive? Google é não somente a máquina de busca mais usada e com informações tendenciosas, mas também o Youtube é do Google; com Google Chrom, é o proprietário do maior browser; com Gmail, dispõe do mais usado serviço de e-mail; com Google Drive, tem um respeitável administrador de 15 GB de arquivos gratuitos nas “nuvens” para cada usuário do Gmail, e com Android, o maior sistema operacional do ramo.
Em 2013, o Google lucrou 13 bilhões de dólares. Na realidade brasileira, passou quase despercebida a compra da Titan Aerospace, fabricante de veículos aéreos não tripulados, conhecidos como drones. Nessa compra, o Google venceu o Facebook de Mark Zuckerberg, que estava negociando a compra da Titan por US$ 60 milhões. Google e Facebook anunciaram que seus respectivos projetos irão levar a internet a lugares mais remotos e, assim, criar novos clientes. As dificuldades técnicas de utilizar um drone movido a energia solar para transmitir a Internet em locais sem rede física ou sem torres de telecomunicações são enormes, como são grandes as promessas de milhões de novos usuários e milhares de milhões de receitas. Os drones espaciais equipados com dispositivos de captação de imagens em tempo real vão transformar o Maps do Google em informante implacável e destruidor das fronteiras entre a esfera pública e a privada.
2.2. Neocolonialismo do mundo digital
Num momento de um acentuado “êxodo eclesial”, a promessa do mundo digital de criar possibilidades de não somente impedir a “fuga”, mas também de “segurar a clientela” e de aumentar o número dos católicos, é tentadora. Ampliar as possibilidades do raio pastoral, até hoje não suficientemente contemplado e o descontentamento com o estatuto do “pequeno rebanho”, parece vital. Para a formação dos nossos quadros pastorais, faz-se necessária uma nova matéria curricular: “Perspectivas e práticas do mundo digitalizado em catequese e pastoral”. Mas quais são essas perspectivas? As novas tecnologias resolvem apenas uma parte do problema que os “condomínios fechados”, um conglomerado de muros reais, mas também de muros ideológicos, de desinteresse, cansaço e protesto, criaram.
Durante o sistema colonial, a experiência pastoral nos ensinou que os meios e sistemas não são veículos inocentes que permitem uma divisão de trabalho entre os que estão de olho no ouro e dos que querem salvar almas. Podemos navegar com as naus do colonizador sem colonizar? Colonizar significa não somente desapropriar o colonizado de seu “ouro”. Significa também impor a própria ideologia do colonizador ao colonizado. Se o meio faz parte da mensagem, como Marshall McLuhan nos ensinou, qual é a mensagem do mundo digitalizado e seu efeito colateral, que ressoa além do sem-número de novos destinatários que todos gostariam de alcançar?
Outro atrativo do mundo digitalizado e das novas tecnologias de comunicação é o crescimento do desejo insaciável de lucro que, de certo modo, escraviza, novamente, os seus destinatários. Podemos mergulhar no mundo digital, sem molhar-nos nas águas do lucro, do mercado, da alienação e dos deslizes da propaganda? Podemos ser pré-modernos, modernos e pós-modernos ao mesmo tempo, já que essas três dimensões se sobrepõem no entrelaçamento da oralidade, da escrita e da digitalização?
3. Construção da cultura do encontro em comunidades e redes
“Nova colonização”, “distância física” e “relacionamentos” desiguais entre destinatários e emissores de mensagens caracterizam as desvantagens do mundo digital. Sem desprezar as novas possibilidades do mundo digital, a pastoral deve priorizar os trilhos da presença mística e da profecia que atravessam a “cultura do encontro”.
3.1. Dimensão mística
A pastoral do encontro prioriza o relacionamento igualitário entre destinatário e emissor de mensagens, porque ambos são agentes de pastoral e sujeitos da evangelização. O sonho do número grande ou até da totalidade dos destinatários, alimentado pelo mundo digital, é pago com a moeda da amizade que exige proximidade: “Só a proximidade que nos faz amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres. Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral (DAp 398)”.
Os pobres representam o ponto de partida, não a totalidade dos sujeitos da pastoral, que são os batizados: “Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização […]. A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos batizados” (EG 120): “A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor […]. Por isso, é urgente recuperar um espírito contemplativo” (EG 264).
Além das questões meramente econômicas que tratam da geração de lucros, se impõem questões político-culturais ao debate, como, por exemplo, a questão entre chaves de comunicação universal, que o mundo digital oferece, e a questão de comunicação contextual e cultural que emerge da oralidade.
A roda da “conversão pastoral” deve girar em torno dos dois eixos da multiplicação dos destinatários, e da contextualização cultural (encarnação) da mensagem. Trata-se da integração de uma tarefa bipolar na agenda pastoral: da integração de uma contextualização universal e de uma universalidade contextualizada. O preço que a pastoral pagaria pela mera universalização digitalizada seria o esfriamento das relações humanas, e, pela mera contextualização, o encolhimento numérico e o encurtamento do horizonte para níveis paroquiais fechados. Não temos a possibilidade de escolher entre um ou outro em torno dos quais se criariam grupos de partidários militantes e seus grupos opostos. Os místicos, como Nicolau de Cusa, nos falam da coincidência dos opostos, assumida na Evangelii gaudium do papa Francisco. É possível:
[…] desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador torna-se, assim, um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste (EG 228).
A “unidade multifacetada que gera nova vida” e “conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste” é, desde tempos primordiais, o sonho dos místicos. Romper os contextos sem destruí-los, e caminhar em direção do mistério da unidade trinitária de Deus – eis o caminho que prepara a recapitulação do cosmo em Cristo que é a nossa paz. “Desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme” (EG 220) é um caminho lento e árduo. Nessa perspectiva, por ser desinteressada em poder e lucro, a comunicação universal que acolhe as diferenças num diálogo produtivo é possível, além e aquém do mundo digitalizado comercializado. Os místicos diriam: desenterrar Deus que, como Verbo, nos faz participar de sua ressurreição na vida cotidiana.
3.2. Dimensão profética
Por acompanhar, assumir e contestar as grandes tendências da época, a evangelização radicada na cultura do encontro faz parte de uma pastoral profética. As “grandes tendências” não levam em conta os destinatários como sujeitos ou protagonistas. Os batizados que defendem os pobres e os outros como uma causa do Reino sempre se encontram no centro de conflitos sociais e culturais. A união com Jesus Cristo “através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé […]. A mesma união […] nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino” (DAp 257).
A comunicação com esses nossos amigos é uma meta permanente. Ela não flui por causa de barreiras estruturais e pessoais. A real comunicação aponta sempre para rupturas sistêmicas e conversão pessoal. Numa sociedade de classe, a comunicação é sistemicamente travada por grandes desigualdades sociais. Mas, mesmo imaginando estruturas que superaram as desigualdades, a comunicação está cheia de ruídos por causa de relações inautênticas de indivíduos alienados. Ruptura e conversão têm dimensões religiosas, sociais, políticas, éticas, econômicas e escatológicas.
A dimensão profética opõe-se à comunicação universal digitalizada como comunicação descontextualizada. Ao mesmo tempo luta pela presença microestrutural e manutenção do calor humano nas situações existenciais da vida humana mutilada.
A pastoral profética é, segundo o Documento de Aparecida, uma função de sua eclesialidade: a Igreja “é chamada a ser sacramento de amor, solidariedade e justiça” (DAp 396), e está “convocada a ser ‘advogada da justiça e defensora dos pobres’” (DAp 395, cf. DAp 508). “Em sua missão de advogada da justiça e dos pobres, a Igreja se faz solidária” (DAp 533, cf. DAp 508), e assume “a atitude de compaixão e cuidado do Pai, que se manifesta na ação libertadora de Jesus” (DAp 532).
O anúncio da Boa-Nova aos pobres e sua defesa caracterizam a dimensão pneumatológica da pastoral. O Espírito Santo, que invocamos como Paráclito, é advogado e defensor do “pequeno operário”, dos pobres e dos outros. Se a pastoral é o carisma do conjunto das fundações de Alberione, da Família Paulina,[4] e da Igreja como tal, que propõem “conversão pastoral” (DAp 366) para louvar a Deus na humanidade ferida, então precisamos refletir estratégias de um novo paradigma da Igreja universal em contextos cuja meta e obstáculo a Exortação Evangelii gaudium enfatiza:
Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a “mística” de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos (EG 87).
“A mística de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos” não é uma mística pré-moderna e tribal de um comunitarismo historicamente caducado, mas uma construção social que permite a convivência pacífica da humanidade em sua diversidade. A “maré um pouco caótica” foi castigada por ventos que se opõem a essa mística. O termo “comunidade” aponta para realidades sociais contextuais nem sempre intercomunicáveis. “Comunidade” pode apontar para uma comunidade na qual prevalecem códigos fechados ou abertos, para uma comunidade agrária e oral, uma comunidade científica, indígena e indigenista, pré-moderna, industrial e pós-industrial. A invenção da escrita, do livro e do computador pode perpassar todas elas.
A invenção da tipografia nos trouxe não só a Bíblia de Lutero, mas também a agenda, com seu impacto sobre nosso tempo disponível e os donos dos meios de produção de livros e jornais. A digitalização consome mais tempo que libera para a evangelização no interior de uma expressão da cultura do encontro. Redimensionar os imperativos universais da digitalização, que nos abrem horizontes fascinantes, significa não permitir que se tornem donos do nosso tempo e não permitir a cristalização de processos (cf. EG 223).
Quem são as pessoas e os meios que contribuem para a construção de comunidades através de processos escondidos e abrem mão de resultados visíveis e imediatos? A Evangelii gaudium nos dá uma resposta com um critério enunciado por Romano Guardini: “O único padrão para avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o caráter peculiar e as possibilidades da dita época” (EG 224).
Se a palavra “encontro” é a palavra-chave que se tornou conceito pastoral como “cultura do encontro”, então queremos saber “como projetar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos, mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões. […] Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural (EG 239). No início dessa cultura do encontro está o encontro dos encontros com Deus-Pai e com Jesus Cristo que ele nos enviou: “A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4,10)” (EG 24).
A busca e descoberta do amor de Deus no lugar do encontro faz o “assédio espiritual” desnecessário: “As maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos. […] Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos” (EG 87). A paciência de escutar, de ir ao encontro e servir, é muito mais importante do que a fala normativa e imperativa daquele que quer que o outro assuma suas convicções.
Na linguagem da geração Facebook, as famílias fundadas por Tiago Alberione hoje são communities em redes, desafiadas pela urgência da caridade de Cristo, a velocidade de aparatos e pela lentidão do encontro face a face: “Assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por écrans e sistemas que se podem acender e apagar à vontade (EG 88). No mundo globalizado, redes de fé, sem fronteiras, e comunidades que contextualizam amor e esperança, participação e presença, fraternidade e solidariedade, tornaram-se desafios gigantes. Proximidade e presença, universalidade e urgência pastoral se articulam em sete registros que fazem parte da “cultura do encontro”:
– mobilidade (mística do caminho e ruptura sistêmica);
– pluralidade (diálogos com o diferente);
– relevância (para os pobres e os outros);
– leveza (física e estrutural, simplicidade de doutrinas e da vida);
– visibilidade (sinal que renuncia à totalidade sem abrir mão de sua missionariedade);
– conectividade (proximidade universal e capacidade de articulação) e
– transparência (visão além e aquém das coisas tangíveis).
Com suas tensões geradoras, nos convidam a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com o seu sofrimento e suas reivindicações […]. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura (EG 88).
Benedictus qui audit et audet! – Abençoado aquele que escuta e arrisca!
[1] José de Acosta, “De procuranda indorum salu te”, em Obras del padre José de Acosta, Madri, Ed. Atlas (B.A.E. 73), 1954, pág. 399 (liv. 1, cap. 2).
[2] Antônio VIEIRA, “Sermão da Epifania” (1662), Porto, Ed. Lello & Irmão, 1959, vol. 1, tomo 2, I/4, pág. 24.
[3] Claude LÉVI-STRAUSS, Tristes trópicos, Lisboa, Ed. 70, 1993, p. 283s.
[4] Silvio SASSI, “O carisma paulino é pastoral”, Carta do Superior-Geral, Paulus, port., 2013 [uso interno].
Paulo Suess
Estudou nas Universidades de Munique, Lovaina e Münster, onde se doutorou em Teologia Fundamental. Por dez anos, trabalhou na Amazônia e, a partir de 1979, exerceu o cargo de secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Em 1987, fundou o Departamento de Pós-Graduação em Missiologia, em São Paulo. Entre 2000 e 2004, foi presidente da Associação Internacional de Missiologia (IAMS). Atualmente é assessor teológico do CIMI e professor do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP), no ciclo de pós-graduação de Missiologia. E-mail: [email protected]