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Publicado em novembro-dezembro de 2015 - ano 56 - número 306

A humanização e a desumanização do trabalho

Por Ivonil Parraz

Ao contrário do proposto no livro do Gênesis – no qual o trabalho visa o descanso e, neste, o trabalhador contempla a sua obra e se encontra consigo mesmo –, a partir sobretudo da revolução tecnológica, o trabalho tende à desumanização. Diante dessa configuração, como propor uma espiritualidade do trabalho? De que modo o trabalhador pode encontrar a fonte de libertação, o rosto de um Deus Amor?

 O trabalho atual requer a subjetividade do trabalhador. O que leva a crer que haja certa liberdade do operário em seu trabalho. O trabalho tende cada vez mais a exigir invenção, conhecimento, imaginação. A interação homem-máquina se faz necessária. Mas essa autonomia do operário pode ser traduzida como efetiva humanização do ser humano pelo trabalho? A Carta Encíclica Laborem Exercens (LE) do papa João Paulo II auxilia-nos a pensar num trabalho de caráter social. À luz da dimensão social do trabalho, ousamos: 1) mostrar a desumanização do trabalho atual; 2) refletir sobre uma possível espiritualidade do trabalho. 

  1. A nova configuração do trabalho

Assiste-se, nas últimas décadas, a nova revolução no processo de produção: a tecnológica. Ela incita nova configuração no trabalho. Na sociedade industrial – fordista, anterior à revolução tecnológica –, o trabalho dispensava o conhecimento do trabalhador. As tarefas eram rotineiras, repetitivas e programadas para que as máquinas as executassem (SANSON, 2010, p. 31). Não havia enriquecimento algum na relação homem-máquina. Na atual revolução pós-fordista ou pós-industrial, com a introdução das tecnologias da informação, crê-se na valorização do trabalho, assentado sobre o conhecimento, a comunicação e a cooperação. São esses os recursos imateriais que o atual processo produtivo requer. Ele constitui o centro da organização do trabalho. Exige-se a interação do trabalhador com a máquina, superando, assim, a subordinação daquele a esta, prática comum na revolução anterior.

No processo tecnológico de produção, “o conhecimento torna-se um recurso e um produto” (SANSON, 2010, p. 32). O trabalhador deve incorporar todo o seu conhecimento no processo produtivo. Há uma relação de flexibilidade entre o trabalhador e a máquina. O software da máquina está aberto às alterações do operador. Exige-se do trabalhador a capacidade de interpretá-lo e, conforme o desempenho produtivo, reprogramar a máquina. A interação entre trabalhador e máquina permite àquele acumular mais conhecimento, o qual, por sua vez, será disponibilizado na produção. O conhecimento do trabalhador, acumulado graças ao trabalho, deve ser aplicado na produção.[1] Atualmente se questiona se de fato o ser humano comanda os softwares ou se já é comandado por eles, uma vez que tem de se submeter ao que os sistemas informáticos programados exigem. Questiona-se também se a sociedade em rede de fato nos liberta ou nos aprisiona, ao possibilitar o controle e a criação de índices sobre o que fazemos, compramos ou acessamos via internet, para o mercado usar esses dados pensando no lucro. Diminui a crença de que a internet e as novas tecnologias da comunicação nos tornam livres, uma vez que por elas somos vigiados e o uso que delas fazemos é cada vez mais direcionado por grandes corporações (KATZ; GREINER, 2015, p. 339-355).

Pretende-se que o sujeito do trabalho, na chamada era do conhecimento, enriqueça o trabalho. Para Sanson, o trabalho, no atual processo de produção, configura-se como imaterial, uma vez que seus recursos são imateriais, embora grande parte dos trabalhadores continue no trabalho material e braçal. O regime da revolução tecnológica caracteriza-se pela invenção, pois a lógica que o norteia é a da inovação. Ora, para que isso se concretize, torna-se imprescindível apoderar-se do saber e do conhecimento e criar condições para que todos e não apenas alguns tenham acesso a eles.

O trabalho imaterial, na expressão de Sanson, não se alimenta somente do conhecimento adquirido e acumulado no trabalho, mas também se nutre do conhecimento externo: o conhecimento obtido pelo trabalhador em sua vida cotidiana, na ordem do vivido, é incorporado ao processo de produção (SANSON, 2010, p. 36). Há, portanto, um elemento novo em relação à sociedade industrial.

  1. A subjetividade do trabalhador

O grande valor que se atribui ao trabalho num formato de produção imaterial repousa na criatividade, na sensibilidade, na comunicação, na capacidade de conhecer e de produzir conhecimento. Com efeito, o que a sociedade pós-industrial requer, ao contrário da sociedade industrial, é a subjetividade do sujeito do trabalho. Esta se torna necessária, uma vez que a produção passa a depender mais da dimensão intelectual.

Enquanto na sociedade industrial predominava o emprego do corpo no trabalho, agora é a vez da alma, pois tanto o conhecimento extra (fora do trabalho) quanto o intra (no trabalho) são empregados no processo de produção imaterial. Mas para que a empresa assegure o senhorio sobre a alma do operário, não basta que ele entregue, pelo salário, o seu saber. Juntamente com seu conhecimento, o operário deve assumir, voluntariamente, os preceitos da empresa. É estimulado a “vestir a camisa” da empresa como se fosse sua. Tudo o que diz respeito a ela lhe diz também respeito. O pobre assalariado se responsabiliza pela empresa. Com efeito, o trabalho o acompanha sempre, quer na fábrica, quer fora dela. Ele se adere de tal modo ao sujeito, que este não encontra meios de separar-se. Sua vida torna-se o seu trabalho.

A empresa passa a se incorporar na vida do operário. O que tem de melhor, energia e capacidade intelectual, é dedicado a ela. O trabalhador transforma-se em colaborador: sente-se sócio (SANSON, 2010, p. 53). Essa estratégia de domínio da empresa sobre o operário tem um objetivo específico: fazê-lo acreditar que possui autonomia. Ao trabalhador dá-se certa liberdade de inventar, de aplicar seu conhecimento, sua imaginação. Ele sente-se responsável por aquilo que produz e, ao mesmo tempo, também pela empresa, uma vez que é sócio.

Ilusória autonomia, pois a empresa visa não à liberdade do trabalhador, mas ao aumento da produtividade. Este é o seu fim último. Para isso se equipa com todos os instrumentos de domínio: concede autonomia ao trabalhador e trata-o como colaborador ou sócio, quando, na realidade, não passa de mero instrumento de exploração para que ela atinja seus objetivos.

Para que o operário interiorize os preceitos da empresa e a incorpore, ou seja, para que se torne escravo voluntariamente, é imprescindível desenvolver todo um aparato de controle. Torna-se indispensável vigiar o trabalhador.

  1. O trabalho vigiado

Na revolução tecnológica, a vigilância se dá na própria formulação do espaço de produção: a celularização (PINTO, 2007, p. 79).[2] As “células”, segundo Geraldo Pinto, contam com uma liderança entre seus trabalhadores. Os líderes podem ser eleitos pelos próprios companheiros. Sua função consiste em “assegurar o funcionamento perfeito dos postos de trabalho bem como a comunicação entre as células e a administração da empresa” (PINTO, 2007, p. 80). Com a celularização, tornou-se possível um controle maior sobre os trabalhadores. Cada célula é responsável por uma etapa definida do processo produtivo.[3] Isso permite aos proprietários dos meios de produção averiguar os níveis de produtividade atingidos por cada célula, bem como as dificuldades ou a falta de conhecimento e criatividade que os operários têm apresentado em cada uma delas. A formação do espaço de produção em escala menor permite uma visibilidade maior dos operários.

A administração da empresa estabelece cumprimento de metas para cada célula. Os membros destas distribuem, entre si, as atividades de trabalho. A intenção disso é fazer que cada trabalhador “conheça e compreenda” o funcionamento dos postos de trabalhado de toda célula (PINTO, 2007, p. 89). A constante mudança de postos de trabalho provoca no operário crises sucessivas de adaptação, uma vez que dele se exigem inúmeras habilidades, sempre em mutação. Tais crises fazem-no manter sempre a concentração na tentativa de superá-las. Disso resulta a ausência de reflexão do trabalhador sobre sua condição social no ambiente do trabalho. Mas não só. O “espaço celularizado” impossibilita a comunicação entre os operários sem que a administração saiba. Com efeito, impede-se qualquer tentativa de articulação entre eles. Emprega-se, assim, no local de trabalho uma relação ininterrupta de vigilante/vigiado. O panoptismo[4] invade a fábrica.[5]

O sentimento de estar constantemente vigiado não é provocado somente pela relação vertical patrão-operário. Também entre os próprios membros da equipe de trabalho (as células) predomina esse sentimento. A avaliação patronal não se faz sobre cada operário, mas sobre a equipe de trabalho. Qualquer falha – desinteresse, baixa criatividade ou rendimento de um dos membros – transforma-se em ameaça para o restante da equipe. Esta passa a exigir mais do colega de grupo até levá-lo ao constrangimento, no lugar da empresa (PINTO, 2007, p. 92). O olhar vigilante da empresa, “olhar invisível” que tudo manipula, é multiplicado pelo número de membros de cada equipe. O trabalho em equipe, tão exaltado em nossos tempos como veículo de sociabilidade, com seu fingimento de comunidade, na realidade se torna instrumento de exploração. Está a serviço do capital, e não do trabalhador. O trabalho em equipe é um engodo!

Cada membro da equipe torna-se um vigilante, pois, se um fracassa, todos fracassam. Cada um tem o poder, embora não tenha autoridade. Esse jogo de poder gera angústia e sofrimento. Caso o operário não realize o que dele é exigido para o bom desempenho produtivo do grupo, pode ser avaliado negativamente pelos colegas e chegar a perder o emprego. Além disso, impõe-se ao operário a disponibilidade para novas empreitadas, iniciativas ou certas atividades contrárias ao seu modo de proceder. Para não perder o emprego, ele acaba aceitando-as. O sofrimento sempre acompanha o trabalhador. Sua vida faz-se de “incertezas e angústias” (SANSON, 2010, p. 18). Perante essa situação, como pensar uma teologia do trabalho?

  1. A dimensão social do trabalho

As reflexões antropológicas sobre o trabalho e o ser humano da Carta Encíclica Laborem Exercens de João Paulo II se fundamentam em Gn 1,27-29. Para o pontífice, o ser humano domina e submete a terra porque,

como imagem de Deus, é uma pessoa; isto é, um ser dotado de subjetividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz de decidir por si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. É como pessoa que o homem é sujeito do trabalho. É como pessoa que ele trabalha e realiza diversas funções […] as quais devem servir para a realização da sua humanidade e para o cumprimento da vocação a ser pessoa, que lhe é própria em razão de sua mesma humanidade (LE 6).

Deus criou o ser humano como ser livre: capaz de escolher e decidir. Como ser livre, ele possui a capacidade de dominar e submeter o mundo visível. A liberdade humana se dá, em primeiro lugar, na sua relação com os outros igualmente livres, uma vez que Deus o criou pessoa em relação às outras, à semelhança das Pessoas divinas, e não fechada em si mesma. Na relação da pessoa com as demais se encontra a sua dignidade. Com efeito, a pessoa humana é um ser essencialmente social. Sua liberdade está em sua dimensão social. Liberdade e sociabilidade são inseparáveis. É nessa conjunção que se reconhece a dignidade humana.

Ora, “o trabalho é uma relação social” (GASDA, 2010, p. 585). No mundo do trabalho, o ser humano é chamado a exercer sua liberdade e expressar sua dignidade. Nesse sentido, pode-se entender a afirmação da Laborem Exercens: “Quando trabalha, o homem não transforma apenas as coisas materiais e a sociedade, mas realiza-se a si mesmo” (LE 26). Todavia, só há a realização do humano se e somente se o fim do trabalho for a pessoa humana, e não um fim em si mesmo, como se verifica no sistema capitalista de produção. Assim como a obra da criação divina tem por fim o ser humano, também o trabalho deve ter esse mesmo fim. Somente desse modo toda pessoa humana domina e submete o mundo.[6]

Como relação social, o trabalho constitui parte essencial no processo de socialização humana. Pode-se sustentar que sua característica principal é ser espaço de reconhecimento do outro (GASDA, 2010, p. 588), pois por ele as coisas materiais e a sociedade são transformadas e o ser humano se realiza. Exatamente por isso o trabalho humano pode ser considerado continuação do trabalho divino. Deve ser criador como foi o do Criador. Nele o ser humano se reconhece a imagem de Deus. Todo trabalho que reflete o ser humano como imagem e semelhança de Deus humaniza; o contrário desumaniza.

À luz da dimensão social do trabalho, proposta pela Laborem Exercens, a nova configuração do trabalho, que atualmente se desenha no sistema de produção capitalista, não se apresenta como humanizadora. Nela não se reflete o humano como imagem e semelhança de Deus. No espaço celularizado, onde cada trabalhador tem de se comportar como vigilante do outro, não há lugar para o trabalho como espaço de reconhecimento do outro: não se valoriza o trabalhador, busca-se vigiá-lo. A relação vigilante-vigiado é o avesso das relações entre pessoas. No trabalho em equipe, em que cada operário tem de atingir sua parte no patamar de produtividade exigido de cada célula, está ausente a relação entre pessoas. Falar de liberdade no trabalho pelo simples fato de o trabalhador poder criar, usar de seus conhecimentos e inventar em vista tão somente do aumento da produtividade – portanto, não sendo considerado em sua dignidade de pessoa – é a mais absurda das ideologias. Equivale ao absurdo de sustentar que a servidão é voluntária. A nova configuração do trabalho, com todo o aparato que o sustenta, é o desmentido de um trabalho humanizador. O sofrimento que o trabalhador enfrenta no dia a dia nega a sua dignidade. O trabalho atual não realiza o ser humano, ao contrário, o oprime. O operário vive para o trabalho. O conhecimento que ele adquire fora da fábrica, emprega-o nela. Em seu descanso, dedica-se ao trabalho. Ao contrário do proposto no livro do Gênesis, no qual o trabalho visa ao descanso e, neste, o trabalhador contempla a sua obra e se encontra consigo mesmo, o descanso do operário visa ao trabalho; ou seja, é o trabalho per se, e não o trabalho para o trabalhador. O trabalho humano do Gênesis se opõe ao trabalho desumano da revolução tecnológica.

Diante dessa nova configuração do trabalho, como propor uma espiritualidade do trabalho? De que modo o trabalhador, oprimido em seu trabalho, pode encontrar nele a fonte de libertação, o rosto de um Deus Amor? Que caminho propor para o operário sentir-se imagem de Deus num trabalho que não lhe possibilita a realização de si mesmo, tampouco a transformação da sociedade? O que se pode dizer ao ser humano no desumano da exploração capitalista senão que o trabalho, nesse sistema, corrói até mesmo o caráter de muitos? Do contrário, quem, em sã consciência, se tornaria vigilante do colega se não se sentisse vigiado por ele? Somente num espaço em que as pessoas têm condições de se relacionar à semelhança das Pessoas divinas pode-se falar de uma espiritualidade do trabalho, pois somente assim os trabalhadores podem viver em comunhão, na construção de um mundo em que impera a solidariedade.  

Bibliografia

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2008.

FOULCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1991.

GASDA, E. E. El sentido del trabajo. 2010. Tese de doutorado – Facultad de Teología, Departamento de Teología Moral y Praxis de la Vida Cristiana, Universidad Pontificia Comillas, Madrid, 2010. p. 301-345; 533-614.

JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Laborem Exercens sobre o trabalho humano. São Paulo: Loyola, 1981.

KATZ, H.; GREINER, C. Arte & cognição. São Paulo: Annablume, 2015.

PINTO, G. A. A organização do trabalho no século XX: taylorismo, fordismo e toyotismo. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

SANSON, C. Trabalho e subjetividade: da sociedade industrial à sociedade pós-industrial. Cadernos IHU, São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, ano 8, n. 32, 2010.

[1] Cf. SANSON, C. “Trabalho e subjetividade: da sociedade industrial à sociedade pós-industrial”, p. 58. O conhecimento intelectual, “o saber operário” torna-se o excedente apropriado pelo capital. A expropriação se dá não mais pelo tempo de trabalho individual ou coletivo, mas pela “captura do valor que é produzido pelos recursos imateriais”.

[2] Cf. PINTO, G. A. A organização do trabalho no século XX, p. 79-80. A celularização consiste em organizar os postos de trabalho em conjuntos abertos (e não como departamentos). Cada um desses conjuntos de postos de trabalho foi denominado “célula de produção” e constitui-se de equipes de trabalhadores.

[3] Ibid., p. 80. Por exemplo, na fábrica de automóveis: “Um conjunto de postos responsáveis pela montagem dos eixos; outro, pelo acoplamento do sistema de suspensão; o outro, pelos freios”, e assim por diante.

[4] Cf. FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 173-199. Na concepção de Foucault, o panóptico “é o dispositivo do poder disciplinar exemplar. Sistema arquitetônico de uma torre central e de um anel periférico, pelo qual a visibilidade e a separação dos submetidos permitem o funcionamento automático do poder, ou seja, a consciência da vigilância gera a não necessidade objetiva da vigilância. O panóptico tem por objetivo ‘induzir, no detento, um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder’” (p. 177).

[5] Cf. SHIROMA, E. O. Mudança tecnológica, qualificação e políticas de gestão: a educação da força de trabalho no modelo japonês. 1993. Tese de doutorado – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993 apud PINTO, G. A. A organização do trabalho no século XX, p. 90.

[6] Cf. GASDA, E. E. El sentido del trabajo, p. 585-587. O autor faz excelente análise sobre a sociabilidade do trabalho.

Ivonil Parraz

Vigário paroquial em Botucatu (SP). Doutor em Filosofia pela USP. E-mail: [email protected]