Publicado em maio-junho de 2023 - ano 64 - número 351 - pp.: 28-35
Os sessenta anos do Concílio Vaticano II e os dez anos de pontificado do papa Francisco: um caminho de resgate comunicacional
Por Neusa Santos*
O artigo resgata os caminhos da comunicação no catolicismo desde o Concílio Vaticano II, com destaque paraos dez anos do pontificado de Francisco, em sua forma genuína de dialogar com o mundo, e os avanços da Igreja no ambiente digital. O texto aponta para aspectos do chamado do papa para uma releitura do Concíliocomo modo de sairmos de nós mesmos, estabelecendo um diálogo sinodal com o mundo contemporâneo.
Introdução
Na celebração do 60º aniversário do Concílio Vaticano II, recordamos alguns aspectos que mudaram a história e trouxeram novas formas de evangelização. Um deles foi o enfrentamento dos desafios daquele tempo, com destaque para o avanço da tecnologia e, de modo especial, para o advento da televisão.
O Concílio Vaticano II, iniciado em 11 de outubro de 1962, no pontificado de João XXIII, tinha como ponto principal o aggiornamento, ou “atualização”, acerca dos vários temas eclesiais abordados pelos padres conciliares, expresso nos documentos aprovados pelo Concílio: quatro constituições, nove decretos e três declarações. Ao longo dos últimos sessenta anos, não somente as questões determinadas pelo Concílio foram objeto de discussão entre teólogos e no interior da própria Igreja, mas também a própria prática da Igreja, dividida entre continuidade e ruptura.
Ao celebrarmos uma década do pontificado de Francisco, constatamos que, durante seu pastoreio, assistimos a fatos raros do ponto de vista histórico, que o tornam bastante inspirador e relevante para a Igreja e para o mundo. Internamente, podemos apontar como acontecimento paradigmático a coexistência de dois papas: o emérito, Bento XVI, e o papa Francisco. Externamente, no final de 2019 e nos anos seguintes, a humanidade foi profundamente abalada pela pandemia da covid-19, que vitimou milhões de pessoas no mundo inteiro. Aliás, para os propósitos deste artigo, uma lembrança bastante significativa é, justamente, a emblemática foto que correu o mundo por ocasião da Semana Santa: no dia 27 de março de 2020, o Santo Padre proferiu uma bênção Urbi et Orbi extraordinária, em uma praça de São Pedro vazia. Essa decisão foi tomada devido à pandemia da covid-19, para permitir que as pessoas o acompanhassem pelos meios de comunicação. O Santo Padre, sozinho, percorreu a praça de São Pedro, no Vaticano.
Certamente, muitas são as possíveis interpretações para esse acontecimento. Seria interessante pensar esse evento histórico em sintonia com a narrativa do Evangelho de João a propósito do “pão da vida”: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá fome, quem acredita em mim nunca mais terá sede…” (Jo 6,35-69). Vale destacar o final do texto de João: “A partir desse momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com Jesus. Então Jesus disse aos doze: ‘Vocês também querem ir embora?’ Simão Pedro respondeu: ‘A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Agora nós acreditamos e sabemos que tu és o Santo de Deus’” (Jo 6,66-69).
1. O Concílio Vaticano II
Não há dúvida de que o Concílio Vaticano II representou para o catolicismo, particularmente, uma encruzilhada fundamental. O contexto histórico, observado do ponto de vista do continente europeu, era de preocupação com o futuro da humanidade. Afinal, em 11 de outubro de 1962, dia em que se iniciou o concílio que iria mudar o jeito de ser da Igreja no mundo, ainda estavam muito vivas na memória das populações as atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Os campos de concentração e de extermínio, como o de Auschwitz, por exemplo, a própria violência perpetrada contra os opositores do nazismo, a destruição em massa das cidades europeias, a negação dos próprios valores cristãos foram alguns dos horrores que apavoraram não apenas os soldados e civis diretamente implicados nas muitas batalhas, como também – e sobretudo – os milhões de órfãos da guerra. A pergunta que qualquer pessoa honesta e bem-intencionada poderia se fazer era: como foram possíveis esses acontecimentos tão abomináveis, considerando o fato de a humanidade ocidental ser oriunda de fontes inspiradoras tão límpidas como a filosofia grega e as próprias raízes cristãs?
O desejo e a urgente necessidade de uma resposta que não fosse apenas um diagnóstico, mas igualmente uma proposta de horizonte para refundar a convivência humana, levaram a Igreja católica, na figura dos padres conciliares, a propor uma saída que continua válida até os dias atuais, particularmente quando relida com base nos esforços das comunidades para atualizar a fé e celebrar a confiança na força do Espírito de Deus na condução da história.
Sem nos determos em detalhes como o “pacto das catacumbas”, “o movimento litúrgico” ou o “vernáculo na missa”, por exemplo, podemos dizer que o Concílio Vaticano II ofereceu ao século XX – e agora, no século XXI, nos proporciona como possibilidade – a oportunidade de renovado e profundo reencontro com a grandiosidade da tradição cristã, escondida debaixo da poeira de poder acumulada nas instituições católicas. Dentro e fora da Igreja, foi o tempo do resgate do humanismo. A valorização do ser humano, do personalismo, da comunicação entre as culturas, entre tantos outros valores, foi um dos muitos paradigmas que passaram a inspirar as comunidades mundo afora.
Esses marcos teológicos e civilizatórios tiveram muitos desdobramentos. Aqui na América Latina, coincidiram com as paradigmáticas Conferências dos Bispos Latino-americanos no Rio de Janeiro, em Medellín, Puebla e Aparecida, as quais, por sua vez, acentuaram que, para além do humano abstrato, a Igreja e a própria humanidade têm, diante de si, o desafio de descobrir a mulher e o homem pobres.
2. O papa Francisco
Passados sessenta anos do histórico Concílio, surgiu o primeiro papa latino-americano. Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, Argentina, foi escolhido para suceder a Bento XVI, no ano de 2013.
A profundidade da crise institucional na qual se deu essa escolha ainda precisa ser estudada pelos especialistas e documentada pelos historiadores. Principalmente quando se levam em consideração as observações do mundo secularizado, o fato é que um novo modelo de pontífice ressurge com o papa Francisco. O bispo de Roma é percebido nos ambientes universitários, nos meios jurídicos, nos meios digitais, no meio da juventude, como o papa que busca resgatar o que o cristianismo tem de essencial: a sinodalidade.
Não por acaso, ele adotou o nome de um santo que é também uma referência civilizatória. Francisco, o santo de Assis, com seu modo de viver pobre e fraternal, continua conquistando milhões de mulheres e homens, porque, no século XIII, quando o mundo deixava o feudalismo para ingressar no período que ficou conhecido como Era Moderna, ele já se apresentava como alternativa a um mundo no qual os salvos-condutos eram o dinheiro e o poder da riqueza.
Nesse ponto, podemos identificar a semelhança entre o momento histórico atual e a referência teológica mencionada no texto de São João. Simbolicamente falando, poder-se-ia dizer que o “pão da vida” que nos propõe Francisco é a volta institucional aos pobres, é o respeito à “casa comum”, é o zelo com a “Amazônia”, é a valorização do “ministério feminino”, é o caminhar juntos.
Como Jesus, Francisco não teme a solidão, justamente por acreditar na força evangelizadora da própria mensagem cristã. Afinal, a necessidade do mundo e a urgência de revelar o rosto de Deus que salva a todos porque ama os pobres movem céus e terras para que os paradigmas fundamentais do cristianismo permaneçam com critérios para organizar a vida cristã e se tornem cada vez mais inspiradores para as muitas instituições preocupadas com a melhoria da convivência humana neste século e nos vindouros.
2.1. A visibilidade da Igreja no pontificado de Francisco
A imagem do papa Francisco – homem de carisma muito particular e com perfil de comunicador – é de fácil
alcance para um público mais amplo; suas mensagens são difundidas não só pelos meios de comunicação católicos,
mas também em todos os cantos do planeta, com apontamentos para o diálogo, a sinodalidade, o respeito às
diversidades, a compaixão, o compromisso com o planeta e a casa comum.
Ele reconstrói a imagem da Igreja nas mídias sociais, impondo um vocabulário apropriado para o mundo contemporâneo e enfatizando os aspectos positivos e os perigos da inserção do catolicismo no ambiente midiático das redes, tendo em vista a vivência dos valores cristãos e a visibilidade da religião católica. Podemos dizer que o papa Francisco é o mais midiático entre os adultos não nascidos na era das redes. Ele é capaz de falar uma linguagem própria das mídias digitais, mantendo nove contas em idiomas diversos no Twitter, bem como presença noInstagram e no Facebook, com milhões de seguidores em todas as redes sociais. No ano de 2022, ficou na 28ª posição no ranking de contas do Twitter, figurando entre os quarenta mais influentes do mundo em contas representadas por figuras públicas. Esses números o tornam o personagem que mais lidera a inserção do catolicismo nas mídias. Logo no início de seu pontificado, ao dirigir-se aos comunicadores após a eleição, o papa Francisco destacou:
Ao longo dos últimos tempos, não tem cessado de crescer o papel dos mass media, a ponto de se tornarem indispensáveis para narrar ao mundo os acontecimentos da história contemporânea. Por isso, vos dirijo um agradecimento especial a todos pelo vosso qualificado serviço – trabalhastes… e muito! – nos dias passados, quando os olhos do mundo católico, e não só, se voltaram para a Cidade Eterna, nomeadamente para este território que tem como “centro de gravidade” o túmulo de São Pedro. Nestas semanas, tivestes ocasião de falar da Santa Sé, da Igreja, dos seus ritos e tradições, da sua fé e, de modo particular, do papel do papa e do seu ministério (FRANCISCO, 2013).
2.2. Dez anos de pontificado
A celebração dos dez anos de pontificado de Francisco traz à tona algumas das muitas mensagens que apontam para uma evolução midiática da Igreja católica. Na primeira mensagem do 48º Dia Mundial das Comunicações, em 2014, o papa dizia que “a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos” (FRANCISCO, 2014). No tom desta e de outras manifestações, o papa Francisco foi direcionando a Igreja para o encontro da fé nos espaços digitais, em sites de santuários, arquidioceses e outros ligados à Igreja católica no mundo. Aos poucos, vai se intensificando a inserção de narrativas midiáticas nessas plataformas de comunicação, apontando para a compreensão do papa segundo a qual “a rede é um recurso do nosso tempo: uma fonte de conhecimentos e relações outrora impensáveis” (FRANCISCO, 2019b).
Ao pensarmos na comunicação em seu sentido mais profundo e genuíno, como interação, diálogo, entendimento, percebemos que, ao longo desta primeira década do pontificado de Francisco, houve vários e profundos avanços no sentido do diálogo com o mundo e com a própria instituição, desde a congruência e a modernização do site oficial do Vaticano (www.vatican.va), o principal site da Igreja católica, no qual se encontra o Vatican News, até o nascimento do Dicastério para a Comunicação, inaugurado em 2016, entidade que reúne nove setores da mídia vaticana, que antes eram separados. O papa Francisco, em diálogo com o mundo, chama a sociedade para o cuidado com a relação entre técnica e vida humana quando, por exemplo, em mais uma mensagem para o 53º Dia Mundial das Comunicações Sociais, faz o alerta: “‘Somos membros uns dos outros’ (Ef 4,25): das comunidades de redes sociais à comunidade humana”. Vivemos em uma nova cultura, marcada por fatores de convergência e multimidialidade, que precisa de uma resposta adequada por parte da Sé Apostólica no âmbito da comunicação; não um simples “agrupamento coordenativo”, mas um modo de harmonizar para produzir uma melhor oferta de serviços em uma cultura amplamente digitalizada (FRANCISCO, 2019a). Isso implica uma mudança institucional, passando de um trabalho isolado ou individual para um trabalho conectado, em sinergia.
Conclusão
A Igreja católica tem feito grande esforço para comunicar o Evangelho, anunciando a mensagem de Jesus Cristo por intermédio das ferramentas disponíveis nas várias épocas históricas, desde a oralidade, o papel, até as novas tecnologias e, sobretudo, os meios digitais. O caráter comunicacional do papa Francisco, de carisma muito particular, possibilitou grandes avanços na visibilidade da Igreja e na construção de uma nova cultura na era digital, das grandes audiências às mensagens específicas nos meios digitais. Com uma imagem de fácil acesso, seja pela sua capacidade
comunicativa, seja pelas mensagens reflexivas ou pelo entendimento da comunicação como acontecimento humano, o papa Francisco resgata e aprofunda a histórica abertura da Igreja aos meios de comunicação. A abertura aos meios de comunicação social se deu durante o Concílio, quando nasceu o decreto Inter Mirifica, que, entre outras coisas, afirma:
[…] merecem especial atenção os meios que atingem não apenas indivíduos isolados, mas a multidão no seu conjunto, toda a sociedade humana. Destacam-se entre eles a imprensa, o cinema, o rádio, a televisão e outros do mesmo gênero, que se denominam meios de comunicação social. A Igreja, como mãe, sabe que esses meios, se usados corretamente, prestam um enorme serviço ao gênero humano, dão eminente contribuição para o lazer e o cultivo dos espíritos e ajudam a propagar e a tornar mais consistente o Reino de Deus. Mas sabe também que esses mesmos meios podem ser usados contra os propósitos do Criador e contribuir para a degradação dos seres humanos. A Igreja sofre ao constatar que os males que afligem a sociedade em que vivemos são, muitas vezes, decorrência do mau uso desses meios (DARIVA, 2003, p. 70).
A reestruturação do Concílio Vaticano II em relação às comunicações sociais, ao longo da história, solidificou as mudanças da Igreja no que diz respeito aos meios de comunicação, reforçadas pelo pontificado de Francisco, a partir de 2013, que reconheceu e potencializou esses meios como ferramentas de evangelização e de diálogo com o mundo contemporâneo. É no pontificado de Francisco que a Igreja tem sua maior visibilidade midiática, o que traz à tona outro jeito de comunicar a fé, por meio do uso da cultura dos meios digitais.
A visibilidade mediática – na verdade, intermediática – constitui a “protuberância” tecnossimbólica e imaginária do processo de globalização planetária para deslizamento veloz de textos, imagens e/ou sons – de um contexto glocal a outro, de uma rede a outra, de um media a outro, de um produto (ciber) cultural a outro –, quase regido por agendas temáticas diuturnamente sufragadas por audiências (de massa e/ou ciberespaciais) (TRIVINHO, 2012, p. 3).
Assim, entendemos que a comunicação, com suas lógicas, dispositivos e operações, está em constante evolução. A religião, ao fazer uso dela, também acompanha essa evolução, o que sugere novas linguagens e formas de dialogar com o mundo contemporâneo.
Referências bibliográficas
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CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et Spes: Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual. In: CONCÍLIO
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DARIVA, Noemi (org.). Comunicação social na Igreja: documentos fundamentais. São Paulo: Paulinas, 2003.
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MARTINO, Luís Mauro de Sá. Teorias das mídias digitais. Petrópolis: Vozes, 2014.
TRIVINHO, Eugênio. Glocal: visibilidade
Neusa Santos*
Ir. Neusa Santos, ciic, religiosa da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, fundada por SantaPaulina, é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; mestre em Comunicação e Práticas de
Consumo pela ESPM-SP; assessora para Comunicação e Mídias Digitais da Confederação Latino-americana e
Caribenha de Religiosos (Clar); jornalista e assessora de Comunicação da Conferência dos Religiosos do Brasil
(CRB Nacional).