Publicado em número 224 - (pp. 18-25)
Procura-se Deus nas metrópoles do novo milênio
Por Marcelo Barros
Uma agência de turismo de São Paulo especializou-se em “aventuras-surpresa”. Vende pacotes para o final de semana. As pessoas compram, confiando que a aventura vale a pena. Tomam o avião em Guarulhos, num horário prefixado, sem saber para onde serão conduzidas. É um turismo diferente daquele em que a pessoa chega a uma cidade e recebe um mapa, onde tudo está predeterminado. Basta seguir o mapa, do ponto 1 ao ponto 10, que se pode conhecer todos os monumentos históricos e pontos turísticos. As aventuras-surpresa não têm mapas e roteiros preestabelecidos, mas também não podem ser totalmente indeterminadas. Cada viagem depende do preço e da quantidade de dias disponíveis. Se se tratar de escalada de montanha ou de pesca no Pantanal, dependerá da época do ano e da meteorologia. A viagem e a estrutura básica são previstas e planejadas pelos organizadores, mas isso não tira dos clientes a surpresa e a emoção da descoberta.
Esse tipo de viagem me faz pensar na provável agenda para quem se aventura a buscar a Deus no mundo urbano, neste início de milênio, marcado pela crise de paradigmas e por novos desafios da ciência. Viajamos sabendo o que temos até aqui e a realidade do mundo nos aponta alguns elementos indicativos de pauta, mas, como diz a carta aos Hebreus sobre Abraão: “Partimos sem saber para onde vamos” (Hb 11,8). O presente artigo propõe-se a ser um convite para uma conversa sobre os desafios e rumos da espiritualidade na realidade urbana do novo milênio. Seguindo o método latino-americano do “ver, julgar e agir”, proponho um breve olhar sobre o que está acontecendo. Depois, conversaremos sobre os desafios do mundo urbano para quem quer viver e testemunhar a fé. Finalmente, pensaremos algumas pistas sobre como responder a esses desafios e enriquecer nossa espiritualidade com as possibilidades e riquezas do mundo urbano.
1. Flashes de um mundo em mutação
Na década de 70, Woody Allen fez um filme chamado O dorminhoco. Era uma parábola. Um homem sofria de uma enfermidade incurável. Para evitar que morresse, foi congelado e guardado num refrigerador até que a humanidade tivesse o remédio para aquela doença. Dois séculos depois, a ciência pôde curá-lo e os médicos lhe devolvem a vida. Só que ele acorda, pensando que dormira oito horas. Usa roupas diferentes, fala uma língua antiquada e não conhece mais ninguém que encontra na rua. O dorminhoco teima em viver no século XXII como vivia 200 anos antes.
Hoje, essa parábola pode quase acontecer com cada um de nós que vamos dormir à noite em um mundo e acordamos em outro diferente. As mudanças são por demais rápidas e imprevisíveis.
É verdade que alguns elementos parecem ser constantes. A realidade varia, mas mantém o mesmo rumo. O mundo atual é caracterizado por um aumento descomunal da pobreza. Só na América Latina, entre 1998 e 2000, o número de pessoas empobrecidas passou de 200 para 225 milhões. Esse aumento da pobreza, provocado pelo atual modelo econômico que rege a maioria das nações, tem como consequência a intensificação da urbanização, que, no Brasil, já vem de longos anos, mas nessas últimas décadas teve uma explosão. E isso ocorre no mundo todo. Calcula-se que, daqui a três anos (2005), 50% dos seres humanos do planeta viverão em áreas urbanas e, em 2025, a população urbana terá aumentado para 80%[1].
Nessa conjuntura, um fato novo e importante: desde os últimos anos do século XX, tem-se intensificado a resistência sociopolítica e cultural das vítimas desse sistema e dos que se solidarizam com elas. Cada vez mais, aumenta o número de pessoas, grupos e organizações civis que insistem: “Um outro mundo é possível”. Isso ocorreu duas vezes em Porto Alegre e também em Gênova. Outra realidade que impressiona é o que se pode chamar de “ressurreição dos povos indígenas”. Grupos considerados extintos se revelam vivos e atuantes. Organizações indígenas se fortalecem em Chiapas, no Equador, na Bolívia e também no Brasil, onde dezenas de povos — até a alguns anos considerados extintos — agora se revelam vivos e organizados. Só na Paraíba, em 2001, havia 28 escolas estaduais em que se ensinava uma língua indígena além do português[2].
Ao menos na América Latina, essa mobilização acontece mais entre os povos indígenas e os lavradores, como atestam o movimento de Chiapas no México, a força da CONAE (Confederação Nacional Indígena do Equador) e o Movimento dos Lavradores Sem Terra (MST) no Brasil. Em áreas urbanas — com exceção de alguns momentos históricos, como recentemente ocorreu na Argentina ou no Brasil, na época do impedimento do presidente Collor —, as massas geralmente têm dificuldade de se organizar e expressar sua insatisfação. Desde a década de 90, os movimentos sociais e políticos atravessam crise de identidade. Nos meios de militância é frequente ocorrer o que José Maria Vigil chama de “desfalecimento utópico”, uma espécie de desesperança que dificulta a mobilização[3]. Por outro lado, ao menos em nosso continente, as comunidades e organizações de base têm feito movimentos e mobilizações importantes e significativos, mas os meios de comunicação de massa não noticiam e essa mobilização do povo não tem visibilidade.
Quem viu o II Fórum Social Mundial em Porto Alegre (31/1/2002 — 5/2/2002) reunir 50 mil pessoas de diversos povos e culturas, reafirmando que “um outro mundo é possível” e propondo perspectivas novas para a sociedade, percebe que esse relativo quadro de apatia social parece estar se revertendo.
2. E as Igrejas? — “Errantes do novo século”
Errantes do novo século foi o título que o professor Douglas Monteiro deu ao seu livro sobre os devotos que resistiram ao governo brasileiro, no Movimento do Contestado em Santa Catarina, de 1912 a 1916. Lendo esse livro dos anos 70, compreendi que eles eram errantes do século XIX, no início desse novo século. Será que as Igrejas, de um modo ou de outro, não são errantes de outras épocas no novo milênio? O mundo mudou muito rápido e as Igrejas e religiões quase não mudaram. No momento atual, o mundo conhece o fenômeno da chamada “pós-modernidade”. Enquanto isso, a Igreja católica e outras ainda reagem à cultura da modernidade. Temos esperança de que as mudanças chegarão — como ocorreu no século XVIII com as revoluções liberais na América e na Europa. Um dia, quem sabe, o Vaticano fará a distinção entre o justo ministério petrino que João Paulo II defendeu na carta Ut Unum Sint e a legitimação do princípio divino da monarquia que o papado herdou não de Deus — e o próprio papa pediu ajuda para rever e transformar (UUS 96).
Tentadas a tantos tipos de fundamentalismos (bíblico, teológico, moral, institucional e outros), as Igrejas correm o risco de falhar em sua missão de dar respostas atuais e coerentes a tantos e profundos desafios do mundo atual. A hierarquia católica, por exemplo, tem razão em não aceitar que a fé seja reduzida a suas consequências sociopolíticas. Entretanto, essa prudência acaba levando-a a se omitir no momento em que as grandes potências declaram guerras injustas, ilegais e criminosas contra povos já há muito oprimidos e indefesos. A Cúria, que protege o papa para que, em suas visitas pastorais, não seja instrumentalizado por partidos de esquerda, uma vez ou outra o deixou à mercê de ditadores acusados internacionalmente de assassinatos e crimes contra a humanidade. No que se refere à moral sexual, a hierarquia tem razão em insistir na sacralidade da vida e falar da sexualidade como expressão sacramental do amor. Mas, quando isso é defendido de forma fundamentalista, pode provocar confusões. Se a Igreja só aceita o casamento no qual o casal pode ter filhos e só compreende o ato sexual para fins reprodutivos, no lugar de estar defendendo a sacralidade da vida e a profunda espiritualidade do amor humano, estará reduzindo os casais a meros reprodutores[4]. Como dialogar com a cultura urbana atual com dogmatismos que não aceitam diálogo, menos ainda qualquer evolução? Seria isso defender a dignidade do ser humano e a sacralidade da vida?
3. Parábolas de humanidade — Comunidades humanas de base
Como outras partes do mundo, a América Latina viveu a explosão da urbanização forçada, provocada pela expulsão do povo do campo e pelo desemprego nas pequenas cidades. Nessa realidade, as Igrejas mais presentes nas periferias e que mais têm conseguido falar às pessoas em sua solidão e insegurança parecem ser as Igrejas pentecostais[5]. Em geral, essas comunidades oferecem às pessoas, vindas do mundo rural, um ambiente comunitário na periferia urbana e um apoio para protegê-las de tentações como a violência, as drogas e a desestruturação familiar.
A Igreja católica e algumas Igrejas históricas ofereceram ao povo as comunidades eclesiais de base ou correspondentes. Essas comunidades empreendem o caminho profético da inculturação da fé. Organizam-se como “um novo modo de ser Igreja”, nascida do Espírito de Deus, no meio do povo mais pobre. Desenvolvem uma espiritualidade de Igreja que esteja a serviço e seja testemunha do Reino de Deus no mundo. Não se preocupam apenas em aumentar os quadros de fiéis na própria Igreja nem fazem missas-show para arrebanhar fiéis. Embora continuem vivas e atuantes, hoje as CEBs contam com menor apoio da maioria dos bispos. Em muitas dioceses, a Igreja católica tem desenvolvido uma pastoral comprometida com as grandes necessidades do povo, mas nem sempre tem conseguido oferecer o que é básico: um espaço afetivo comunitário. O risco disso é que as paróquias pareçam mais postos de atendimento pastoral do que comunidades vivas. Tornar-se-iam uma espécie de supermercados de produtos “espirituais”, e não uma base da Igreja local comprometida em iniciar as pessoas na vida em Deus.
Conheço paróquias e dioceses em que quando alguém — especialmente se for jovem — pede para entrar na comunidade, os dirigentes perguntam: “O que você quer fazer?”; “em que trabalho quer se inserir?”. Quando alguém pede para entrar em um mosteiro budista, eles o ensinam a praticar a meditação e o acompanham nos primeiros passos da vida espiritual. Se alguém pede adesão a uma comunidade de candomblé, os responsáveis orientarão essa pessoa e consultarão búzios para ver qual é o orixá que lhe corresponde, isto é, sua estrutura espiritual mais profunda. Aí a pessoa interessada começará um longo percurso de iniciação mística e quase secreta na qual se sentirá realmente começando vida nova.
E lamentável que, em uma Igreja cristã, a pessoa receba como resposta “qual o trabalho que quer fazer?” ou, quando muito, lhe indiquem um curso com aula uma vez por semana. Se a Igreja quer inserir-se em uma pastoral urbana eficaz e espiritual, tem de retomar o processo catecumenal como elemento fundamental que envolva toda a comunidade e seja, de fato, como um processo de gravidez comunitária e mística. Nesse sentido, os grupos ligados ao CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) ajudam muito, mas devem constituir-se não apenas como grupos de estudo ou mesmo só de ação, e sim como comunidades de vida. As CEBs guardam acentuado estilo rural e mais adequado ao povo pobre das periferias — embora no mais recente encontro intereclesial tenha se constatado que nem os mais pobres e excluídos estão conseguindo se organizar nas CEBs, nem as pessoas de classe média ou de cultura mais urbana nem os jovens. É um desafio manter o que já conquistamos e abrir novos espaços de eclesialidade viva para as pessoas de cultura urbana e menos “religiosas”. Em alguns lugares e Igrejas, fala-se em “comunidades humanas de base”, testemunhas do amor de Deus por toda a humanidade, independentemente da pertença religiosa da pessoa.
O que uma Igreja inserida na realidade urbana pode dar de melhor ao povo é o testemunho de sua busca de Deus e da espiritualidade, partilhada com os vizinhos, vivida na simplicidade e na comunhão com os mais pequeninos. Pode haver uma inserção “militante” e solidária de alguém ou um grupo que ajuda social e tecnicamente, mas não comunga a vida. Nos meus primeiros contatos com Dom Helder Câmara, algo que me impressionou muito foi como ele vivia no cotidiano da vida e nas pequenas relações o testemunho do amor aos mais pobres como mística evangélica. Certa vez, perguntei por que ele não encarregava alguém para atender à porta de sua casa, em vez de interromper a cada momento o que estava fazendo. Ele me respondeu: “Já pensei nisso, mas não fiz porque, se for um pobre que bate à minha porta, não quero que Jesus pense que eu deleguei alguém para atender os pobres no meu lugar. Faço questão de eu mesmo ter esta alegria”.
Descubro essa mesma espiritualidade em pastores como Dom Pedro Casaldáliga, Dom Luciano Mendes de Almeida e outros. Para mim, atender pessoas que me procuram em horas inesperadas e quando estou com tarefas urgentes é sempre uma ascese espiritual exigente, mas também sei que é uma forma de inserção mais gratuita e cotidiana.
Certamente, o que os bispos latino-americanos propuseram como modelo de Igreja em Medellín, em 1968, não só é atualíssimo, mas se tornou mais urgente no novo contexto urbano de uma sociedade onde a exclusão social se torna mais forte e violenta: “Que se apresente cada vez mais nítido, na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação de todo o ser humano e de toda a humanidade” (Medellín 5,15a).
4. O pluralismo religioso e a riqueza de sua espiritualidade
Um aspecto ligado à cultura urbana é a globalização das comunicações de massa que toma conta das cidades e também do ambiente rural. Essa realidade traz novos desafios para a pastoral e para a espiritualidade. Quando, no final dos anos 60, nascia a Teologia da Libertação, muita gente acreditava que a esperança de libertação dos povos latino-americanos passava pela estratégia das revoluções nacionais. Hoje, é fácil perceber que o processo de libertação dos excluídos não pode mais acontecer apenas por meio de emancipações locais. Os índios de Chiapas perceberam que, para resolver os seus problemas, tinham de se articular com outros movimentos sociais de todo o mundo e fizeram isso através da internet. Promoveram encontros internacionais para estudar e combater o neoliberalismo. A situação de um povo oprimido, hoje, só se transformará se conseguir articular-se mundialmente. A dificuldade de comunicação entre os povos empobrecidos e o confinamento de culturas em sistemas de crenças religiosas isoladas e até postas em confronto favorecem a opressão e dificultam a libertação. A divisão — não a diversidade — das religiões paralisa energias que poderiam — ao contrário — libertar, se as religiões se articulassem e pudessem colaborar umas com as outras. Por isso, o diálogo intercultural e inter-religioso é essencial à causa dos povos oprimidos e à relação de justiça internacional. Um movimento mundial de Direito e de Justiça precisa de um diálogo inter-religioso mundial. É urgente reelaborar toda a teologia, a pastoral e a espiritualidade com base nessa questão. O papa João Paulo II tem percebido isso. Em várias ocasiões expressou a convicção de que, sem o diálogo e a colaboração entre as religiões, não haverá Paz no mundo e nunca se poderá “globalizar a solidariedade, e não só a opressão”. Em janeiro último, o papa reuniu em Assis, pela segunda vez, líderes e representantes de diversos caminhos espirituais para, juntos, jejuar e orar pela Paz.
Jornais internacionais publicaram a imediata adesão à proposta do papa por parte do Dalai Lama, de líderes judeus, muçulmanos e representantes de diversas tradições espirituais. Entretanto, parece que a iniciativa do papa encontrou mais eco entre representantes de outras religiões do que entre bispos e padres católicos. Uma leitora de Goiânia me escreveu perguntando: “Por que quando o papa, através da Cúria Romana, condena algum teólogo mais aberto ou repete velhos preceitos da moral católica, bispos e padres correm a divulgar e se apressam a cumprir o que ele pede, mas quando ele propõe um encontro inter-religioso pela Paz, simplesmente ignoram ou desconhecem sua proposta?”.
Não sei se a observação é justa. Talvez seja inconsciente a tendência de obedecer e aderir à autoridade quando esta diz o que queremos que diga e, ao contrário, não levá-la em conta quando nos interpela ou propõe algo com o qual não concordamos. O fato é que, em uma cidade cosmopolita e pluricultural, essa sensibilidade de abertura ao pluralismo cultural e religioso é ainda mais urgente. Em termos de princípios, quase todo o mundo concorda, mas, na prática, esse processo de abertura da minha fé ao outro diferente de mim é exigente e transformador.
5. Propostas para uma nova mística da inserção urbana
Iniciei recordando o projeto de uma agenda de turismo que faz viagens para o desconhecido. Não posso me contradizer agora, propondo pistas ou receitas bem definidas sobre como viver e testemunhar o caminho para Deus nessa nova realidade urbana e “globalizada”, sempre tão desafiadora e surpreendente. Proponho-me apenas a partilhar algumas descobertas e intuições de quem, há anos e anos, vive essa busca e exige de si mesmo essa abertura espiritual ao outro. Essas propostas podem ser organizadas como tarefas de conteúdo e outras mais ligadas ao método. Algumas dizem respeito à nossa participação em um projeto comunitário maior e outras se referem mesmo ao nosso modo de ser pessoal.
5.1. Comece por si mesmo(a)
O caminho espiritual supõe uma opção de amor e de permanente aprofundamento da relação de intimidade com Deus. Como em qualquer relação de amor, não é possível basear-se apenas no costume, em ritos ou em regras. É preciso aventurar-se sempre mais ao encontro do amor que nos chama. E aí é preciso encontrar o seu ritmo próprio e sua liberdade interior.
— Na realidade urbana, o desafio do convívio consigo mesmo(a)
Os índios dizem que cada pessoa tem uma dança interior e sua alma tem um ritmo de vida. Quando a alma não consegue acompanhar o ritmo de vida da pessoa, esta pode perder a alma. Talvez daí provenham o que, em nossa cultura, chamamos de depressão, de doença do pânico e outros males de quem perdeu a alma. A espiritualidade pode nos ajudar a recuperar a alma. Um elemento básico é refazer a aliança consigo mesmo(a), por meio de verdadeira autoaceitação, autoestima que não é egoísmo, e sim respeito por si mesmo(a) para respeitar os outros. Aí se começa a reverenciar a presença divina em si, iniciando um diálogo interior sem o qual não há como dialogar nem com Deus nem com ninguém.
Concretamente, isso significa rever o próprio ritmo de vida: quanto tempo cada um reserva para estar consigo mesmo(a) e para ouvir a palavra de Deus para a sua vida pessoal?
— “Humano(a) como Jesus Cristo”
O máximo de espiritualidade que uma pessoa cristã pode alcançar é a de ser “humana como Jesus”. Veja o que dessa qualidade humana, revelada por Jesus nos Evangelhos, você tem e desenvolve em seu modo de ser e quais os aspectos que você não tem ou lhe falta desenvolver mais. Geralmente é a escuta dos outros que lhe permitirá avaliar melhor como você está sendo visto(a) nesse campo. É o seu cuidado de viver a fé e a busca de Deus na relação com as outras pessoas. Em uma sociedade pluralista, isso significa a capacidade de conviver com pessoas diversas e, às vezes, opostas a nós. Em um mundo como o nosso, a bem-aventurança de Jesus poderia ser traduzida assim: “Bem-aventurado quem busca o diálogo e o promove porque faz o que Deus faz conosco (será chamado(a) filho ou filha de Deus). Este o(a) escutará e atenderá”.
Dom Helder Câmara dizia: “Se você concorda comigo, você me confirma no caminho. Mas se discorda de mim, me enriquece mais, porque me obriga a aprofundar o assunto”. Se, hoje, todos os pastores das Igrejas pudessem dizer o mesmo com convicção e humildade, a missão estaria sendo realizada de forma diferente.
— E a relação propriamente com Deus?
Karl Rahner escreveu: “Não podemos continuar pensando em Deus a partir de fora, agindo e intervindo para mudar nossa vida. Temos de compreender Deus como um pressuposto capaz de suportar a pluralidade do mundo, juntamente com a mútua determinação das realidades concretas desse mundo. Na realidade, Deus não é uma coisa a mais na nossa vida. Não se revela a nós como um momento particular a mais. Ele se manifesta em nós e no concreto da criação e de nossa vida”[6].
Talvez nossa educação religiosa ainda tenha sido a de separar Deus da vida cotidiana e das relações que vivemos. É preciso viver sua intimidade, contemplando-o presente na natureza, em cada elemento da vida, em nós mesmos e nas pessoas que encontramos.
Uma consequência disso deve ser a ruptura de todo dualismo. Não podemos dividir mais as coisas em natural, sobrenatural, sagrado e profano. Tudo vem de Deus, tudo pode e deve ser vivido como acolhida e afirmação de sua ação criadora. “Ser é o ato de deixar-se amar, o evento da gratuidade, o receber que faz espaço para se doar ao outro”. O divino se revela no humano, e não sobre o humano ou como humano[7]. Não penso que Deus é simplesmente uma dimensão do meu ser, como a minha inteligência ou sensibilidade, nem o ponho fora, acima de tudo. Ele é totalmente Outro (transcendente), mas se revela na realidade concreta e só posso conhecê-lo aqui, na minha vida e na de você.
Um dos elementos que levou a espiritualidade cristã a grave crise foi conceber Deus como separado do mundo. A Teologia da Libertação já tinha nos ensinado que só existe uma história e que o Reino de Deus se manifesta aqui, embora não se esgote aqui. Agora é a espiritualidade holística que insiste: Deus tem de ser visto presente na criação e em tudo o que vivemos, não intervindo de fora, mas sustentando a ação a partir de dentro de tudo, do mais profundo e interior. Ver Deus presente em cada criatura, em cada ser do universo não é panteísmo. O panteísmo dilui Deus no tudo e diz que tudo é Deus. Nós cremos que Deus está em tudo e se manifesta em cada ser. Se queremos classificar isso (há gente que precisa dessas classificações), há teólogos que denominaram esse modo de crer ou essa espiritualidade de “panenteísmo”. O teólogo inglês D. Tracy chama essa ideia do panenteísmo de “a grande conquista da teologia atual”. Podemos encontrar essa convicção e aprofundá-la nos mais recentes livros de Leonardo Boff, que têm ajudado muita gente sem fé a redescobrir o caminho da espiritualidade[8].
O panenteísmo afirma a diferença entre o tudo e Deus, mas vê a mútua presença de um no outro. Se a gente crê nisso, deve viver e testemunhar essa espiritualidade. Tudo está em Deus, existe nele e a partir dele. O hinduísmo e as religiões indígenas e negras sempre disseram isso. São Paulo diz: “Nele vivemos, nos movemos e existimos”. E continua: “Os poetas de vocês (dos gregos) diziam: Somos de sua linhagem” (At 17,28-29). Santo Agostinho ensina: “Deus é “interior intimo meo et summior summo meo”, mais íntimo do que nossa intimidade mais profunda e mais alto do que o que em nós há de mais elevado (Confissões III, 6, 11). A criação estabelece solidariedade cósmica entre todos os seres criados. “Ele os criou à sua imagem, macho e fêmea os criou”. Quanto mais humano eu for e integrar em mim a masculinidade e feminilidade, mais sou imagem de Deus.
Quando salientamos a presença de Deus na criação e no nosso próprio íntimo, não estamos deixando de lado a fé e a espiritualidade engajadas no sociopolítico. Ao contrário, estamos fundamentando-a de forma mais profunda e coerente. Muitas incoerências entre a pregação e a vida de pessoas engajadas na transformação sociopolítica talvez pudessem ser evitadas se tudo isso estivesse mais unido. Essa descoberta da presença de Deus em cada elemento da natureza e da própria vida aumenta em nós “a paixão pela utopia”, ou “paixão pelo Reino de Deus”, como diz Dom Pedro Casaldáliga. Uma espiritualidade centrada no Reino não cai nas armadilhas neoliberais de uma “religião centrada sobre nós mesmos”, um cristianismo light que nada tem que ver com a radicalidade do evangelho, nem nas tentações do “outro lado”, ou seja, uma divinização da Igreja como se fosse o Reino de Deus e uma utilização indevida de Deus pelo poder; no fundo, o poder eclesiástico. Aí é bom lembrar o papa Paulo VI, que dizia: “Só o Reino é absoluto. Tudo o mais é relativo” (Evangelii Nuntiandi 8). Vale a pena também lembrar até que ponto evoluiu o caminho espiritual de um bispo que começou a sua missão, como ele próprio confessa em seu diário, conservador e eclesiocêntrico e ao qual Deus levou a dizer: “Minha posição de pastor me obriga a ser solidário com toda pessoa que sofre e a empenhar minha vida na defesa da dignidade de todo ser humano” (Monsenhor Oscar Romero — 7/1/1979)[9].
Isso significa pôr a prioridade pastoral nas ações sociais que testemunham o Reino e não tanto nas atividades internas, que podem parecer de uma Igreja voltada para si mesma como ídolo.
5.2. Participe do movimento de transformação espiritual do mundo e das Igrejas
Estou convencido: o que há de menos espiritual, isto é, o que não é movido pelo Espírito de Deus, é o fechamento em uma tradição, o apego a um momento da história, a nostalgia que impede mudanças, o deixar-se dominar pelo medo do futuro ou, pior ainda, agarrar-se ao poder e a todas as suas miragens diabólicas. Para ser fiel a Deus, opte por renovar-se humana, intelectual e espiritualmente. Falando a seus monges, na Idade Média, São Bernardo de Claraval afirmou: “Se você quer seguir a Deus, saiba que ele não para. Evolui sempre. Se você para, não só se afasta dele por parar, mas ele se afasta de você porque continua sempre adiante e chamando-o, cada vez mais de longe: ‘Siga-me!’”.
Concretamente:
— Mantenha-se informado(a) do que está acontecendo no mundo e tome posição profética, como Jesus sempre fez e manda que o façamos.
— Desenvolva no coração profunda capacidade de misericórdia e solidariedade com quem sofre. Nenhum sofrimento humano, por mais longe que esteja de você, pode lhe ser indiferente. Intensifique isso, criando o método de sempre orar e trabalhar pela Paz, pela justiça e pela defesa da criação.
— Abra o coração e sua vida a uma espiritualidade macroecumênica.
Se eu lhe contar que saiu em um jornal estrangeiro um artigo ou reportagem sobre alguém que você ama, você vai querer ver e tentar decifrar, mesmo que o jornal esteja impresso em uma língua desconhecida, não se encontre próximo de sua casa ou custe mais caro. Pense assim a respeito do modo como outras religiões e tradições espirituais falam de Deus. Você não vai misturar crenças ou confundir seu modo de crer com a do outro pelo fato de abrir-se ao que outra tradição lhe diz de Deus, e com essa experiência, que não é a sua, pode enriquecer o seu caminho original. Eis a oração de um místico muçulmano: “Meu coração tornou-se capaz de qualquer forma. É um pasto para gazelas e é um convento para cristãos. É, ao mesmo tempo, para crentes de outras religiões um templo e para o peregrino muçulmano a Caaba. Nele estão as tábuas da Torá judaica e o livro do Corão. Sigo a religião do Amor: qualquer caminho que tomem os camelos do amor, essa é a minha religião e minha fé” (Ibn Arabi, século XIII)[10].
— Abra o coração para acolher o que vem de fora e pode ser palavra de Deus.
Em 2001, aconteceu o I Fórum Social Mundial em Porto Alegre, reunindo 15 mil pessoas do mundo todo, afirmando que “um outro mundo é possível”. A presença de cristãos e de crentes de outras religiões foi forte e importante, mas oficialmente não estavam lá como crentes e as Igrejas não se sentiram muito atraídas por esse evento. No II Fórum, ocorrido no início de fevereiro deste ano, a presença de grupos e pessoas que se assumem como crentes foi mais forte, testemunhando uma fé que quer ser amor eficaz e compromisso pelo Reino.
No último sínodo romano sobre a Europa, vários cardeais e bispos — como o Cardeal Martins e o arcebispo de Lisboa — propuseram para a Igreja um novo processo conciliar, algo no sentido de um novo Concílio Ecumênico. Muitos movimentos católicos leigos estão pedindo isso. Em vários países, homens e mulheres que desejam uma Igreja mais democrática e profética se reúnem em uma grande corrente que toma o nome “Somos Igreja”. Por que considerá-los hereges e inimigos? Por que ter medo do diálogo que tanto Paulo VI como João Paulo II propuseram? Corre pelo mundo uma lista já assinada por dezenas de arcebispos e bispos pedindo um novo Concílio. Deve ser um Concílio verdadeiramente eclesial, e não só de bispos, e realmente ecumênico e intereclesial, e não só católico romano. Dificilmente esse movimento virá da cúpula da Igreja se não tiver para isso uma sensibilidade e uma preparação nas bases.
No Conselho Mundial de Igrejas, esta proposta de um Concílio pan-ecumênico vem dos anos 80, inspirada por Dietrich Bonhöeffer, já em 1939. Um Concílio que una as comunidades cristãs no diálogo com outras religiões, no respeito à diversidade e para que a Igreja possa assumir a pluralidade das culturas. O objetivo maior desse processo é o serviço comum de construção da Paz, o trabalho pela justiça e pela defesa da criação. Para as Igrejas cristãs e para o mundo todo, é preciso pedir a Deus, como sugeria o papa João XXIII na oração preparatória ao Vaticano II, a vinda do Espírito de Deus como em um novo Pentecostes renovador e revitalizador de uma primavera espiritual.
[1] Estes e outros dados da situação mundial e da América Latina estão disponíveis na Agenda Latino-Americana mundial, 2002, p. 19.
[2] Cf. Correio da Paraíba, domingo 2/9/2001.
[3] JOSÉ MARIA VIGIL, Aunque sea de noche. Hipótesis psicoteológicas sobre la hora espiritual de América Latina en los 90, Envío, Managua, 1996; Acción Cultural Cristiana, Madrid, 2000.
[4] Comentando esse tipo de mentalidade, o psiquiatra Hélio Pellegrino declarou: “Será que o papa e os bispos defendem uma concepção de sexualidade humana na qual somos apenas reprodutores? Seria uma acepção equina, ou vacum da sexualidade humana. Ou nos comportaríamos como animais, espécies nas quais o macho procura a fêmea para reproduzir, ou seríamos pecadores. Isso é confundir sexualidade com genitalidade, coisa imperdoável até em estudante de psicologia…” (HÉLIO PELLEGRINO, A burrice do demônio, Ed. Rocco, 1988, p. 29).
[5] Nos últimos 30 anos, surgiram Igrejas neopentecostais e movimentos religiosos independentes que desenvolveram uma teologia do progresso econômico, ligado a milagres e à intervenção de Deus. Pregam uma espiritualidade de resultados imediatos. Não se confunda, no entanto, essa onda de espiritualismo neoliberal com Igrejas pentecostais clássicas, como a Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Igreja de Cristo e outras que estão inseridas nas periferias urbanas desde a década de 50.
[6] K. RAHNER e K. H. WEGER, Que debemos creer todavia? Propuestas para una nueva generación, Santander, 1980, p. 69.
[7] GONZALEZ RUIZ, La humanidad nueva, Santander, 1984, p. 465.
[8] D. TRACY, “O retorno de Deus na teologia contemporânea”, in Concilium 256/1994; LEONARDO BOFF, Ecologia, grito da terra, grito dos pobres, Ed. Ática, 1996; L. BOFF, Nova Era: a civilização planetária, Ed. Ática; L. BOFF, A águia e a galinha, Vozes.
[9] Citação feita pelo teólogo JON SOBRINO.
[10] Cf. FAUSTINO TEIXEIRA, Teologia das religiões, uma visão panorâmica, Paulinas, 1985, pp. 203ss.
Marcelo Barros