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Publicado em número 182 - (pp. 2-8)

Espiritualidade da libertação em tempos de “nova era”

Por Pe. João Batista Libânio

Toda época, para quem a vive, parece nova. O tempo antigo já passou. Ficou sepultado com os mortos. Variam, porém, os nomes que se dão para os “novos tempos”. Hoje economicamente chama-se neoliberalismo. Seu nome político é democracia. Culturalmente recebe o nome de pós-modernidade e religiosamente se anuncia como “nova era”.

 

I. NEOLIBERALISMO

Muitos cristãos comprometidos sentem-se desarvorados com o momento atual. Saiu-se-lhes do horizonte a possibilidade do socialismo por que tanto lutaram[1]. É verdade que não se tratava de nenhuma cópia do socialismo real do Leste europeu. Era um socialismo utópico, recheado de cristianismo. De mansinho, lá das bandas da “Madame de Ferro”, Mrs. Thatcher, e do “cowboy americano”, Mr. Reagan, vem-se impondo o neoliberalismo[2]. Mesmo os regimes em que personagens do socialismo histórico ocupam postos importantes, como Portugal com Mário Soares, a França com Mitterand e a Espanha com Felipe González, não escapam da onda neoliberal.

O neoliberalismo semeia seus slogans por todas as partes: privatização, modernização, liberalização do mercado sem intervenção do Estado, o mercado como o grande regulador da economia e gerador espontâneo de desenvolvimento e justiça social, encurtamento do Estado, rejeição da intervenção do Estado na economia, fracasso de todas as tendências socializantes, combate a todo corporativismo como expressão da sociedade arcaica, o capitalismo associado à democracia liberal como fim e coroamento da história[3] etc. É verdade que o neoliberalismo está produzindo efeitos perversos nos países do Primeiro Mundo: empobrecimento na Inglaterra, lutas sociais na França, desemprego estrutural e de modo impressionante na Espanha, desmantelamento da política do bem-estar social etc.[4]. Na linguagem contundente de J. I. Gonzáles Faus, no momento atual o mercado capitalista obteve sobre o socialismo uma “vitória de Pirro”, porque “o mercado detecta mal”, “distribui pior”, “desperdiça” e “degrada”[5]. Na América Latina, países que entraram de corpo inteiro nesse projeto vêm passando por crises e sobressaltos nada animadores[6].

 

1. Democracia formal

A democracia formalizou-se muito e reduziu-se praticamente aos momentos das eleições. Da sua etimologia — demos + craté: poder do povo — conservou pouco. O povo ocupa mais o lugar de figurante que de ator. Por isso, tem-se desinteressado até mesmo do único ato democrático que lhe sobra: a votação. A enxurrada de votos nulos e brancos das últimas eleições revela essa enfermidade democrática. De fato o processo eleitoral parece antes gigantesco videogame de “showmícios” que de conscientização e debate políticos. A elite, o capital, os recursos financeiros e a mídia produzem candidatos vitoriosos, apesar de toda a luta dos segmentos mais conscientizados e do ardor das militâncias.

Já se aceita que a democracia seja insuficiente e sempre ameaçada. Por isso, o aparelho policial armado torna-se cada dia mais violento e sofisticado. Grupos e indivíduos privados criam seus sistemas policiais e armados de segurança, próprios e independentes.

 

2. Cultura pós-moderna

No horizonte cultural e religioso, a confusão torna-se ainda maior[7]. Anuncia-se o nascimento de uma “nova razão” pluralista, fruitiva, comunicativa, irônica, destrutivista[8].

Pluralista em oposição a todo totalitarismo, a toda imposição, a todo império de uma instituição, de um dogma, de uma moral, de um partido, de uma ideologia, de uma raça e de uma cultura. Ao desabar o mundo socialista, uma evidência se impôs em todo esse gigantesco império em ruínas: passou definitivamente o tempo do partido único, de uma única instância que definisse o bem, a verdade, a estética, a política e a economia[9]. Pluralidade de visões de mundo, de culturas, de ideologias, de verdades e de morais.

Fruitiva em oposição à razão instrumental que adequa os meios a objetivos anteriormente traçados, ao reino da laboriosidade, da produtividade, da eficácia acima de tudo. Hegel disse: “Pensar a realidade, pois tudo o que é racional é real e tudo o que é real é racional!”. Marx protestou: “Não pensar, mas transformar!”. A razão fruitiva exclama: Nem pensar, nem transformar, mas fruir, gozar! Prometeu rouba o fogo do céu. Sísifo leva continuamente a pedra até o alto do monte sempre a escapar-lhe. Nem Prometeu, nem Sísifo! Deixemos a pedra rolar até o fundo do poço e aí contemplemos; nossa face narcisicamente no espelho das águas.

Comunicativa em relação à colonização escravizante da razão instrumental, ao domínio da ciência e da tecnologia sobre os espaços do convívio, do encontro, das evidências tranquilas do cotidiano[10]. Inverter a regra do jogo. Colocar a razão produtiva, transformadora, instrumental, operativa a serviço do prazer, do gozo e da “convivialidade”. Inverter a leitura do Gênesis. Em lugar de pôr no centro da criação os seis dias do trabalho de Deus e o homem como ser subjugador e transformador da natureza, entronizar o sábado, o repouso de Deus, o encontro da comunidade no louvor e no culto, a contemplação do criado, o gozo de sua beleza no ápice do ato criador e a partir daí entender o trabalho, o domínio da natureza, os dias laboráveis[11].

Irônica em relação ao fiasco do projeto orgulhoso da modernidade. Ela prometeu criar uma ordem racional e lógica, construindo Auschwitz, Gulags, bombas atômicas e armas destruidoras. Anunciou a fraternidade e não vive nenhum ano sem guerras assassinas, sem mortes violentas, sem bombardeios destruidores. Pregou a igualdade, e nunca a brecha entre ricos e pobres foi tão gritante. Apregoou a liberdade por rodos os lados, mas como nunca ela é vivida tão ilusoriamente sob terríveis condicionamentos da propaganda e dos meios eletrônicos.

Destrutivista em relação às gigantescas construções da modernidade. Ch. A. Jencks data o momento exato do surto destrutivista. No dia 15 de julho de 1972, às 15h32, em St. Louis, Missouri (USA), dinamitam-se vários blocos de edifícios, colossais, uniformes, orgulho da modernidade empreendedora, construídos nos anos 50. Num instante, implodem-se gigantescos quarteirões, tornados inabitáveis. Símbolo do colapso dos megaprojetos da modernidade. A PANAM vai à falência. O bloco socialista, sob o império soviético, desaba. O colosso do capitalismo treme sob o impacto de sua própria grandeza.

 

3. Nova era religiosa

Nesse terremoto da cultura, as religiões e Igrejas institucionais estremecem[12]. O cristianismo, a religião tradicional do Ocidente, vê-se ameaçado na sua identidade institucional[13].

Jesus, sim, Igreja, não! Grito que ecoou no “movimento de Jesus” das décadas de 60/70. Nada de instituição. Deixar o “espírito de Jesus” solto.

Deus, sim, Jesus histórico, não! Nada de prender-se ao Jesus do Ocidente. Abrir-se ao Deus de todas as religiões.

Religião, sim, Deus, não! É o término do caminho religioso do movimento que atravessa nossos dias. Deus, uma pessoa, uma referência absoluta, um mistério com suas exigências: não! Religião como expressão de nossos sentimentos, de nossa experiência pessoal, de nosso gozo espiritual: sim!

Nesse contexto, fala-se de “nova espiritualidade” e surgem fundamentalismos fanáticos. Por detrás da nova espiritualidade há duas tendências “místicas” básicas a que a mística cristã da libertação pretende dar uma resposta.

 

II. TENDÊNCIAS MÍSTICAS ATUAIS

1. A mística psicológica

O ser humano nestes tempos de modernidade e pós-modernidade, sente-se dilacerado, fragmentado. As grandes narrativas religiosas, políticas, sociológicas e culturais, que lhe garantiram estabilidade, segurança e identidade se desfazem. Vive num torvelinho de pequenas narrativas em todos os campos da sociedade e da cultura. Tendo perdido, assim, os pontos referenciais das tradições culturais, religiosas e das Igrejas institucionais, ele é entregue à sua subjetividade. A partir dela, e não de tradições institucionais normativas, cria sua própria religião.

Além disso, a vida atual é terrivelmente estressante e barulhenta. O ruído envolve-nos por todas as partes. Certas pessoas não resistem ao silêncio e passam horas e horas diante da TV, ou com rádio ligado e aparelhos de som no volume máximo ou com walkman “rodando” o dia todo dentro do ouvido. A mídia bombardeia-nos com enxurrada de notícias e imagens, propositadamente desorganizadas e niveladoras, de modo que se perde qualquer possibilidade de perceber a verdadeira realidade. Vive-se de “realidade virtual”, do mundo da aparência, do simulacro, criado pela mídia.

Como resposta, vai-se buscar uma mística na ponta oposta dessa sociedade agitada e extrovertida. Quer-se contrapor a uma vida vivida na exterioridade de si, na superficialidade vazia dos estímulos sensitivos, um mergulho profundo no próprio eu, para o próprio “si”. Vai-se ao encontro da própria identidade profunda, da essência mais íntima de si. Ela é o mistério com que se entra em contato. O mistério é o próprio eu apreendido na sua última identidade e realidade[14].

Trabalha-se com técnicas espirituais, de respiração, de concentração, de sensibilidade corporal para fazer-se cada vez mais consciente de ser o próprio corpo, de ser si mesmo. No fundo da própria alma está a alma da humanidade mesma, alma divina e transcendente, que se alcança nesse movimento para o centro de si e que traz libertação, encantamento. Nesse caso, a experiência de Deus coincide com a experiência do próprio eu, da essência mais profunda de si.

Em alguns casos, recorre-se a certo tipo de droga que facilite esse acesso à profundidade de si, à concentração em torno de si. Faz-se uma viagem interior ao centro do próprio eu e lá se descansa, repousa. Desaparece todo o bulício do mundo moderno e se nada no oceano da própria intimidade.

No fundo, todo o processo místico não passa de um encontro consigo, ainda que se expresse em representações simbólicas de entes sobrenaturais, como anjos ou outras divindades. São projeções de dados intrapsíquicos ou exprimem etapas no caminho em direção ao Eu.

Tal experiência tem produzido muitos efeitos terapêuticos positivos. Pessoas esgotadas, divididas, fragmentadas, começam a sentir profunda paz, unidade interior, tranquilidade psíquica é espiritual. Há burocratas, engenheiros, empresários, obrigados na sua profissão a uma vida psiquicamente desgastante, que, com exercícios espirituais nessa linha, têm recuperado um domínio de si e um bem-estar interior que irradiam em seu meio.

Tais experiências refugam preocupações doutrinais, dogmáticas. O aspecto objetivo, de conteúdo, perde toda relevância diante do percurso interior em direção ao cerne de si. As próprias verdades e formulações religiosas são interpretadas como expressões simbólicas anímicas, e não como referências a realidades transcendentes com existência própria e objetiva.

No microcosmo da experiência pessoal reflete-se todo o macrocosmo. O outro perde seu caráter de alteridade e dissolve-se na fusão do sentimento de identidade com o Si. Supera-se o encontro e o amor pessoal pelo sentido de unidade em si mesmo. A dimensão emocional e o predomínio do intuitivo contrapõem-se à mística do Ser transcendente e pessoal. No fundo de si mesmo existe o “mestre interior”, referência fundamental desta mística. Este “mestre interior” é o próprio eu em tudo o que tem de sublime, de bem, de verdade, acumulado ao longo de sua história pessoal e coletiva. Esbarra-se no inconsciente freudiano e junguiano. Deste abismo insondável e incognoscível brotam as experiências espirituais e místicas, vestidas com expressões religiosas de objetividade inexistente.

 

2. Mística cósmica

Dando um passo à frente, a experiência mística se amplia em direção ao cosmo. O caminho para o Eu ultrapassa-lhe as fronteiras e perde-se na energia geral, na força envolvente do cosmo, no princípio criador do universo. Endereça-se não à pessoa de um Deus criador, mas antes à unidade do todo, fundindo-se nela. Toma-se consciência das raízes cósmicas, sente-se uma só coisa com a natureza circundante, com o todo do cosmo, como na situação de simbiose no seio materno. Não se experimenta um Deus que exprime na revelação sua vontade ética, que revela mandamentos, que interpela o povo e as pessoas, mas uma sintonia e identidade com a natureza. O homem encontra seu lugar como um elemento desse imenso universo com o qual entra em comunhão. Unidade e totalidade são idênticas. O ser humano perde-se na totalidade duma unidade profunda. Superam-se as separações e distinções entre o indivíduo e a natureza, entre a criatura e o mistério divino envolvente. No fundo, Deus tem a dimensão da criação. Perder-se no todo da criação é perder-se no divino, experimentá-lo. Não se escapa de certo panteísmo e monismo.

Entra-se em profunda sintonia pela mística com o divino, com a energia originária, com o uno, em que o indivíduo pode dissolver-se e fundir-se. Para fazer tal experiência necessita-se ascender a estágios superiores da consciência. Nela experimentam-se as coisas, as realidades, os eventos unidos entre si e como aspectos ou manifestações diversas de uma mesma e última realidade, em sua unidade radical. O trabalho espiritual consiste em ir se conscientizando cada vez mais desta unidade e relação íntima de todas as coisas, superando a concepção de um Eu individual, isolado e identificando-se com a última realidade.

No fundo, esta mística não suporta a tensão básica entre nós, seres criados, e Deus criador, mas tende a buscar uma identificação-dissolução no ser universal, na energia envolvente. Acontece uma divinização pela via da perda de si, do apagar-se, do diluir-se na onda divina do todo. Esta mística interpreta Teilhard numa linha essencialista e não personalista, quando ele afirma que “o amor é a mais universal, avassaladora e misteriosa das energias cósmicas”. Entende o amor como fusão total dos amantes. Assim as criaturas amam à medida que se fundem na totalidade cósmica.

Esta mística baseia-se numa nova cosmologia. Rompe com todas as tensões: matéria e espírito, criatura e criador, indivíduo e todo, sujeito e objeto, observador e mundo observado. “O cosmo e a terra, o inorgânico e o orgânico, as plantas, os animais e os homens são vibrações, e a vibração é som” (J.-E. Berendt). A realidade última e autêntica do mundo não são coisas, corpos sólidos, mas movimentos ondulatórios, vibração, som. Emerge, então, a aspira­ção de mergulhar na realidade, fazer-se uma coisa só com a vida que pulsa no seu coração, entrar em harmonia com este todo único e vibrante.

Volta-se assim às posições mais antigas da filosofia grega, ao afirmar que o múltiplo é só aparência e que o real é o uno. Tenta-se superar a problemática do múltiplo e do uno, pela anulação do múltiplo, reduzindo-o à ilusão.

Esta mística tem seduzido muito pela sensação de profunda harmonia que engendra. As pessoas sentem-se em sintonia com todo o cosmo. Gozam de admiração, de encantamento diante do universo. Sintonizam com o movimento ecológico, que ressuscitou a atitude de respeito, de harmonia com todo o cosmo.

 

III. MÍSTICA CRISTÃ DA LIBERTAÇÃO: A PRESENÇA DO POBRE

Diante do quadro econômico, político, cultural e religioso, o pobre instala crítica contundente. O neoliberalismo resolve o problema do grande capital, do megacomércio, mas gera novos pobres e piora ainda mais a situação dos pobres atuais. Assim, em países do Primeiro Mundo, em que a distribuição se fazia de modo mais equitativo, acentua-se a diferença entre pobres e ricos, entre regiões, países mais pobres e mais ricos. O desemprego estrutural joga nas ruas da ociosidade, do vício e da degradação sempre mais pessoas. São os novos pobres. Aposentados começam a sentir os apertos de salários aviltados. Tudo em nome da liberdade do comércio, da modernização, do “neoliberalismo triunfante”. Só a partir dos pobres é possível perceber suas incoerências, mazelas, discriminações e crescente exclusão.

O pobre também questiona a democracia formal. Nela ele existe como massa de manobra sob o impacto e influência da mídia. Aparece somente com seu voto. Mas depois desaparece do mapa das decisões, dos interesses e dos benefícios. Sem democracia popular não se consegue contrapor um obstáculo ao manuseio da democracia pelas forças que detêm a mídia.

Mais uma vez o pobre desmascara a doença da cultura narcisista da pós-modernidade, voltada para um indivíduo que se pode dar ao luxo até de angustiar-se pela falta de sentido na abundância dos bens materiais. O pobre mostra, como em situação muito mais difícil — que lhe poderia, sem dúvida, com justeza, gerar maior angústia ainda — é possível festejar e esperar. A cultura popular ainda resiste ao impacto desagregante dessa cultura do vazio, da superficialidade, de massa ou, pelo menos, manifesta o contraste entre o realmente popular e o grotescamente popularizado pela mídia.

Finalmente no campo espiritual, o pobre cumpre mais uma vez sua função crítica de discernimento diante das místicas. Assim a mística cristã da libertação situa-se criticamente diante dessas duas místicas, desocultando-lhes as consequências antropológicas e sociais.

O maior risco de ambas as místicas, em nível antropológico, consiste na supressão da libertação pessoal e na consequente perda de responsabilidade histórica das próprias ações. Quer na mística psicologizante, quer na cósmica, o Eu perde-se no anonimato, no impessoal. Mais, a paz e a tranquilidade, que se buscam e experimentam, realizam-se alheiamente à presença de qualquer outro, quer divino, quer humano. Nem falar do outro quando é pobre! Este desaparece totalmente do horizonte. Essa mística responde a um momento de neoliberalismo econômico, de indiferentismo político e fragmentação cultural, não por meio de reação critica lúcida, mas pela via de acomodação.

A mística cristã da libertação reconhece a importância de uma redescoberta da harmonia pessoal e com o universo, que uma militância combativa se inclina a descuidar e desconhecer. Nisso, ela enriquece e embeleza a mística da libertação, desde que tal harmonia não se faça à custa da própria liberdade, do encontro com o Outro e com os outros, da responsabilidade pela história. O Si e o cosmo não podem nem devem abolir a história e o compromisso ético, como estes não podem também estranhar a necessidade do encontro profundo consigo e com o cosmo em gozosa harmonia e sintonia.

Há dois movimentos possíveis. Da mística cristã à mística psicológica e ecológica e destas à mística cristã. O primeiro percurso é o do evangelizador. O segundo é a pedagogia de volta do evangelizado à fonte cristã.

Destarte, quando se pensa em evangelizar as místicas da “nova era”, devemos partir de nossa mística cristã dialógica e libertadora. O encontro com nós mesmos e com o mundo faz-se na graça, no dom de Deus. Deus, ao divinizar-nos com o dom de Si, leva-nos ao mais profundo de nós mesmos e à comunhão mais pura com seu mundo criado. Assim o imergir-nos em nós e no cosmo não significa uma dissolução da transcendência, mas uma forma nova de experimentá-la. Deus é sempre coexperimentável nas realidades humanas, em nós e no mundo.

Por isso, podemos aproximar-nos intimamente das perspectivas espirituais da “nova era” sem perder-nos, desde que permaneçamos conscientes desse movimento. O encontro com o outro, com o pobre, remete-nos a nós mesmos e ao mundo com novos olhos para ver-nos, experimentar-nos e ver e experimentar o mundo.

Contudo, o nosso discurso pedagógico deve inverter o percurso. Partir das experiências das místicas da “nova era” e ir conduzindo seus adeptos não à dissolução de si numa essência impessoal ou numa totalidade vaga, mas à descoberta de uma transcendência pessoal, de uma alteridade indestrutível que interpela, que compromete e que remete ao irmão.

Entra em jogo nesse movimento a verdadeira experiência e natureza do amor. Ou este leva a uma fusão das individualidades, na abolição de todo confronto, ou, pelo contrário, gera uma união na tensão, no equilíbrio dinâmico de duas liberdades dialogantes. Apesar da dor e da dificuldade do amor dialógico, ele consegue ocupar muito mais o horizonte de significado de nossa vida, colocar a responsabilidade histórica e social no seu verdadeiro lugar. O amor da fusão termina por ser gigantesca alienação da história, de si e do outro. Aproxima-nos mais da tranquilidade noturna do animal que da existência diurna, ousada e perigosa do ser humano. “Viver é perigoso” (Guimarães Rosa).

Os fatos terminam por impor-se. Apesar de o neoliberalismo econômico, a democracia formal e vazia, a cultura fragmentada e plural, a experiência religiosa psíquica e cósmica cobrirem com o véu de sua ideologia a miséria de milhões e a dureza da realidade, estas acabam por sobrepor-se pela sua força factual. Nesse momento, a angústia, calada e acalmada pela fusão do próprio Eu na impersonalidade ou na energia cósmica, brota mais vigorosa e pede outra experiência mística. A mística cristã libertadora possibilita a experiência de Deus nessas situações incontornáveis, não pela via da acomodação, mas pela do compromisso com sua libertação. A alegria, a paz, a harmonia int­erior, que emergem da solidariedade, superam em muito às vividas no esvaziamento de si numa totalidade anônima.

 

Conclusão

O mistério da encarnação definiu de modo insuperável o valor absoluto da liberdade e responsabi­lidade da pessoa humana. O Verbo divino se fez “este homem Jesus” de modo definitivo e irreversível. Nun­ca se desencarnará. Nele todo ser humano adquiriu a dignidade de irmão e de filho de Deus.

E como o homem Jesus viveu pobre, entre os pobres, mostrando-lhes preferência singular, o pobre tornou-se este critério fundamental para julgar a economia, a política, a cultura e os movimentos religiosos. Por isso, somente uma mística que respeite a alteridade e privilegie a relação com o pobre condiz com a revelação cristã. A opção pelo pobre não é moda passageira, vinculada a determinada teologia, mas, pelo contrário, é a teologia que se põe a seu serviço. E a teologia que não o fizer, esta sim, será moda passageira e fútil.



[1] L. Boff, “Implosão do socialismo e teologia da libertação”, em Tempo e presença 12 (1990), nº 252; Todo este número é dedicado a tal problema; L. Boff, “Implosão do socialismo autoritário e teologia da libertação”, em REB 50 (1990), nº 200, pp. 76-92; “Socialismo e socialismos”, em Lua Nova (São Paulo), nº 22, dezembro de 1990; “Debate — Adeus ao socialismo”, em Novos Estudos CEBRAP, nº 30 (São Paulo) julho de 1991, pp. 7-42.

[2] Jung Mo Sung, Deus numa economia sem cora­ção. Pobreza e neoliberalismo: um desafio à evangelização, São Paulo, Paulus, 1992.

[3] Francis Fukuyama, O fim da história e o último homem, Rio de Janeiro, Rocco, 1992, p. 11.

[4] Marilena Chauí, “De alianças, atrasos e intelectuais”, em Folha de S. Paulo, 24/4/94.

[5] J. I. González Faus, “Reflexión cultural sobre la crisis económica”, em Notícias Obreras (1994), nº 1.112, pp. 19-26.

[6] Basta ver as sucessivas e repetidas crises por que estão passando o Chile, a Argentina, a Venezuela e mais recentemente o México com a revolução Zapatista e com os déficits gigantescos da dívida externa e da balança comercial.

[7] Paulo F. Carneiro de Andrade, “A condição pós-moderna como desafio à pastoral popular”, em REB 53 (1993), pp. 99-113; I. Vaccarini, “La condizione ‘pós-mo­derna’: una sfida per Ia cultura cristiana, em Aggiornamenti Sociali 41 (1990), nº 2, pp. 119-135; G. Golzani, “Moderno, postmodemo e fede cristiana”, em Aggiornamenti Sociali 41 (1990), nº 12, pp. 779-798.

[8] L. González-Carvajal, ldeas y crencias del hombre actual, Santander, Sal Terrae, 1992, 2ª ed., 1992.

[9] J.-Y. Calvez, “Que avenir pour le marxisme”, em Etudes 373 (nov./1990), pp. 475-485.

[10] Manfredo A. de Oliveira, “A dinâmica atual da cultura brasileira e os desafios da evangelização”, em Con­vergência 25 (1990), pp. 304-318; Manfredo A. de Oliveira, “Cultura e evangelização”, em CNBB, Conjuntura social e Documentação Eclesial, Encarte do Boletim da CNBB, 15/10/1992, nº 126.

[11] J. Moltmann, Doutrina ecológica da criação. Deus na criação, Petrópolis, Vozes, 1992.

[12] Raúl Berzosa Martínez, “New age y cristianis­mo”, em Religión y cultura 40 (1994), pp. 17-43; Raúl Berzosa Martínez, “New age: un nuevo reto a la teologia”, em Lumen 41 (1992), pp. 266-280; A. Natale Terrín, “Risveglio religioso, Nueve forme dialoganti di religiosità”, em Credere Oggi 11 (1991), pp. 5-24; “Il New Age. Una nuova sfida per il cristianesimo”, em Civiltà Cattolica 3.396 (1991) 541; A. Natale Terrin, New Age. La religiosità del postmodemo, Bolonha, EDB, 1993; C. Sorrias, La Nueva Era, ¿nueva religión para una nueva humanidad? Reflexiones críticas, em Sal Terrae 80 (1992), pp. 659-674; L. Boff, Nova era: a civilização planetária. Desafios à sociedade e ao cristianismo, São Paulo, Ática, 1994; VV. AA., A Nova era em questão, São Paulo, Paulus, 1994.

[13] M. de França Miranda, “A salvação cristã na modernidade”, em Perspectiva Teológica 23 (1991), nº 59, pp. 13-32; M. de França Miranda, “A volta do sagrado. Uma reflexão teológica”, em Perspectiva Teológica 21 (1989), pp. 71-83; M. de França Miranda, “Ser cristão numa sociedade pluralista”, em Perspectiva Teológica 21 (1989), pp. 333­-349.

[14] J. Poelmann, O homem a caminho de si mesmo, São Paulo, Paulus, 1993; J. Sudbrack, La nueva religiosidad. Un desafio para los cristianos, Madri, San Pablo, 1990.

Pe. João Batista Libânio