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Publicado em número 177 - (pp. 2-3)

Resgate da dignidade humana

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com D. Mauro Morelli)

Mauro Morelli nasceu em 1935 em Avanhandava, SP. Foi ordenado sacerdote em 1965 e sagrado bispo em 1975. Até 1981 foi bispo auxiliar na Arquidiocese de São Paulo e, desde então, é bispo da Diocese de Duque de Caxias, RJ, onde se realizou o 7º Encontro Intereclesial de CEBs em 1989. É presidente do “Conselho Nacional de Segurança Alimentar” (CONSEA) desde sua fundação. E, em meio à intensa atividade no CONSEA e na Diocese de Duque de Caxias, D. Mauro concedeu-nos uma entrevista, que a seguir reproduzimos.

 

VIDA PASTORAL (VP): Qual a ideia inicial da proposta da “Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida”?

D. Mauro: O movimento pela ética na política, ava­liando o processo que nos conduziu ao impeachment de um presidente corrupto, decidiu canalizar as energias da indignação contra a corrupção para combater a fome e erradicar a miséria, que humilha o povo e cassa a cidadania de milhões de brasileiros.

A proposta, desde o início, foi pensada e articulada como um caminho de esperança funda­mentado e iluminado por três critérios: solidariedade, parceria e descentralização.

As metas propostas estão sintetizadas no “slogan” do movimento de transformação do país: “Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida”.

Através da ação de mulheres e homens comuns foi iniciado um processo político revestido das energias da solidariedade para combater a fome, erradicar a miséria e promover a vida.

Com determinação, a “Ação da cidadania”, abre caminhos para mudanças com a convicção de que fome se combate com comida, e miséria com decisões políticas e mudanças estruturais.

A implantação de uma política de segurança alimentar é a grande meta do movimento. Sem de­mocratização da terra e da renda, o Brasil não acabará com a fome nem erradicará a miséria.

 

VP: Qual o balanço que o senhor faria do que foi feito até aqui nesta campanha?

D. Mauro: A revelação do “Mapa da fome”, pelo presidente da República, rasgou o véu da hipocrisia e do cinismo com que os governantes encobriam a rea­lidade injusta e vergonhosa de um país, ao mesmo tempo, terceiro produtor e exportador de alimentos e “pátria” de 32 milhões de indigentes.

Não se pode medir a força da energia que sacudiu o país desperto e consciente do estado de exclusão de milhões de seres humanos.

A resposta do povo se manifestou em inumerá­veis grupos de combate à fome e de iniciativas, as mais diversas, para mudar o quadro injusto e vergonhoso.

Ultrapassando barreiras partidárias, ideoló­gicas e religiosas, pessoas caminham juntas para resga­tar a dignidade humana de famintos e insaciados.

A sociedade civil foi ao encontro do governo para estabelecer parceria e criar instrumentos de ação. Assim, foi criado e constituído o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), integrado por 9 ministros de Estado e 21 representantes da sociedade civil organizada.

Com a criação do primeiro conselho não partidário da história da República, foram inauguradas relações e critérios novos para o exercício do poder. Reunindo a sabedoria política do governante e a competência da cidadania, o CONSEA transformou-se em espaço de diálogo permanente entre governo e sociedade, instrumento de parceria, de colaboração crítica e de coordenação política do plano de ação do governo federal com medidas compensatórias e estruturais de combate à fome e à miséria. Em especial, o programa descentralizador e renovador da merenda escolar do Ministério da Educação, as iniciativas e ações do Ministério da Saúde, o gigantesco programa emergencial de distribuição de alimentos (PRODEA) para 2.050.000 famílias em 1.163 municípios do semiárido, através do Ministério da Agricultura e da magnífica e indispensável colaboração do Ministério do Exército, com o serviço patriótico de 12.000 oficiais e soldados, a contribuição infatigável e competente do Ministério do Trabalho na promoção de relações mais justas no mundo do trabalho e no esforço para promover a geração de empregos e da retomada da reforma agrária, através de centenas de decretos de desapro­priação de propriedades agrícolas ociosas para assen­tamentos dos sem-terra.

Decisiva participação teve o CONSEA na elaboração do orçamento para garantir recursos para projetos prioritários de combate à fome e à miséria, acima citados, bem como para a implementação de projetos do Ministério do Bem-Estar Social para sa­neamento e habitação popular em favelas.

As empresas públicas, através da solidarieda­de de seus funcionários, destacaram-se na organização de comitês e de ações solidárias de combate à fome. A “Ação da cidadania” levou as empresas a realizarem os seguintes programas: programas de aproveitamento de águas públicas para a produção de pescado (piscicultura) e de aproveitamento dos poços já perfurados da PETROBRÁS; teleeducação para a área de saúde (Canal da Saúde); uso de terra das empresas estatais; pesquisa sobre fome, alimentação e nutrição; teletreinamento para operadores do Programa Nacional de Empregos e Ali­mentos (PRONAL); programa de teleeducação para o ensino básico até a 8ª série (convênio já assinado, em dezembro de 1993, entre os Ministérios da Educação e das Comunicações e a EMBRATEL).

 

VP: Após esse caminho já feito, quais as perspectivas futuras para o programa de “Ação da cidadania”?

D. Mauro: Dentro das condições e limitações caracte­rísticas do nosso país, em termos de participação, a “Ação da cidadania” consolida sua articulação e promove debates em preparação à Conferência Nacional de Segurança Alimentar, que terá lugar em Brasília, de 27 a 30 de julho deste ano, com a participação de 3.500 delegados.

A partir dos municípios, o Brasil deve ser pensado visando a implantação de política de segurança alimentar, que garanta a produção regionalizada e diversificada de alimentos para consumo do povo e a capacidade de este adquirir, com o próprio salário, o alimento de cada dia.

Para atingir as metas da segurança alimentar e assegurar as necessidades básicas da cidadania, será necessário:

— Substituir os rumos e objetivos da economia servidora da “ordem” e do “progresso” geradores de exclusão e de miséria.

— Promover a cidadania através da demo­cratização da terra e da renda. Sem espaço necessário para morar e produzir, a cidadania dos sem-terra não passa de uma ficção. Sem condições de educação, de saúde, transporte e crédito, os agricultores e camponeses não atingirão a qualidade de vida e de participação que é inerente à condição humana.

— Promover a democratização da renda cri­ando e garantindo oportunidades de trabalho e im­plantando uma política salarial que reconheça a dig­nidade humana e valorize o trabalho.

 

A Conferência Nacional de Segurança Ali­mentar deverá sintetizar os sonhos e propostas de cidadania efetiva, as bases e diretrizes do processo de transformação do país em sociedade mais justa, igualitária e solidária.

O documento final será encaminhado a todos os partidos políticos e candidatos como um desafio para a definição de projetos de mudanças e o compromisso como combate à fome e à erradicação da miséria.

Após as eleições e empossados os eleitos, a “Ação da cidadania” deverá oferecer aos governantes, em todos os níveis, colaboração em parceria crítica para concretizar os projetos dos que receberam o mandato nas urnas.

 

Pe. Darci Luiz Marin