Publicado em novembro-dezembro de 2010 - ano 51 - número 275 - (pp. 12-18)
Valores fundamentais da sexualidade humana
Por Maria Inês de Castro Millen
Este artigo pretende abordar a sexualidade humana e seus valores fundamentais a partir do olhar da Teologia cristã. Isso não quer dizer que seja possível desconectar a temática de outros eixos compreensivos, que são essenciais para o entendimento da rica experiência de ser e de se saber pessoa humana, na plenitude e na beleza de suas possibilidades existenciais. O que se quer dizer é que a Teologia será o fio que perpassará um tecido rico de cores, de reentrâncias, de relevos e de outras costuras.
É possível constatar que, na base do cristianismo e, portanto, da Teologia Moral Cristã, está presente, de modo inequívoco, a experiência do diálogo. O Deus cristão é o Deus da Palavra; é, portanto, Aquele que fala. Mas é também o Deus que escuta o clamor do seu povo e que se compromete fielmente com ele. Ao mesmo tempo, pede que o povo o escute, que responda ao seu apelo e que sele com Ele uma Aliança, comprometendo-se com seu projeto. Os acontecimentos bíblicos que revelam o modo como Deus e o ser humano se relacionam mostram o diálogo, na sua verdadeira estruturação, como um percurso ético que se faz urgente e necessário.
É por isso que não é possível pensar a sexualidade, no horizonte da Teologia cristã, sem estabelecer reais frentes de diálogo com diferentes realidades:
Diálogo com a realidade enquanto tradição, enquanto história dos povos, contada através dos mitos, das lendas, dos ritos e das diversas expressões das culturas. O que se sabe é que privar o ser humano dos seus arquétipos é condená-lo à crônica enfermidade física e metafísica.
Diálogo com a realidade enquanto Tradição, enquanto Palavra de Deus, revelada nas Escrituras. Tradição não como conservação ou preservação de algo imutável do passado, mas como encontro afetivo e efetivo com Alguém, que se faz presente entre nós, como Jesus de Nazaré, o Cristo, o Filho de Deus. Tradição que sinaliza para a realização da Boa-Notícia do Reino, a perene atualização no presente do que recebemos no passado e do que esperamos para o futuro.
Diálogo com a realidade enquanto Tradição pós-bíblica, sobretudo no Ocidente, onde as categorias do pensamento filosófico mediaram a compreensão racional do evangelho.
Diálogo com a realidade a partir da categoria “sinais dos tempos”. O hoje da história exige da Teologia um diálogo sincero com as ciências, com as novas tecnologias, com os responsáveis por uma sociedade plural, policromática, e com todas as pessoas que estão sob a influência de uma nova compreensão e visão de mundo. Assim sendo, a Teologia que reflete sobre a ética cristã da sexualidade só terá plausibilidade se experimentar a abertura a um amplo e respeitoso diálogo transdisciplinar, que leve em conta as diferentes experiências do passado e as realidades da vida presente.
Algumas afirmativas teológicas se fazem necessárias, inicialmente, para traçar o caminho da costura que se pretende, na reflexão aqui assumida: Uma primeira e fundamental afirmação: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27). Essa revelação nos diz que a sexualidade é uma das dimensões essenciais do ser humano. O ser humano, criado como ser sexuado, enquanto homem ou mulher, é imagem de Deus, é semelhante a Deus. “E Deus os abençoou e lhes disse: sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a!” (Gn 1,28). Esse texto sinaliza para Deus que confere à sexualidade uma dimensão criativa. O encontro relacional sexuado que o ser humano estabelece aponta para a fecundidade, para uma participação real no projeto criacional. E tudo isso faz parte não de um imperativo, mas de uma bênção, de um dom.
Uma segunda e não menos fundamental afirmação é a de que a Palavra, que já era no início e da qual somos imagem e semelhança, se fez carne e veio habitar entre nós (Jo 1,1.14). Deus se faz homem, se faz de carne, se faz humano, sexuado.
Esse fato possibilita a confirmação de que a sexualidade é um componente fundamental da personalidade, um modo de ser pessoa, um modo de se manifestar, de sentir, de expressar, de viver e de se relacionar, na comunicação concreta do amor.
Por essa razão é que a sexualidade precisa ser compreendida a partir de uma sadia antropologia que considere as ricas e complexas dimensões do ser humano na perspectiva da unidade básica que o integra e o configura. Fragmentar o humano ou reduzi-lo a uma de suas dimensões produziu e ainda produz muitas teorias e práticas equivocadas que comprometem a essencialidade e a dignidade próprias desse ser criado à imagem de Deus (Bento XVI, 2006, p. 5).
Nesse horizonte, apontamos algumas dimensões que não podem ser desconsideradas quando se quer pensar a sexualidade humana com seriedade: a dimensão biológica, que trabalha a sexualidade como impulso; a dimensão psicológica, que aponta a sexualidade como a força integradora e como chave hermenêutica do “eu”; a dimensão dialógica, que pensa a sexualidade como linguagem de pessoas; a dimensão sociocultural, que compreende a sexualidade na perspectiva da hermenêutica e da configuração da realidade social; a dimensão existencial, na qual a sexualidade aparece como forma de existência pessoal; e a dimensão mistérica, que a percebe como abertura para o mistério da pessoa e das relações que ela estabelece consigo mesma, com os outros, com o mundo e com Deus (Vidal, 2002).
A sexualidade, então, está referida ao mistério da pessoa, ao seu núcleo mais íntimo, à sua configuração mais originária. Ela abrange o ser humano todo, durante toda a sua vida. Há, portanto, também, uma perspectiva equivocada, quando se compreende a sexualidade ligada somente à vida adulta e à procriação. O que existe é uma sexualidade difusa, que impregna todo o ser, em todo o tempo de sua vida, e que não está ordenada somente ao relacionamento sexual genital. Outra consideração que ainda precisa ser feita, desde já, é que a sexualidade não é má em si. No horizonte das afirmações teológicas, feitas anteriormente, não é possível esquecer a revelação de que é Deus quem cria o mundo na sua materialidade e temporalidade e nele se encarna. Portanto, a sexualidade é, no máximo, ambivalente. Ao longo da história, ela se apresenta num clima de enigma e mistério, como realidade ao mesmo tempo assombrosa e fascinante. Acarreta, pois, instintivamente, num primeiro momento, uma dose de assombro, receio e suspeita, pois supera o que alguém pode conhecer de si mesmo e dos outros, e o desconhecido é amedrontador. Ao mesmo tempo, desperta a curiosidade, o desejo e a esperança de aproximação entre as pessoas, e esse é o seu lado fascinante.
Por causa do medo, surge a tentativa de negar a sexualidade, de escondermo-nos dela, de eliminá-la da vida, como se dela fosse possível prescindir. Ledo engano, que já produziu e ainda produz consequências danosas.
Por causa do desejo, surge a tentativa de fazer dela o eixo enucleador da vida ou de banalizá-la, atitudes que refletem a pretensão de despi-la do seu caráter misterioso. Esses equívocos também não trouxeram e não trazem bons frutos.
Nessa perspectiva, busca-se e deseja-se, ao mesmo tempo em que teme-se e rejeita-se. Temor e fascínio são faces de uma mesma realidade. O que não se pode esquecer é que a sexualidade está imbricada no mistério da pessoa, carregada de uma riqueza simbólica e emotiva, que precisa ser considerada e experienciada respeitosamente.
A redução da sexualidade, do mistério da pessoa, ao medo ou ao desejo, aponta para alguns riscos. O primeiro risco é o de um falso espiritualismo, que prioriza o pretender viver como anjo quando se tem um corpo. Outro risco é o de um materialismo desconfigurado, um hedonismo que leva ao prazer pelo prazer, ao corpo pelo corpo, à objetivação do outro. Em ambos os casos, há a negação da subjetividade relacional e a não integração das diferentes dimensões que compõem a pessoa, e duas vertentes da Teologia Moral, não muito felizes, tendem a se fortalecer: o rigorismo ou o laxismo.
Na busca do indispensável equilíbrio, uma compreensão positiva da sexualidade se faz necessária. Não é demais repetir que a sexualidade integrada é força positiva, geradora de energia e de bem-estar e que perpassa todo o ser humano. É força que chama à vida, que cria e recria pessoas e realidades. A sexualidade é a identidade: “Eu sou”, “eu sinto que sou”, na relação com outras identidades constituídas. É essa mesma força que é capaz de despertar nas pessoas o amor, o cuidado pelo outro, pela natureza, por si mesmas.
Falar de sexualidade no horizonte da Teologia traz, portanto, o desafio de pensar de novo coisas velhas e coisas novas sobre a existência humana. E isso faz com que a tarefa da Teologia Moral, que é a de ter uma palavra verdadeira e significativa sobre a sexualidade humana para este tempo, seja enorme. As razões já são conhecidas, mas não é demais enumerá-las novamente.
Primeiro, o cristianismo do passado trabalhou com pressupostos antropológicos hoje superados e que precisam realmente ser revistos e não mais aplicados. O conhecimento atual sobre o ser humano, em função de uma nova sabedoria conquistada pela humanidade, nos coloca diante de paradigmas compreensivos que não podem nem devem ser desmerecidos. A necessidade real de diálogo com outros saberes se faz premente. Hoje, não se concebe mais que aqueles que são chamados a dizer uma palavra significativa, a orientar o comportamento e a vida das pessoas não se esforcem por conhecer e compreender todas as dimensões da realidade humana, levando em conta que a sexualidade, enquanto força integradora do eu pessoal, é um fato vivo, dinâmico, historicamente condicionado, com influências tanto positivas quanto negativas sobre a vida, refletindo possibilidades evolutivas, mas também involutivas.
Segundo, o ser humano atual, apesar de todos os progressos científicos e tecnológicos, de todas as conquistas do conhecimento e da comunicação, vive uma fragilidade, uma fragmentação, um desconforto consigo mesmo e com a sua força sexual criativa. Heidegger referiu-se assim a esse fenômeno:
Nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a atual. Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar o seu conhecimento acerca do homem de um modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de um modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente.
Sendo assim, o ser humano de hoje, como o de ontem, precisa ser compreendido nas suas dores e angústias, nas suas esperanças e sonhos. Desconsiderar a realidade atual, nos seus compassos e descompassos, é ficar respondendo a perguntas que ninguém mais faz e não se esforçar por caminhar na busca de respostas mais plausíveis para as grandes questões que estão postas.
A Teologia Moral traz, portanto, algumas propostas para a reflexão atual sobre a sexualidade humana.
A primeira é a de um retorno às fontes bíblicas. A referência moral dos cristãos é Jesus Cristo. Nesse horizonte, é bom recordar o que disse o Papa Bento XVI, na introdução à encíclica “Deus é Amor”: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, assim, o rumo decisivo”. A verdade é esta:
No cerne, no coração, nas entranhas do Novo Testamento está Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem. E a grande novidade da ética cristã está aí revelada. O Pai oferece, agora, tudo. […] Jesus Cristo é a Nova Aliança, aquele que, na unidade com o Pai e na solidariedade com toda a humanidade, declara a verdadeira lei da Aliança: a Lei do Amor. Não um amor qualquer, mas aquele já demonstrado aos seus discípulos, que são convocados a vivê-lo na solidariedade, na oferta e no serviço (Jo 15,12-17) (Millen, 2005).
A Lei do Amor convida a cada um, na liberdade, a “ser para o outro”, a “carregar os fardos uns dos outros” (Gl 5,13b; 6,2). Assim, as perspectivas bíblicas da Teologia Moral, longe de tentar extrair das Escrituras um catálogo de normas para crer e viver, buscam, em sintonia com as propostas do Vaticano II, apreender os temas de destaque da revelação divina para que eles possam nutrir a vida espiritual das pessoas concretas, inseridas na história de seu tempo.
A segunda proposta pretende clarear alguns conceitos, como, por exemplo, o de corpo/corporeidade, o de sexo/sexualidade e o de castidade.
A palavra “corpo” aponta para a realidade objetiva da nossa condição corpórea; realidade visível, tocável, mutável e, talvez por isso, vítima de muitos equívocos e de muitas distorções por parte das culturas, das sociedades e das religiões. Realidade dimensional que não pode ser negada nem tampouco superestimada, pelo simples fato de ser uma dimensão real e indispensável para a vida, na sua perspectiva ontológica e também no horizonte de sua construção histórico-relacional. Não se pode deixar de afirmar que todas as experiências pessoais se realizam e se explicitam no corpo. Por isso, o modo como o percebemos ou como o tratamos se torna fundamental para a compreensão e nomeação do ser.
A palavra “corporeidade” é mais abrangente, se refere ao “eu espiritual-corpóreo” que vive uma experiência única e irrepetível e indica a inteira subjetividade humana, sob o aspecto de sua condição existencial corporal, na configuração constitutiva de sua identidade pessoal. Corporeidade é, portanto, a expressão, o reflexo visível e a realização do ser humano uno e indiviso. É uma noção mais ampla de corpo e, na verdade, se refere à totalidade da pessoa. Assim, é em função de sua condição corpórea que o ser humano assume sua vida segundo as peculiaridades que lhe são próprias: a historicidade, a individualidade e a pertença a uma comunidade humana, sua imanência no mundo e sua vocação à autotranscendência, sua capacidade de revelar-se e de ocultar-se, sua propensão à relacionalidade e ao encontro (Millen; Bingemer, 2005, p. 180).
Quanto às palavras “sexo” e “sexualidade”, é preciso, do mesmo modo, que se faça uma distinção. Sexo também se refere a uma realidade objetiva, ao sexo de cada um na sua dimensão biológica/genital e ao ato sexual em si.
Sexualidade também é conceito abrangente. A palavra surge no século XIX e quer dizer, como já indicado anteriormente, uma energia que abrange a totalidade da vida da pessoa, revelando sua condição de ser sexuado em todas as relações que estabelece com qualquer outro, em todos os tempos de sua vida.
Alguns autores hoje afirmam que a moral que estuda a sexualidade não pode ser concebida a não ser no horizonte de uma ética da relacionalidade. Isso porque, durante muito tempo, a sexualidade esteve ligada à vida individual, às questões referentes à pessoa e aos seus desejos e impulsos. Hoje não se pode mais negar a importância da “alteridade” na construção da identidade pessoal. O “rosto” do outro é sempre definidor da identidade e das atitudes daquele que é interpelado por ele.
Outra palavra importante é “castidade”, que, num determinado contexto, chegou a ser considerada a “rainha das virtudes”. Castidade não pode mais ser reduzida à continência sexual, mas mantida em toda a sua pluralidade de significados. A melhor tradução dessa palavra é “nitidez”. Muito provavelmente, nossa castidade vem do latim candeo, que significa embranquecer, com o matiz de uma brancura brilhante, ou melhor, transparente. Dessa palavra, surgem termos como “candor”, “candura”. Viver a castidade significa, pois, viver na transparência, no respeito, na nitidez. É preciso compreender que a palavra castidade não tem sentido apenas sexual: a nitidez, o respeito e a transparência invadem todos os campos da relação humana, até mesmo o do dinheiro e o do poder. Dessa forma, podem existir encontros sexuais, genitais ou não, ou pessoas que vivem “celibatos sexuais” de maneira que não servem para quase nada, por não serem castos (Faus, 1999, pp. 65-66).
A terceira quer trazer algumas ideias-chave, revisitadas pela Teologia que se renova com o Concílio Vaticano II. São elas: liberdade, fidelidade, criatividade e responsabilidade. À luz do seguimento de Jesus, todas as pessoas são chamadas à liberdade — “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1) —, mas só existe verdadeira liberdade na fidelidade, pois toda liberdade está referenciada a algo. Para os que creem, a fidelidade sinaliza para a lei inscrita nos corações, que faz com que as pessoas redescubram o projeto que Deus tem para a humanidade. Essa liberdade fiel torna o ser humano responsável e criativo. A responsabilidade, considerada a ideia-mãe da moral cristã, é a capacidade de dar respostas consequentes, que possibilitam o surgimento do “inédito viável”, da novidade criativa, que harmoniza e restaura a vida em todos os sentidos possíveis. Por essa razão, a Teologia Moral hoje está empenhada em formar pessoas adultas, maduras, discernentes e responsáveis, capazes de, na liberdade fiel e amorosa, serem portadoras da novidade que traz a Verdade que liberta e pacifica o ser humano e suas relações.
A quarta proposta é a tentativa de propor uma Teologia Moral Cristã da sexualidade para hoje. A ética cristã da sexualidade, para ter plausibilidade hoje, precisa estar atenta a duas dimensões: à dimensão dos valores fundamentais que se quer garantir e à dimensão do modo como esses valores devem ser transmitidos. Aqui valem as palavras do Papa João XXIII, na abertura do Concílio Vaticano II:
Uma é a substância da antiga doutrina do depositum fidei, e outra, a formulação que a reveste: e é disso que se deve — com paciência, se necessário — ter grande conta, medindo tudo nas formas e proporções do magistério prevalentemente pastoral […] Sempre a Igreja se opôs aos erros, muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Nos nossos dias, porém, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade: julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina que condenando erros (João XXIII, 1969).
Para garantir essas duas dimensões, pode-se dizer que a ética atual da sexualidade aposta numa moral personalista relacional, não mais de atos, mas de atitudes. Nessa perspectiva, a sexualidade é redescoberta como um valor da vida humana e é concebida como a pessoa, masculina ou feminina, em relação com todos os outros, crescendo em direção ao amor. A sexualidade é vista, então, como uma forma de comunhão íntima, que se volta para a relação/comunhão, a partir da inspiração do amor oblativo. É importante relembrar que uma verdadeira relação interpessoal, impulsionada pelo amor, não pode ser anônima, apenas biológica, tampouco só espiritualizada. O amor que é ofertado ao outro e que depende da dádiva que cada um faz de si, enquanto pessoa sexuada, tem uma concretude indispensável. Cada ser humano se relaciona com os outros enquanto ser corpóreo, que tem uma história, que vive num tempo determinado e num lugar identificável. Portanto, atos isolados têm a sua objetividade e podem ser medidos, na sua bondade ou maldade, mas as pessoas só podem ser compreendidas e ajudadas, misericordiosamente, a partir de suas atitudes, que estão conectadas a um contexto específico que deve sempre ser considerado.
A ética cristã aposta, também, em uma moral que seja paraclética e terapêutica. Uma moral fundada na Sagrada Escritura e apoiada nas palavras do Papa João XXIII deve pretender sempre cuidar, aliviar e, se possível, curar as pessoas de seus pecados, seus problemas, suas aflições, suas culpas e suas dores. Por isso, é necessário apontar para a plausibilidade de uma moral paraclética e terapêutica, que leve em conta a vida concreta das pessoas para, a partir desta, fazer o anúncio da boa notícia que consola e encoraja, que é convite sedutor para uma vida em Cristo e no Espírito. Essa moral dinamiza e indica caminhos possíveis de salvação e de libertação para todos e, de modo especial, para os doentes, os abatidos, os cansados e feridos, sem cair no moralismo legalista, que muitas vezes somente pune, castiga e leva as pessoas ao desânimo improdutivo. Ela prefere uma linguagem indicativa e propositiva àquela imperativa e impositiva; ela quer cuidar e curar as pessoas pelo amor e não pela proibição e pelo medo. Essa moral está a favor das expressões que possam indicar o caráter libertador e responsável da lei do Espírito, de modo que a mensagem moral seja compreendida por todos não como algo imposto de fora ao ser humano, mas como um dom que já está presente no interior de cada pessoa e que precisa apenas ser despertado e acolhido.
Uma moral paraclética é aquela que usa a linguagem da paraclese, que é a linguagem própria do Espírito Paráclito, por isso é consoladora, encorajadora, e vincula o coração, a memória e a consciência das pessoas às obras prometidas e realizadas por Deus em favor de suas criaturas, proporcionando-lhes a força necessária para o combate ao egoísmo pessoal e coletivo, ao desprezo para com a vida, à busca desenfreada do prazer e do sexo sem amor e sem referência à dignidade própria de cada um e de todos os humanos, criados à imagem e semelhança de Deus.
Um grande passo na direção da consolidação de uma moral paraclética e terapêutica é a capacidade de assumir o “cuidado” como vocação, como linguagem e como um modo próprio de “ser-no-mundo” (Boff, 1999, p. 99). Cuidado que supõe gratuidade, oferta de si, pelo simples reconhecimento da carência, do vazio e da incompletude presentes em cada criatura. Resgatar essa vocação do ser humano para o cuidado significa rever o modo como facilitamos às pessoas, individualmente, em conjunto e entre si, o acesso ao necessário para uma vida digna, e também o modo como as capacitamos para a organização de si mesmas no encontro com o sentido essencial que as humaniza e que as encaminha para um relacionamento significativo com os outros e com o Totalmente Outro. No entanto, escolher o caminho do cuidado, quando se quer pensar uma nova ética da sexualidade, é propor algo que ainda precisa ser aprendido, talvez reinventado, num mundo que privilegia a competição e o sucesso individual, num mundo onde funciona a lógica da guerra. Aqui se tem uma tarefa para toda a vida: sustentar o empenho no aprendizado do amor e da ternura e o reconhecimento da dimensão fundante do afetivo, do poder da bondade e da afabilidade, contra toda violência e dureza.
Na visão de alguns, sexo e ternura não combinam, pois a sexualidade, ao invés de ser considerada como um ato de ternura, é concebida por muitos como um ato de conquista. A ternura só pode enunciar-se a partir da fratura, e para que ela se faça presente é necessário que se inverta a ideologia do conquistador, e isso significa assumir a consciência da própria fragilidade e agir a partir desta. O amor não é um ato de soberania, mas, antes, uma constatação da fraqueza compartilhada. Somente a lógica evangélica do “Curador ferido”, do “Servo de Iahweh”, aquele que venceu sem fazer vencidos, pode assegurar a plausibilidade desse caminho na contemporaneidade conturbada pela busca descontrolada das vantagens individuais e do prazer desmedido.
Jesus, o Curador Ferido, ao morrer como cordeiro não violento, conduz a todos, pela força do testemunho, à experiência do amor não violento e curativo. Ele oferece esse amor gratuitamente a cada pessoa como um dom que, no entanto, está ligado a uma tarefa. A tarefa consiste na conversão a um modo novo de pensar, de desejar e de agir. A moral que se faz paraclética e terapêutica quer ajudar a Igreja de Cristo e todas as pessoas a assumirem essa conversão, para que se compreendam também como curadores feridos. Quem acha que nunca pecou não pode ajudar na salvação dos outros. Jesus, que não tinha pecado, “fez-se pecado” para salvar a todos. A Igreja de Jesus Cristo, ferida pelos próprios pecados e pela solidariedade com o pecado do mundo, ao fazer uma opção real pelo Servo sofredor, luta radicalmente a favor da mensagem libertadora e salvífica do evangelho, compreendendo que, na melhor das hipóteses, ela é, como todos, curadora ferida diante do médico divino, necessitada de cura e de libertação. Desse modo, ela nunca pode ser violenta, nunca aceitará a violência e, diante da tentação de buscar saídas violentas, se recordará de que o mal e a morte só serão vencidos pelo amor e pelo perdão.
Investir, pois, no cuidado, na ternura, no amor, no encorajamento e na consideração à dignidade de todas as pessoas é apostar em um novo paradigma de convivência para uma outra sociedade possível.
A Moral paraclética e terapêutica quer, pois, contribuir para isso, ao apostar na força de conversão e cura de uma autonomia responsável e intersubjetiva, aquela que possibilita que as pessoas saiam do infantilismo moral, do horizonte da obediência cega e irresponsável, na valorização da consciência como lugar do encontro com a Verdade. Desse modo, a moral será verdadeiramente cristã, a serviço do amor, da comunhão e da humanização das pessoas.
Nessa perspectiva, a sexualidade será sempre percebida e experienciada na sua ambivalência, como motor da vida ou como causa da morte, pelo fato de estar inserida no mistério mesmo da pessoa, frágil e impotente na sua humanidade, embora vocacionada a ser como Deus é. Assim compreendida, possibilitará a cada um viver humildemente sua situação de criatura referenciada a um Deus Bom, que cria, cuida, defende e salva, para que todos possam partilhar amorosamente a vida com dignidade, alegria e prazer, sabendo que tudo que há em cada um e no mundo é dom para ser usufruído e cultivado. O amor e a comunhão, a busca conjunta da verdade, potencializam o ser humano ao caminho da autorrealização, da libertação e da salvação.
A moral paraclética e terapêutica quer, finalmente, assumir, no horizonte da evangelização, ao apresentar os valores fundamentais da sexualidade, a missão de matriciar o Reino de Deus. Somente quando engravidadas pelo Espírito, as pessoas se tornam oferentes e podem fazer nascer no coração e na vida de tantos outros a disposição para o bem e para a verdade, experimentando a comunhão alegre, na busca de sinceros encontros afetivos e ternos que possam ser fecundos e vinculantes. Homens e mulheres paracléticos são chamados a espalhar sementes generosas, a nutrir a vida dos outros e a proclamar a boa- notícia do amor que sustenta, anima e entusiasma o caminho de quantos queiram experimentar na liberdade responsável, fiel e criativa a grande aventura de viver.
REFERÊNCIAS
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BOFF. L. Saber cuidar. Ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
FAUS, J. I. G. Sexo, verdade e discurso eclesiástico. São Paulo: Loyola, 1999.
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MILLEN, M. I. C.; BINGEMER, M. C. L. “Corporeidade e violência: O templo profanado”, in: SOTER (org.). Corporeidade e Teologia. São Paulo: Paulinas, 2005.
MILLEN, M, I. C. Os acordes de uma sinfonia. A Moral do Diálogo na Teologia de Bernard Häring. Juiz de Fora: Editar, 2005.
VIDAL, Marciano. Ética da sexualidade. São Paulo: Loyola, 2002.
Maria Inês de Castro Millen