(Entrevista com D. Pedro Casaldáliga)
Pedro Casaldáliga nasceu em 1928 em Balsamey (Barcelona), Espanha. Filho de lavradores. Religioso da Congregação dos Missionários Claretianos. Ordenado sacerdote em Barcelona em 1952. Sagrado bispo em São Félix do Araguaia (MT), em 1971 (onde reside até hoje). Na Espanha trabalhou pastoralmente como diretor de Seminário e de organizações juvenis. Foi professor. Escreveu para jornais, revistas, rádio e teatro. Chegou ao Brasil em janeiro de 1968. É poeta e escritor de vasta obra bibliográfica, sintonizada com a teologia e a espiritualidade libertadoras. Assessorou o “Curso de verão — Ano 11” — promovido anualmente pelo CESEP — que tratou da espiritualidade e da mística, com o tema “Nossa espiritualidade” (texto publicado pela Paulus). É bispo muito querido pelas comunidades eclesiais de base, das quais é assessor. Bispo preocupado em partilhar as ânsias e os sonhos com os excluídos. Ao aceitar nosso convite em responder às questões que seguem, D. Pedro Casaldáliga acrescentou: “continuemos a caminhada, seguindo Jesus Cristo com os pobres da terra”.
VIDA PASTORAL (VP): Em recente publicação (“Nossa espiritualidade”, Paulus), o senhor define espiritualidade cristã como “seguimento a Jesus Cristo: assumindo sua causa, adotando sua atitude, vivendo segundo seu Espírito”. Poderia detalhar isso aos nossos agentes de pastoral?
D. Pedro: Cada dia me parece mais urgente e eficaz entender e viver a Igreja como a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, o Crucificado Ressuscitado. A partir dessa concepção da Igreja é evidente que o seguimento define a espiritualidade cristã.
O risco seria fazer do seguimento uma “imitação” mimética, descontextualizada, ou um relacionamento intimista com Jesus (“eu sou de Jesus e Jesus é meu…”), sem a vivência histórica do mandamento novo. Por isso deve-se insistir num seguimento que seja “assumir a causa de Jesus”, que é o Reino, “adotando as atitudes” maiores de Jesus (sua abertura total ao Pai na oração e na docilidade; sua abertura total ao próximo, na misericórdia e no serviço etc.), “segundo o seu Espírito” (também nós com frequência, na prática, “não sabemos de que Espírito somos…”).
J. L. Segundo nos recordava que é muito fácil “ter fé em Jesus”, difícil (mas necessário) é “ter a fé de Jesus”. Viver (e morrer, talvez) pelo que ele viveu e morreu: a causa de Deus e da humanidade, que é o Reino.
VP: O senhor também afirma que existem três grandes tentações atualmente para viver a espiritualidade cristã: renunciar à memória e à história, à cruz e à militância, à esperança e à utopia. Como vencer essas tentações?
D. Pedro: Em primeiro lugar, como todas as tentações, essas três devem ser reconhecidas como tais. A amnésia histórica, a lightização da vida e o conformismo passivo ou até fatalista são pecado mesmo.
Em segundo lugar, deve-se reagir contra elas participando, assumindo a corresponsabilidade pessoal, intransferível, de cada um e cada uma de nós, na sociedade e na Igreja. Sempre é possível ser fiel, apesar de todos os pesares neoliberais ou até eclesiásticos, quem sabe. O Reino continua. A vida tem a última palavra. Somos povo da Páscoa. A “memória” de Jesus Cristo e a de quantos como ele têm dado a prova maior é testamento e herança.
Essa “participação” se dá sobretudo no dia a dia, no próprio lugar, no espaço ou na brecha que cada um de nós poderá encontrar se responde com simplicidade e liberdade ao Espírito. A “seu amor e fidelidade, que perduram para sempre”, deve corresponder diariamente nossa pequena fidelidade e um amor cada vez mais confiado: crer é antes de tudo confiar em Deus!
VP: Numa época em que tantos (também agentes de pastoral) se empolgam em louvores e hinos sonoros massificantes, com o risco maior de tornar o cristianismo mensagem light, como fazer para atualizar a memória dos mártires da caminhada de ontem e de hoje?
D. Pedro: O “hino”, o “louvor”, a alegria, e até a exultação, fazem parte da vida de fé eclesial. Mas, com o hino a profecia, com o louvor o protesto, com a exultação a militância… Nem só de aleluias vivemos!
Atualizar a memória dos mártires é, principalmente, assumir as causas pelas quais eles e elas deram a vida; e contestar, como fizeram, o pecado que contestaram, arriscando tudo.
É também celebrá-los no seu dia, proclamar sua palavra nas celebrações da comunidade, manter sua imagem nos centros, nas casas, nas publicações.
Participar das romarias em sua homenagem. Dar seu nome a locais, instituições, filhos e filhas. Passar seus vídeos nos encontros, sobretudo da juventude.
A “Agenda Latino-americana” — verdadeiro martirológio nosso — pode prestar um bom serviço para a memória diária.
VP: Qual o significado das palavras de Jesus, lidas na situação do mundo atual: “Vocês também querem ir embora?” (cf. Jo 6,67)?
D. Pedro: A consciência de cada um e cada uma pode responder. A partir da minha própria situação eu sinto que Jesus me pergunta: Também você quer se dar por cansado? Também você acha que a opção pelos pobres não deve ser vivida com radicalidade e que cabe optar pelos ricos e pelos pobres ao mesmo tempo? Também você quer fugir do compromisso sociopolítico da fé? Também você acha que cabem as férias no Reino de Deus, do lado de cá? Também você duvida do amor do Pai e da minha Páscoa, homem de pouca fé? Também você “não tem tempo para as coisas que são do Pai” — que, aliás, são “todas as coisas boas” da terra e do céu? Etc.
A propósito dessa pergunta e da existencial solidão messiânica com que Jesus a formulou, não é demais recordar que, enquanto peregrinamos, certa solidão (soledade, solitudo…) é inevitável.
VP: Ao longo de 2000 anos de história do cristianismo, qual o contributo que este deu à humanidade no que se refere à espiritualidade e à mística?
D. Pedro: A maior contribuição foi, sem dúvida, a “historicização” de Deus e sua “opção pelos pobres”. O realismo “materialista” do Espírito. A familiaridade do Deus de Jesus com sua inteira família humana, sem fronteiras. Essa “glória de Deus” que consiste em que o ser humano viva em plenitude. Trata-se da esperança pascal. Proclamar Deus como Amor.
Apesar de uma longa história de infidelidades, o cristianismo foi dando sempre testemunhas coerentes dessa espiritualidade ou mística. O santoral, oficializado ou não, continua a ser um referencial familiar dessa vivência. Aquela “nuvem” que nos envolve na caminhada!
VP: Quais são os principais desafios para a Igreja no próximo milênio?
D. Pedro:
• Vencer (por fim?) a tentação da nova cristandade, renunciando ao poder, ao status, ao privilégio, à exclusividade. Sem nunca confundir essas quatro esferas “mundanas” com o espaço para a evangelização, a liberdade para o serviço e a identidade para o testemunho.
• Optar de verdade pelo pobres, com a palavra e na ação, nas pessoas e nas instituições, na vida e nos programas pastorais. Fazer dessa opção uma autêntica “nota” da Igreja de Jesus.
• Ser ecumênica de verdade, passando sempre mais concretamente do ecumenismo das boas intenções, de certos encontros solenes e de propósitos genéricos, ao reconhecimento mútuo das Igrejas como sendo a Igreja de Jesus. Para isso, evidentemente, vai ser preciso ir relativizando muitas coisas e rever o que é fé, o que é cultura, o que é história, o que é preconceito.
• Não esquecer por mais tempo o testamento de Jesus: “Que todos sejam um”.
• Ser também macroecumênica num sincero diálogo com as outras religiões, e, mais concretamente, em nossa América, com as religiões indígenas e afro-americanas.
• Inculturar a teologia, a liturgia, a catequese, toda a pastoral, assim como a formação sacerdotal e a vida consagrada.
• Promover sinceramente o protagonismo do laicato e reconhecer, na prática, não apenas no discurso, a igualdade da mulher, também nas decisões, na direção, nos ministérios. (Na sociedade, dizem, o século XX foi o século da mulher. Esperamos que o século XXI seja o século da mulher na Igreja. Sempre um pouco tarde…)
• Fazer causas da Igreja as grandes causas da humanidade: justiça, paz, diálogo, ecologia, reformas agrária e urbana, saúde, educação, migração etc.
• Fazer-se entender pela nova cultura, pela juventude, por cada coração humano que busque a verdade ou a acolhida. Sem marketings festivos, porém. Estando como sal e como luz na mídia, na história, na vida. Com espírito de êxodo, de exílio, de diáspora, mas na fé e no pro-seguimento da encarnação de Deus.
• Ser ao mesmo tempo uma Igreja de fidelidade radical à novidade do evangelho e de misericordiosa compreensão com a filharada de Deus.
• Vivenciar, com paixão e alegria, na liberdade do evangelho e na certeza do Reino, o mistério do Deus-conosco: nossa comum filiação divina e a fraternidade/sororidade universal. Em Jesus de Nazaré, o Cristo, o Filho, o Irmão.
• Sermos “esperançados e esperançadores”, como pedia o mártir Ellacuria, de El Salvador. Proclamar alto, claro e limpo, que “Deus é Amor” (“apesar de tudo”, como gosta de acrescentar l’abbé Pierre).
(Evidentemente, quando digo Igreja refiro-me a toda a Igreja: laicato, vida religiosa, clero, hierarquia. E gostaria de poder dizer todas as Igrejas, que somos a Igreja.)
VP: A CF/2000 fala de um “novo milênio sem exclusão”. Em meio à tentação do lucro e da competição em que vivemos hoje, há como sonhar com esse mundo sem exclusão?
D. Pedro: Freud dizia que quem não sonha já é defunto. E a Bíblia toda, de diferentes modos e com boca humana por Jesus, nos recorda a fidelidade irrestrita de Deus. Vamos para “o novo céu e a nova terra”. O Reino se impõe, também, gradativamente, nas limitações do tempo, aqui noite adentro ainda. Deus não fracassa. E a humanidade, filha de Deus, tem genética divina. Não é suicida, mesmo cometendo tantos atos suicidas ao longo de sua acidentada história.
Hoje há mais consciência, liberdade e participação do que há trinta anos. Os especialistas destacam a emergência de sujeitos, mantidos no silêncio e à margem durante séculos: a mulher, os povos indígenas e os povos negros.
O movimento popular, em todas as suas expressões, espalha-se pelo mundo, e a cidadania, que nem estava nos dicionários, é uma realidade crescente.
A solidariedade está sendo como um novo nome da sociedade mundial.
Apesar de restrições e até recuos, o ecumenismo e mesmo o macroecumenismo são de vivência irreversível.
Desafio para a Igreja e para todo o tipo de militância é somar sonhos e forças, não tentar fazer “sem” o que se pode fazer “com”.
“A pequena esperança — cantaria Péguy — deve amanhecer todo dia”, isso sim. Galeano irrita-se contra esses que querem nos diagnosticar a utopia como “um cavalo cansado”. E o evangelho fala a Maria, aos pastores e aos apóstolos que “não tenham medo”.
Ele está conosco hoje e até o fim.
Pe. Darci Luiz Marin