Publicado em número 230 - (24-27)
O povo celebrante: sujeito da celebração
Por Frei Faustino Paludo, OFMcap
1. Introdução
Nada mais justo que celebrar os 40 anos da promulgação da Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium[1] fazendo o resgate dos eixos articuladores da renovação e reforma da ação celebrativa da Igreja. Como fruto maduro de todo um movimento de renovação, a Constituição teve como centro de convergência o “povo de Deus e sua participação ativa, consciente e plena nas riquezas da Sagrada Liturgia”.
A Sacrosanctum Concilium inspirou-se na eclesiologia de comunhão e de participação, que a fez superar os documentos anteriores do magistério eclesiástico[2]. Situou-se na perspectiva do povo de Deus, num autêntico gesto de quem desejava mergulhar na alma do povo e abrir para ele os tesouros e riquezas da Sagrada Liturgia escondidos por tantos séculos[3].
A Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia foi o primeiro documento a ser aprovado e promulgado. Por isso mesmo, deve ser avaliado no conjunto dos documentos conciliares. A compreensão da Igreja como “mistério” e “povo de Deus”, postulada pela Lumen Gentium em seus dois primeiros capítulos, além de favorecer uma visão mais bíblica, sacramental e antropológica, deu maior consistência e amplidão à eclesiologia da Constituição Litúrgica. A Gaudium et Spes abriu a liturgia para a realidade da pessoa, da sociedade e da cultura.
A obra de renovação e de reforma litúrgica desencadeada pelo Vaticano II, através da Sacrosanctum Concilium, foi monumental. Todavia, não podemos parar na admiração do monumento. Urge abrir as janelas do nosso tempo para que o sopro do Espírito, presente nos 130 artigos dessa Constituição conciliar, inspire as Igrejas locais, as comunidades e as equipes de liturgia na busca e promoção de celebrações orantes, pascais, simbólicas, participativas e inculturadas.
2. O povo sacerdotal
A liturgia é ação da Igreja. “As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é ‘sacramento de unidade’, povo santo reunido e ordenado sob a direção dos bispos. Por isso, estas celebrações pertencem a todo o corpo da Igreja” (SC 26). É toda a comunidade, o corpo unido à Cabeça, que é Cristo, quem celebra. A Constituição conciliar sublinha, assim, a dimensão eclesial das ações litúrgicas. Evidencia o primado do comunitário sobre o particular. As celebrações litúrgicas “manifestam e implicam” (SC 26) todo o corpo da Igreja. Isso evidencia a íntima relação entre a Igreja e sua ação litúrgica. No modo de preparar e de realizar determinada ação litúrgica, a Igreja deveria aparecer e ser reconhecida como povo santo, corpo de Cristo.
O Concílio desloca o centro. De uma liturgia centralizada na pessoa do “sacerdote celebrante” para a assembleia do “povo sacerdotal”. “As orações dirigidas a Deus pelo sacerdote que preside à comunidade na pessoa de Cristo são rezadas em nome de todo o povo santo e de todos os que estão presentes” (SC 33). Já não se fala do “sacerdote que celebra” e dos fiéis que assistem. Todos os membros da assembleia devem estar envolvidos na e pela ação celebrativa. “Para isso, a Igreja procura, solícita e cuidadosa, que os cristãos não assistam a este mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos” (SC 48).
Em vista da ação eminentemente eclesial, o Concílio declara: “É desejo ardente da mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação na celebração litúrgica que a própria natureza da liturgia exige e à qual o povo cristão, ‘raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido’ (1Pd 2,9), tem direito e obrigação, por força do batismo” (SC 14).
Observe-se que o documento conciliar fala repetidas vezes de “povo cristão”, “povo adquirido”, “povo santo”, “participação de todo o povo”. Se, por um lado, a liturgia é “obra de Cristo e da Igreja, seu corpo” (SC 7), ela é, por outro, também ação do “povo santo reunido e ordenado sob a direção dos bispos” (SC 26). “A principal manifestação da Igreja se faz numa participação perfeita e ativa de todo o povo santo de Deus na mesma celebração” (SC 41).
O Concílio resgata a liturgia como ação do povo sacerdotal, numa feliz referência a 1Pd 2,9. Assim, o povo é convocado e congregado para a escuta da Palavra e a renovação da aliança com o Senhor (cf. Dt 4,10; 10,4.9; Ex 19-24). A resposta ao convite de Deus, que se traduz em adesão e participação, constitui a assembleia do povo sacerdotal. Jesus Cristo, o sumo sacerdote, reúne seu povo, a quem, pelo batismo, torna apto para participar de seu sacerdócio. “Fez do novo povo um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai” (cf. Ap 1,6; 5,9-10). Aos fiéis que une inteiramente à sua vida e missão Cristo dá também parte no seu múnus sacerdotal a fim de exercerem um culto espiritual, para a glória de Deus e salvação dos homens (cf. LG 31.34). Assim, todos os discípulos de Cristo, perseverando juntos na oração e no louvor a Deus (cf. At 2,42-47), ofereçam-se a si mesmos como hóstia viva, santa, agradável a Deus” (Rm 12,1; LG 10-11). É na ação celebrativa da assembleia cristã que se manifesta e se realiza o caráter sacerdotal de todo o povo de Deus, o qual se oferece e rende graças ao Pai (cf. SC 48; LG 10) por meio de Cristo, no Espírito Santo.
3. Ação participativa
Do povo sacerdotal emerge o fundamento da participação ativa na liturgia da assembleia, isto é, da participação ativa e plena do corpo e do espírito, “ardentemente desejada pela Igreja e exigida pela própria natureza da celebração”. Observe-se que a Constituição jamais se refere à “assistência das ações litúrgicas” como um ideal a ser alcançado pela pastoral litúrgica. Ela fala sempre de uma “participação ativa, plena, frutuosa e consciente” (cf. SC 11.14) como meta a ser alcançada pelo serviço pastoral. O Pe. H. Schmidt reconhece que a necessidade da participação do povo na liturgia é tantas vezes repetida na Sacrosanctum Concilium, a ponto de ser comparada ao estribilho de uma ladainha. Essa insistência demonstra que a “participação ativa, consciente e plena” é um dos princípios inspiradores e orientadores da obra de renovação e reforma litúrgica postulada pelo Concílio[4]. Ocorre, também, que a liturgia é ação memorial, atualização do acontecimento salvador (SC 4-5), e não um espetáculo ao qual se deva assistir na arquibancada.
Ao fato de a liturgia ser “culminância para a qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde emana toda a sua força” (SC 10) segue-se a conclusão de que todo membro da comunidade eclesial tem direito e obrigação à participação consciente, ativa e plena na ação celebrativa, por força do batismo (SC 14). Naturalmente a assembleia tende à participação. Sem participação, a assembleia seria um contrassenso. Assembleia do povo sacerdotal e participação se atraem e se completam. A participação ativa do povo na ação litúrgica também realiza de forma plena e acabada a assembleia e a conduz a ser aquilo mesmo para o que foi convocada. Agora, à medida que se resgata a assembleia celebrante, não se pode deixar de tratar igualmente da participação ativa dos seus integrantes.
A Constituição conciliar não define formalmente em que consiste a participação ativa[5]. Ela apresenta uma descrição que, naturalmente, se contrapõe à simples assistência: “A Igreja procura, solícita e cuidadosa, que os cristãos não assistam a este mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, piedosa e ativamente, por meio de uma boa compreensão dos ritos e orações; sejam instruídos na palavra de Deus; alimentem-se na mesa do corpo do Senhor; deem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que dia após dia, por meio de Cristo mediador, progridam na união com Deus e entre si, para que finalmente Deus seja tudo em todos” (SC 48).
A participação consciente, ativa e frutuosa dos fiéis, promovida por todos os meios, transcende a simples presença física e o rezar devotamente. Supõe disposições de reta intenção, harmonia entre a mente e as palavras, cooperação com a ação de Deus (cf. SC 11), equilíbrio entre participação interna e externa (cf. SC 19), incentivo das aclamações, respostas, antífonas, cânticos, ações, gestos e atitudes do corpo (cf. SC 30). Assume formas diversificadas em conformidade com a idade, as circunstâncias, o gênero de vida e o grau de cultura religiosa (cf. SC 19). A participação desejada pelo Concílio emerge da ação que envolve vitalmente o sujeito da ação litúrgica e deve se realizar nos momentos de oração, quando a assembleia, como um só coração e uma só voz, se dirige com confiança ao Pai, apresentando as suas necessidades e oferecendo seu louvor[6]. “Para ser autêntica deve envolver a pessoa como um todo, e levando em conta que vivemos numa cultura profundamente marcada por rupturas na maneira de compreender e viver no mundo, celebrar, envolvendo-se por inteiro, torna-se um desafio para o sujeito da celebração”[7].
Em vista da participação consciente e ativa do povo sacerdotal, a Constituição conciliar refere-se à formação litúrgica, tanto do clero quanto dos fiéis, como a uma necessidade primordial e um pressuposto indispensável (cf. SC 14-19): “Procure-se também inculcar, por todos os modos, uma catequese mais diretamente litúrgica, e prevejam-se nas próprias cerimônias, quando necessário, breves esclarecimentos” (SC 35)[8]. Quer dizer, não haverá participação do povo sacerdotal, fiéis e ministros, sem compreensão daquilo de que se participa. A própria “reforma geral da liturgia” recomenda o acesso e a participação do povo cristão: “… o texto e as cerimônias devem ordenar-se de tal modo, que de fato exprimam mais claramente as coisas santas que eles significam e o povo cristão possa compreendê-las facilmente, à medida do possível, e também participar plena e ativamente da celebração comunitária” (SC 21). Em favor da mesma participação ativa, o Concilio recomenda que as cerimônias resplandeçam pela nobreza, clareza, objetividade e adaptação à capacidade de compreensão dos fiéis, evitando, assim, as muitas explicações (cf. SC 34). A reforma dos ritos e dos livros litúrgicos deveria favorecer a participação ativa, consciente, plena e frutuosa da assembleia.
A própria Constituição faz uma advertência e assinala por onde começar a formação litúrgica: “… não havendo esperança alguma de que isto aconteça, se antes os pastores de almas não se imbuírem primeiramente do espírito e da força da liturgia e não se tornarem mestres nela, é absolutamente necessário que se dê o primeiro lugar à formação litúrgica do clero” (SC 14). Igualmente, os que exercem ministérios e serviços devem estar “imbuídos do espírito litúrgico e preparados para executar as suas partes, perfeita e ordenadamente” (SC 29).
4. Ação ministerial
A assembleia do povo sacerdotal convocada para a ação celebrativa não é uma massa amorfa nem um público desarticulado, “mas povo santo reunido e ordenado sob a direção dos bispos” (SC 26). É a comunidade eclesial reunida e articulada ao redor do ministro que a “preside na pessoa de Cristo” (SC 33)[9] e em torno da ação dos diferentes ministérios e serviços distribuídos entre os seus membros. A participação ativa, nas celebrações litúrgicas, consiste em que cada um, ministro ou fiel, ao desempenhar uma função, “faça tudo e só aquilo que pela natureza da coisa ou pelas normas litúrgicas lhe compete” (SC 28). Isso evidencia a dimensão comunitária da participação (cf. SC 27) e demonstra que a diversidade de funções e serviços no interior da assembleia deve ser respeitada.
O fato de a celebração litúrgica ser uma ação de toda a comunidade dos batizados e das pessoas animadas por sua fé não significa que nela deva haver nivelamento ou personalismos. Quem exerce o ministério da presidência não deve assumir outras funções além da sua nem transferir aos fiéis funções que são da competência do ministério ordenado. Um é o que preside, outro é quem entoa o canto, ou proclama a palavra de Deus, ou efetua os comentários. Não corresponde à natureza comunitária da liturgia e à dinâmica da participação ativa e plena uma mesma pessoa açambarcar diferentes ministérios e funções. A ação litúrgica pertence a todo o corpo, mas, sendo um corpo articulado, esta ação atinge a cada membro de modo diferente, conforme a diversidade de ordens e ofícios (cf. SC 26).
A celebração se inscreve na dinâmica da inter-ação (da ação conjunta), na qual todos os presentes atuam, seja como membros da assembleia, seja como ministros e servidores. É sempre assembleia quem reza, canta, escuta, dialoga, intervém, medita, dança e age, servida por ministros e servidores. A Sacrosanctum Concilium lembra que os diferentes servidores da assembleia, tais como os que servem o altar (acólitos), leitores, comentaristas e componentes do coral, “exercem um verdadeiro ministério litúrgico”, sendo convidados a desempenhar a função que lhes cabe “com a piedade sincera e a ordem que convém a tão grande ministério e que, com razão, o povo de Deus exige deles” (SC 29).
O desafio está em situar cada uma das funções no conjunto das demais e todo o ministério no contexto comunitário e eclesial da celebração, de tal maneira que, pela própria organização da ação litúrgica, a Igreja apareça tal como é constituída em suas diversas funções e ministérios (cf. IGMR 58).
Enfim, o conjunto dos enunciados da Sacrosanctum Concilium destaca a assembleia das pessoas de fé, a qual se reúne para celebrar os mistérios cristãos, como sinal da Igreja de Cristo, e atua como sujeito da ação celebrativa. Povo sacerdotal e assembleia santa, congregada pelo Espírito Santo e presidida por seus pastores. No interior dessa assembleia todos são e podem sentir-se agentes da celebração, segundo a diversidade de ministérios, funções e serviços. A participação litúrgica, segundo o Vaticano II, consiste em que todos se sintam vitalmente comprometidos e exerçam aquilo que, de fato, lhes compete, pela natureza da ação e pelas normas da liturgia. A participação consciente, ativa e plena é um direito e um dever que assiste a todos os membros do povo celebrante.
Que os sonhos acalentados por séculos de uma liturgia acolhedora e participativa, tendo como sujeito a assembleia do povo santo, consolidada pela reforma e renovação conciliar, se renovem na celebração dos 40 anos da SC em terras brasileiras.
[1] As citações são extraídas dos “Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II”, in Documentos da Igreja I, Paulus, São Paulo, 1997 (existe também versão de bolso).
[2] D. SARTORE, “Igreja e Liturgia”, in Dicionário de Liturgia, Paulus, São Paulo, 1992, p. 573.
[3] “É o cumprimento de um ardente desejo do Papa João XXIII, que um dia, ao terminar uma celebração litúrgica em uma igreja de Roma, assim exclamou: “como sofro ao pensar nas belas orações que acabo de rezar e que vocês não entenderam… É preciso que um dia esses tesouros se tornem acessíveis a todos”. Cf. Guilherme Baraúna, “A participação ativa, princípio inspirador e diretivo da constituição litúrgica”, in Guilherme Baraúna (org.), A sagrada liturgia renovada pelo Concílio, Petrópolis, Vozes, p. 283.
[4] Ibidem, p. 282. ABREVIADO? IBID.?
[5] Julián Lopez, Martin, No espírito e na verdade. Introdução teológica à liturgia, Vol. I, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 211.
[6] “A verdadeira participação ativa, plena e consciente só se verifica no caso de uma perfeita sintonia do corpo e da alma, de todas as faculdades espirituais e corporais, à ação sacra que não é celebrada apenas entre o ministro e Deus, mas engaja vitalmente toda a assembleia litúrgica. Somente esta participação plena e consciente satisfaz em cheio a natureza da liturgia e o caráter somático-espiritual do homem. Tal é a participação visada pelo Concílio, tal é a meta que inspira todos os seus pensamentos e todas as medidas tomadas no intuito de promovê-la e facilitá-la ao máximo”. Cf. Guilherme Baraúna, “A participação ativa, inspirador diretivo da constituição litúrgica”, in Guilherme Baraúna (org.), A sagrada liturgia renovada pelo Concílio, Petrópolis, Vozes, p. 286.
[7] Luiz Eduardo Baronto, “‘Uma só coisa é necessária’ a respeito da participação plena na celebração litúrgica”, in José Ariovaldo da Silva e Marcelino Sivinski (orgs.), Liturgia, um direito do povo, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 58.
[8] Julián Lopez, Martin, No espírito e na verdade. Introdução antropológica à liturgia, Vol. II, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 301.
[9] Luis Maldonado, “A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração”, in Dionísio Borobio (Org.), A celebração na Igreja: liturgia e sacramentologia fundamental, Vol. I, São Paulo, Loyola, 1990, pp. 171-172; Julián Lopez, Martin, No espírito e na verdade. Introdução teológica à liturgia, Vol. I, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 210.
Frei Faustino Paludo, OFMcap